Postagem 13/abr/2016...
A gestação de um golpe (por Céli Pinto)

Sobre o primeiro, parece-me urgente
tomarmos em consideração dois cenários: as manifestações no Brasil a
partir de 2013 e a crise generalizada nas experiências progressistas na
América Latina.
Em relação ao momento atual, a
problemática central é que estamos, na maior parte das vezes, analisando
os diversos atores da crise como se estivessem se movendo em um momento
pré-golpe, quando o golpe já foi dado. Os golpistas agora estão
empenhados em institucionalizá-lo. Mas vamos por partes, como dira
aquele conhecido senhor inglês.
De 2013 a 2016, é visível a qualquer
observador medianamente atento, uma trajetória da esquerda para a
direita nas manifestações de rua.
Já em 2013 o quadro não era simples. Se,
de um lado, havia o Movimento Passe Livre, o Bloco de Lutas no Rio
Grande do Sul, os Black Blocs e uma esquerda anti PT, por outro, a
grande maioria das pessoas que estavam nas ruas não pertencia a nenhum
desses grupos. Era uma classe média jovem e despolitizada, que dizia ter
saído do Facebook e que os políticos não a representavam, além de
fazerem menção ao hino nacional dizendo que o gigante acordou.
Entretanto, as violentas manifestações contra bandeiras partidárias e o
entusiasmo da Rede Globo não foram suficientes, na época, para alguns
analistas perderem o encanto com a juventude na rua, embalados por uma
equivocada comparação com o movimento dos Indignados na Espanha.
2014 foi o ano da Copa do Mundo e das
eleições presidenciais. Em relação à Copa, houve manifestações
importantes de movimentos populares progressistas fortemente reprimidos
pela polícia. Mas houve também muita gente pedindo um Brasil padrão
Fifa. Muitos dos que estavam na rua em 2013 voltaram e foram em massa ao
jogo de inauguração da Copa no dia 12 de junho, no estádio do
Itaqueirão, em São Paulo. Nesse dia, dos setores mais caros do estadio
começou uma grande e desrespeitosa vaia à presidenta da república, que
nunca mais parou. Aquela vaia é simbólica, pois deixa claro quem ganhara
a disputa discursiva das ruas. Tanto foi assim que, depois disso, Dilma
Rousseff começou a significar tudo que a classe média brasileira não
queria. Tudo o que estava engasgado nos últimos 12 anos.
Dilma ganhou as eleições presidenciais,
mas quem ganhou as ruas, o discurso vitorioso foi o de classe média,
conservador, que vinha se gestando desde as manifestações de 2013. Às
vésperas do segundo turno das eleições presidenciais, as ruas dos
bairros de classe média alta das principais cidades do país estavam
lotadas de gente que gritava a favor do candidato da oposição ao PT.
O que faltou nas ruas? O mesmo povo que
faltou em 2013 e em 2014: faltou a massa de militantes e apoiadores do
PT. Grande parte ainda votava no PT, mas não era mais suporte para o
discurso de esquerda, ao pelo menos de um postura progressistas. Esta
ausência é fundamental para entender a crise.
Não cabe aqui analisar a natureza deste
fato, ou as causas do quase desaparecimento do discurso petista, mas
vale apontar três razões, mesmo que rapidamente: escândalos de corrupção
+ presidencialismo de coalizão muito alargado + afastamento dos
movimento sociais, o militante ou simpatizante passou a ser um mero
cliente das boas políticas sociais do governo.
Tendo este cenário em mente, passemos à
segunda caraterística da condições de emergência da crise: o debacle das
experiências de esquerda na América Latina. O subcontinente teve uma
onda de governos progressistas durante as últimas duas décadas, mas nos
últimos anos tem sofrido reveses importantes: na Argentina, Cristina
Kirchner não fez seu sucessor e foi eleito o ultra neoliberal Macri; na
Bolívia, Evo Morales perdeu o plebiscito que lhe daria direito à nova
reeleição; Rafael Correa, no Equador, enfrenta sucessivas crises com
parte da população indígena; na Venezuela, Maduro praticamente não
consegue governar em meio a uma profunda crise econômica. No Peru, onde
nunca chegou a haver um governo de esquerda, a filha do famigerado
Fujimori se torna uma importante candidata de direita à presidência da
República. No Brasil, temos a crise que todos conhecemos.
Não há coincidência nestes sucessivos
eventos que colocam a esquerda de escanteio na América Latina. Em
primeiro lugar, é necessário admitir que não é fácil governar, a partir
de uma proposta progressista, países capitalistas com profundas
desigualdades de classe , étnicas, raciais e de gênero. Com elites e
classes médias com grandes privilégios vivendo quase em um regime de apartheid
em relação às classes populares. O preço a pagar para conseguir o
mínimo de governabilidade é muito alto. Parte expressiva da corrupção
vigente nestes países é efeito destas dificuldades. Soma-se a isto uma
crise econômica mundial, que baixou os preços das comodities, trazendo consequências graves para as economias latino-americanas.
E finalmente, mas não menos importante, o
reordenamento do capitalismo internacional frente à sua crise coloca os
arautos de seus interesses neste países de prontidão para tirar
proveito das crises internas e intervir nas riquezas nacionais através
de programas neoliberais, que possibilitariam a desnacionalização ainda
mais profunda das economias latino-americanas.
Estas são as condições de emergência da
crise política que vivemos no Brasil. A diversidade de atores e
interesses infiltraram-se no aparato estatal e tomaram de assalto o
sempre citado Estado Democrático de Direito. Aproveitaram-se da
independência, conquistada nos governos petistas pela Polícia Federal,
pelo Ministério Público e pelo Poder Judiciário, para transformar as
investigações sobre a corrupção no Brasil em um despudorado golpe contra
o governo constituído. As instituições perderam a centralidade e agora
dependem do senso de oportunidade ou do oