O vexame da economia da bolha financeira é também o vexame da esquerda pós-moderna
Para Robert Kurz, o Estado não pode estancar a desvalorização, mas apenas administrá-la
Por: Graziela Wolfart e Patricia Fachin
Quando aceitou conceder a entrevista a seguir por e-mail para a
IHU On-Line,
o ensaísta alemão Robert Kurz admitiu que preferia analisar a crise
financeira por si só, ao invés de relacioná-la com as teorias de Marx,
como foi nossa proposta. E ele acabou conseguindo nos presentear com uma
rica e profunda análise do crítico período financeiro pelo qual passa
nosso mundo, sem deixar de ressaltar a importância de
Karl Marx para compreendermos essa fase. Nas suas respostas,
Robert Kurz
afirma contundentemente que “os recursos materiais e os agregados
científico-tecnológicos, bem como as capacidades e necessidades humanas
não podem mais ser comprimidas nas formas básicas do capital. Ou, como
Marx o formulou nos 'fundamentos', ‘desaba o modo de produção baseado no
valor de troca’; manifesta-se a ‘desvalorização do valor’ enquanto
limite histórico da valorização do capital”.
Nascido em 1943,
Kurz estudou Filosofia, História e
Pedagogia. É co-fundador e redator da revista teórica EXIT! - Kritik und
Krise der Warengesellschaft (EXIT! - Crítica e Crise da Sociedade da
Mercadoria). A área dos seus trabalhos abrange a teoria da crise e da
modernização, a análise crítica do sistema mundial capitalista, a
crítica ao Iluminismo e a relação entre cultura e economia. Publica
regularmente ensaios em jornais e revistas na Alemanha, Áustria, Suíça e
Brasil. Entre seus livros publicados em português, citamos O colapso da
modernização (São Paulo: Paz e Terra, 1991), O retorno de Potemkin (São
Paulo: Paz e Terra, 1994) e Os últimos combates (Petrópolis: Vozes,
1998).
IHU On-Line - Em que sentido as teorias de Marx são
importantes para se compreender o atual momento de crise no sistema
financeiro global?
Robert Kurz - A importância da crítica da economia
política feita por Marx, para se explicar a grande crise financeira
atual, evidencia-se inicialmente em dois níveis: por um lado, um aspecto
fundamental é sua derivação da forma monetária no primeiro volume de O
capital; por outro, em sua análise do crédito, principalmente no
terceiro volume. Nessas questões, aqui, somente poderei tratar alguns
pontos elementares. A economia burguesa clássica e neoclássica parte,
contrafaticamente, de uma pura economia de bens e de relações naturais
de troca entre os sujeitos do mercado. Ela abstrai do dinheiro e fala do
“véu do dinheiro” sobre as transações econômicas “propriamente ditas”. O
dinheiro, aí, aparece como mero signo, sem teor próprio, como
constructo jurídico baseado numa convenção social ou num decreto
governamental. Para que a economia funcione, importa apenas adequar a
quantidade de dinheiro à quantidade de bens (teoria da quantidade). Para
Marx, em contrapartida, o dinheiro não é o “véu” secundário, mas
premissa e veículo central, fim em si mesmo, da valorização (Verwertung)
capitalista. Ele é a forma de apresentação geral do valor incorporado
nas mercadorias, ou seja, do valor agregado, o qual precisa voltar a se
transformar na forma monetária, que, por sua vez, já representa seu
ponto de partida. Por isso, o dinheiro não pode ser mero signo, mas
precisa ter, ele próprio, o caráter de mercadoria, inclusive de “rei”
das mercadorias. O dinheiro é “mercadoria genérica” colocada à parte, ou
o “equivalente genérico”, cujo “valor utilitário” não consiste em sua
utilidade concreta, mas em sua propriedade de representar o valor
abstrato ou valor agregado de todo o mundo das mercadorias. Para as
transações cotidianas, é verdade que signos monetários podem tomar o
lugar da mercadoria-dinheiro propriamente dita, mas, em última instância
e principalmente nas crises, o real conteúdo de valor do dinheiro
precisa ser resgatado como “mercadoria régia”. Por isso, para Marx, o
dinheiro não pode emancipar-se totalmente dos metais nobres como
mercadoria monetária; isto não por causa do caráter metálico natural,
mas em função do valor social ali representado de forma “concentrada”.
A questão do crédito e dos juros
O crédito emana da subdivisão do capital em capital de produção ou
capital-mercadoria, por um lado, e capital monetário ou
capital-que-rende-juros, por outro. A duplicação da mercadoria em
“mercadoria vulgar” (gemeiner Warenpöpel) e dinheiro como “mercadoria
régia” repete-se no nível do capital. Na economia burguesa, não existe
conexão sistemática entre teoria monetária e teoria do crédito. A noção
do dinheiro como “véu” e mero signo encontra-se em contradição com a
noção do capital monetário a gerar lucros, como uma espécie de produção
sui generis de mercadoria. Grosso modo, fazem de conta que a “indústria
financeira” seria uma produção de mercadorias tão real quanto, por
exemplo, a indústria automotiva. O juro parece uma forma independente de
valor agregado. Marx, em contrapartida, mostra o caráter ilusório dessa
noção. Ele comprova que o crédito, ou capital que gera lucros, é apenas
uma forma derivada, sem formação própria de valor. O juro é o preço da
função capitalista do crédito, preço este que precisa ser subtraído do
valor social agregado da real produção de mercadorias. Na estatística
burguesa, em contrapartida, os “produtos” do capital monetário são
somados ao produto social, com o que se distorce o quadro real de
valores.
Dinheiro x Dólar
No século XX, o dinheiro e todo o sistema monetário emanciparam-se
definitivamente do ouro como mercadoria monetária real – na aparência; o
último lance dessa emancipação foi o abandono da convertibilidade do
dólar em ouro em 1973. Isto se correlaciona com o fato de que, no
período subseqüente, o capital monetário também se desacoplou cada vez
mais da real produção de mercadorias. O crédito inflado gerou não só
formidáveis montanhas de dívidas, que sempre precisavam ser “roladas”,
mas adquiriu uma forma de circulação independente de títulos financeiros
(ações, títulos hipotecários, derivativos), onde se criaram valores
fictícios de dimensões astronômicas. Na ótica positivista, tratava-se
simplesmente de “fatos” que pareciam fundamentar-se a si próprios. Até
mesmo teóricos da esquerda explícita ou implicitamente abandonaram a
teoria marxista do dinheiro e do crédito, porque na aparência ela estava
refutada empiricamente.
A contradição que explica a crise
Esse período de 35 anos desde o fim da convertibilidade do dólar em
ouro, que é um período histórico breve, encerrou-se, entretanto, em
2008. Agora se mostra o verdadeiro caráter desse processo. Num processo
secular, o capital, em função de crescentes custos preliminares da
produção baseada em tecnologia científica, ficou cada vez mais
dependente do crédito como antecipação de real valor agregado futuro. As
bolhas financeiras crescentes e excessivamente infladas nas últimas
décadas, arrebentaram, de uma vez por todas, a conexão entre “capital
fictício” e real produção de valor agregado; a antecipação do valor
agregado futuro jamais poderá ser resgatada. Essa contradição amadureceu
e se descarrega como crise financeira global. Isto destrói não só a
ilusão de um crescimento “tocado pelas finanças”, mas também a ilusão do
dinheiro como mero signo. Até o momento, o ouro passa por dramática
valorização frente a todas as moedas. Mas a remonetarização do ouro não é
possível, porque as potências de produção alcançadas historicamente nem
podem mais ser representadas como “riqueza abstrata” (Marx) em forma de
valor agregado. A desvalorização do dinheiro corresponde à
desvalorização da massa de mercadorias. Em outras palavras: os recursos
materiais e os agregados científico-tecnológicos e as capacidades e
necessidades humanas não podem mais ser comprimidas nas formas básicas
do capital. Ou, como Marx o formulou nos “fundamentos”, “desaba o modo
de produção baseado no valor de troca”; manifesta-se a “desvalorização
do valor” enquanto limite histórico da valorização [Verwertung] do
capital.
O Estado como último credor
Nessa situação, o Estado aparece como lender of last ressort [credor
de último recurso]. Para a teoria burguesa, o Estado não é o outro lado,
o lado político da relação de capital, mas uma “instância
extra-econômica”. Também na esquerda, a ilusão do Estado tem uma longa
tradição. Marx não chegou mais a concluir a formulação da sua teoria do
Estado. Mas já nos escritos da sua fase inicial ele criticou a ilusão
estatal-política como “falsa causa pública”. Em sua teoria do crédito,
no terceiro volume de O capital, o crédito do Estado é definido como
forma especial do capital fictício, que continua dependente da real
valorização do capital. Na verdade, o vexame da ilusão estatal não é de
hoje, ilusão esta que esteve em alta após a grande crise na primeira
metade do século XX. No Ocidente, a regulação estatal keynesiana e o
crescimento induzido pela expansão do crédito estatal no início dos anos
1980 fracassaram por causa da inflação sem limites. No Leste, o
capitalismo estatal soviético do “resgate da modernização”, no final dos
anos 1980, ficou inadimplente e entrou em colapso. Estas já eram formas
em que se apresentava a histórica “desvalorização do valor”. Na virada
neoliberal, a intervenção do Estado, supostamente “extra-econômica”, foi
responsabilizada pelo dilema e substituída por um radicalismo de
mercado. Essa virada, porém, não superou a barreira interior da
valorização, mas, mediante uma política de desregulação e da inundação
monetária pelos bancos centrais, apenas abriu as comportas para uma
expansão do crédito privado e da economia baseada na bolha financeira
como nunca se viu.
O Estado: novamente o salvador?
Depois que também esta ilusão estourou e o mercado falhou
grandiosamente, repentinamente pretende-se que o Estado seja novamente o
salvador. Só que o problema não pode mais ser resolvido com nova
inundação monetária por parte dos bancos centrais estatais, mediante uma
convencional redução da taxa de juros. Acontece que esse tipo de
inundação monetária sempre ainda pressupõe a ficção de uma “cobertura”
por processos reais de valorização, a qual já se tornou ilusória. Os
bancos comerciais somente ainda conseguem depositar nos bancos centrais
“garantias” que deixaram de sê-lo, porque consistem em grande parte de
títulos podres. Isto impede que se inflem novas bolhas financeiras da
forma convencional. O colapso dos créditos hipotecários somente foi o
catalisador de um processo de desvalorização de todo o capital
financeiro, que vai muito além. Por isso, agora, a crise é elevada ao
nível da “última instância”, isto é, das próprias finanças públicas. Só
que o Estado não é um demiurgo independente das leis da valorização do
capital. Já no ano fiscal recém-passado, a dívida pública dos Estados
Unidos triplicou ainda antes da recente crise dramática; e, no caso de
se invocarem as garantias estatais concedidas em todo o mundo, o
resultado somente pode ser uma grande crise das finanças públicas. O
Estado não pode estancar a desvalorização, mas apenas administrá-la; ou
em forma de deflação, caso ponha limite em seu próprio endividamento, ou
em forma de inflação, caso saia imprimindo cédulas sem toda e qualquer
“cobertura”. Nesta situação nova na História, talvez até ocorram
processos deflacionários e inflacionários em paralelo.
IHU On-Line - O que representa, na atual crise, a teoria marxista do trabalho abstrato como substância do capital?
Robert Kurz - A economia burguesa clássica
baseava-se, ainda, numa teoria do “valor do trabalho”. O valor devia, em
última instância, ser determinado pelo trabalho humano. Acontece que
essa teoria do “valor do trabalho” era acrítica e incoerente. A teoria
marxista da determinação do valor e do valor agregado mediante trabalho
abstrato é fundamentalmente diferente. O conceito de trabalho abstrato é
entendido de forma crítica e estritamente negativa como “abstração
real” da produção concreta de bens. No processo de produção e circulação
do capital, a atividade produtiva é reduzida, em sua forma social, ao
dispêndio [Vernutzung] abstrato de energia humana ou aplicação de
mão-de-obra abstrata como “gasto [Verausgabung] de nervo, músculo,
cérebro” (Marx), onde o teor concreto desse gasto é totalmente
indiferente. A massa de trabalho abstrato, uma vez realizada, se
apresenta como massa de valor social e como “valor objetificado”
[Wertgegenständlichkeit] dos produtos. Na “valorização do valor”, o que
interessa não é a massa de valor em si, mas apenas a massa de valor
agregado, a qual é distribuída aos diferentes capitais pelo mecanismo da
concorrência. A valorização como fim em si mesmo transforma em fim em
si mesmo também o trabalho abstrato que lhe dá origem, trabalho esse que
forma a substância do capital como gasto de energia humana abstrata.
Do valor para a relação funcional
O neoclassicismo burguês abandonou a teoria clássica do “valor de
trabalho”. O valor foi reduzido ao preço, sendo entendido não mais como
substância comum das mercadorias, mas como mera função na inter-relação
das mercadorias. Correlato disso foi que a filosofia burguesa passou do
“conceito de substância” para o “conceito de função”. Pretendia-se
eliminar o problema da substância, transformando-o numa relação
funcional vazia. A “matematização” dos “modelos” neoclássicos baseia-se
nessa transformação do valor numa relação estritamente funcional. Com
isto, a teoria do valor foi adaptada à teoria do dinheiro enquanto mero
“signo”. Essa “teoria circulatória” funcional do valor, no meio de
língua alemã, de certo modo, também conseguiu entrar numa assim chamada
“releitura de Marx”, na qual a teoria crítica marxista do “valor de
trabalho” era rejeitada, por ser “naturalista” ou “substancialista”,
negando-se que o dinheiro tivesse caráter de mercadoria.
A questão da mão-de-obra
Como na economia burguesa, isto exclui, por princípio, uma barreira
interior absoluta da valorização. A redução a uma relação funcional
torna o valor atemporal e eternamente regenerável, na aparência. Marx,
em contrapartida, mostrou que o desenvolvimento capitalista contém uma
autocontradição elementar. Por um lado, a energia humana abstrata forma a
substância real do capital; por outro lado, a concorrência força
constante desenvolvimento da capacidade produtiva, a qual torna
supérflua a mão-de-obra humana e solapa a substância do valor. Até a
segunda revolução industrial do fordismo, esse processo secular de
desvalorização das mercadorias podia ser compensado por meio do
mecanismo do “valor agregado relativo”, analisado por Marx: pelo
desenvolvimento da capacidade produtiva, o valor da mercadoria
“mão-de-obra” [Arbeitskraft] cai na escala social e a participação
relativa do valor agregado na massa total de valor aumenta. Essa
participação relativa aumentada do valor agregado, porém, está
relacionada com o número de “mãos-de-obra” [Arbeitskräfte,
trabalhadores, funcionários] produtivamente utilizáveis. Marx não chegou
a concluir sua teoria da crise, mas implicitamente ela faz inferir que o
desenvolvimento da capacidade produtiva chega a um ponto em que o
número de “mãos-de-obra” produtivamente utilizáveis se reduz a tal ponto
que a massa de valor agregado absoluto cai. Então, mesmo o aumento do
valor agregado relativo por mão-de-obra de nada serve. Esse ponto é
atingido com a terceira revolução industrial da micro-eletrônica. O
histórico mecanismo de compensação do valor agregado relativo se
extingue, a massa real absoluta de valor agregado cai e a
“desvalorização do valor” leva à “des-substancialização do capital”.
O capitalismo reduzido às suas reais condições de valorização
Este é o motivo pelo qual, no período anterior, se podia simular mais
valorização somente por meio de bolhas financeiras desprovidas de
substância. Quando estas estouram, entretanto, não se atinge novo “ponto
zero”, a partir do qual a valorização real possa recomeçar. Ao invés, o
capitalismo é reduzido às suas reais condições de valorização, cujo
padrão de capacidade produtiva é irreversível. Essa teoria substancial
da crise, que fala de uma barreira inferior absoluta do capital, muitas
vezes foi criticada como “tecnológica” justamente pela esquerda. Mas não
se trata, no caso, do aspecto técnico, mas do efeito da tecnologia
sobre as condições da valorização. Marx não formulou uma teoria
funcional do valor em termos “atemporais”, e sim a teoria de um
desenvolvimento histórico e dinâmico do capital como deslocamento da
substância real, veiculado pela crescente aplicação dos potenciais
científicos e tecnológicos e que não pode ser infinitamente prolongado.
A tensão na administração da crise
Sobre isto ainda cabe fazer duas observações. Em primeiro lugar, as
categorias de Marx são categorias reais de uma lógica da sociedade como
um todo, a qual se baseia nos fenômenos empíricos, mas não pode ser
descrita de forma diretamente empírica. Isto porque empiricamente o
capital não se desloca apenas em veiculações complexas e contraditórias,
mas a real agregação da substância de valor social sempre se apresenta
apenas em retrospecto. A estatística burguesa nunca capta a real massa
de valor ou valor agregado, mas apenas os fluxos superficiais de
mercadoria e dinheiro, os quais produzem uma imagem distorcida. Por isso
os crashes também não são previstos, mas apresentam-se de forma
eruptiva, quando a lógica basal irrompe a empiria, como, ao que tudo
indica, é o caso atualmente. As curvas caóticas e os saltos
descontrolados, por exemplo, do câmbio ou dos índices da bolsa
necessariamente precisam ser atribuídos à natureza não-empírica do
capital e sua evolução substancial. Isto não está ao alcance de uma
teoria categorial permanente ou afirmativa, que só consegue ficar
correndo atrás dos fenômenos imprevisíveis. Além disso, a barreira da
valorização é estritamente objetiva. Aquilo que “desaba” por entre as
curvas é a capacidade de o capital reproduzir-se socialmente. Mas o que
não desaba por si mesmo são as formas de consciência ou “formas de
pensamento objetivas” constituídas pelo capital (Marx). Ao se alcançar o
limite histórico do capitalismo, surge por isso uma tensão colossal
entre a impossibilidade de continuar uma valorização real e uma
mentalidade generalizada que interiorizou as condições capitalistas de
existência e não quer nem consegue imaginar outra coisa senão viver
dentro dessas formas. A difícil tarefa está em resolver essa tensão no
processo de resistência contra a administração da crise, ou o
capitalismo desembocará numa catástrofe mundial. Para isto não está
preparada uma esquerda que se ajustou cada vez mais ao desenvolvimento
capitalista.
IHU On-Line - Quais as conseqüências da crise financeira para o nível de emprego em escala mundial?
Robert Kurz - Desde o início da terceira revolução
industrial nos anos 1980, os novos potenciais de racionalização
eliminaram a mão-de-obra industrial do processo produtivo numa escala
nunca vista antes. Em conseqüência, de ciclo em ciclo, aumentou o
desemprego e o subemprego em massa na escala global. O reverso da
medalha foi a simulação da valorização pelo inchaço de “capital
fictício”. Diferentemente de épocas anteriores do capitalismo,
entretanto, não ocorreu uma desvalorização rápida do capital monetário
destituído de substância, para dar lugar à nova acumulação real. Em vez
disso, por falta de novas possibilidades de valorização real, iniciou-se
uma imbricação sem precedentes históricos entre economia baseada na
bolha financeira e a conjuntura. Os “valores fictícios” não ficaram
restritos ao Éden financeiro, mas por longo tempo e em medida crescente
foram transferidos para a aparente economia real. Assim surgiu o famoso
crescimento “tocado pelas finanças”, que parecia desancar as leis
econômicas do capitalismo e permitiu uma onda de altas de conjuntura
deficitárias, que na realidade não tinham fundamento sólido. Embora o
desemprego em massa aumentasse, ele era mantido em relativos limites
porque, no bojo das conjunturas deficitárias, criaram-se, por assim
dizer, “postos de trabalhos fictícios” que se alimentavam das bolhas
financeiras desprovidas de substância.
A distinção entre “trabalho produtivo” e “improdutivo”
Para se compreender essa evolução, é importante a distinção de Marx
entre “trabalho produtivo” e “improdutivo”. Todas as atividades no
contexto formal capitalista são trabalho abstrato, o qual é representado
em dinheiro. Mas nem todo trabalho abstrato é produtivo em termos
capitalistas, nem contribui para a massa de valor agregado social real.
Certas funções da relação de capital são, em si, improdutivas e com
“custos mortos”. Mas também a atividade produtiva industrial pode
tornar-se improdutiva em sentido capitalista, quando ela excede a
capacidade [Fassungsvermögen ] da real produção de valor agregado
(“capacidades ociosas”). Todos os resultados do trabalho abstrato
assumem a forma de mercadoria enquanto “objetividade de circulação”. Ao
conseguirem um preço, eles assumem uma parte da massa de valor agregado
social, não vindo ao caso se sua produção contribuiu ou não para essa
massa. Esse caráter social global [gesamtgesellschaftlich] da produção
de valor e de valor agregado não fica muito claro em Marx, razão pela
qual surgiu o famoso problema da transformação valor–preço. Entretanto,
esse problema se resolve quando a massa de valor agregado social não se
baseia numa soma de valores “individuais” de mercadoria, mas representa
uma massa substancial, social global, não quantificável em termos de
administração de empresas; sua quantidade se revela somente pela
concorrência no nível da circulação. Isto não torna irrelevante o
problema da substância, mas nada tem a ver com uma substância de valor
da mercadoria individual.
Uma ocupação improdutiva
Que significa isto para a era da economia baseada na bolha
financeira? A queda da massa de valor agregado social real foi
mascarada, na aparência, pelo “valor agregado fictício” do sistema de
crédito inflado. Dessa forma, gerou-se uma ocupação improdutiva que
ultrapassava em muito a capacidade [Fassungsvermögen] da real produção
de valor agregado. Em primeiro lugar, junto com a “indústria
financeira”, o emprego nesse setor inchou de forma desproporcional,
emprego esse que não produz valor algum, apenas intermedia transações
financeiras. Além disso, criou-se um setor igualmente desproporcional de
serviços pessoais improdutivos em termos capitalistas, de indústria
publicitária, indústria da informação e da mídia, indústria do esporte e
da cultura. Justamente nesses setores, o desprovimento de substância se
implementou, por um lado, como remuneração astronomicamente excessiva
de uma pequena elite de astros e, por outro, como precarização em forma
de freelancers, pseudo-autônomos e empresários da miséria. Em terceiro
lugar, a conjuntura deficitária global forçou a ocupação de uma
“aristocracia de trabalhadores” nas indústrias de exportação (produção
automotiva, máquinas), a qual era igualmente improdutiva porque se
baseava não em lucros e salários de real produção de valor agregado, mas
era alimentada pelas bolhas financeiras.
O sistema do trabalho abstrato leva a si próprio ao absurdo
Na mesma medida em que o estouro das bolhas financeiras reduz o
capitalismo às suas reais condições de valorização, também boa parte do
emprego improdutivo terá de cair. A real massa de valor agregado é muito
pequena para que se possa descrever a “objetividade de circulação”
desses setores inflacionados como “objetividade de valor”. A depressão
global a ser esperada levará de roldão não só grande parte dos
financistas capitalistas “donos do universo”, mas também boa parte dos
que deles dependem: precárias prestadoras de serviço, freelancers,
baixo-assalariados, trabalhadores temporários, assim como empregos na
indústria de exportação. O sistema do trabalho abstrato leva a si
próprio ao absurdo; e o capitalismo global minoritário sofre seu
Waterloo, mesmo que ninguém queira tomar conhecimento, embora todos o
saibam intuitivamente.
IHU On-Line - Em que consiste o peso do capitalismo na
sociedade de hoje, caracterizada por relações virtuais, trabalho
imaterial e autonomia?
Robert Kurz - Os conceitos citados provêm todos da
ideologia pós-moderna, que desde o começo acompanhou e formulou o
capitalismo financeiro neoliberal do “capital fictício” inflacionado. Já
em fins dos anos 1970, em seu livro A troca simbólica e a morte (São
Paulo: Loyola, 1996), Baudrillard explicitou a relação com a economia
ao estabelecer o “capital fictício” como novo princípio de realidade.
Também Derrida, num texto sobre “dinheiro falso”, afirmou a virtualidade
do capital. A pós-moderna rejeição radical do “essencialismo” ou
“substancialismo” corresponde à tentativa do capital de contornar
espertamente o seu próprio problema de substância, de certa forma
“aristotélico”. O culto da “virtualidade” contagiou todas as esferas da
vida, até mesmo as relações pessoais. A redução de valor a uma relação
funcional levou à paradoxal “absolutização da relatividade”, que, no
entendimento vulgar, se refletiu como “arbitrariedade”. O virtualismo
econômico correspondia ao virtualismo tecnológico da internet, que
sofreu a mutação para o “second life” de individualizadas existências
abstratas de bloggers, os quais são incapazes de se organizar e de
resistir em termos reais.
E a esquerda?
A esquerda pós-moderna acabou órfã desse processo, o qual reduziu a
luta social ao nível virtual e simbólico. O “pós-operarismo” de Antonio
Negri exprime essa ideologia. O fetichismo objetivo do capital é negado
e, juntamente com a crise, reduzido a subjetivas relações de vontade. O
lugar da crítica radical do trabalho abstrato e da forma [abstrata] de
valor é tomado pela ilusão de uma “autovalorização autônoma” de
freelancers de um “trabalho imaterial”. Esse conceito não faz sentido
[nonsense], porque todo trabalho abstrato, mesmo que não leve a produtos
materiais, é “gasto de nervo, músculo, cérebro”. Só que o “trabalho
cognitivo” improdutivo, em termos capitalistas, justamente nada
contribui para a real massa de valor agregado social. A “autonomia”
dessa forma específica de trabalho abstrato é ilusória, porque continua
dependente do mercado mundial. Trata-se da ilusão de uma nova classe
média, que perdeu seu fundamento. Quando o capitalismo é reconduzido
para suas reais condições de valorização, extingue-se também a
“autovalorização” do trabalho abstrato nos setores do “conhecimento” e
da comunicação pela mídia. O vexame da economia da bolha financeira é
também o vexame da esquerda pós-moderna e do seu “anti-substancialismo”
ideológico, que pretende declarar toda e qualquer manifestação de vida
como “valorização”. A base dessa ilusão não é econômica, e sim
“existencialista”, pois recorre a Heidegger. Ao estourar a economia da
bolha financeira, a “heideggerização” pós-moderna da esquerda corre o
risco de desembocar em sentimentos nacionalistas e anti-semitas.
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Entrevistas
* "A globalização deve se adaptar às necessidades das pessoas, e não o contrário".
Revista IHU On-Line nº 98, de 26-04-2004, intitulada
A crise da sociedade do trabalho. Estamos saindo do capitalismo industrial?
* “Novas relações sociais não podem ser criadas por novas tecnologias”.
Revista IHU On-Line nº 161, de 24-10-2005, intitulada
As obras coletivas e seus impactos no mundo do trabalho.
Disponível em: (http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_content&view=article&id=2250&secao=278). Acesso em: 22/jul/2012.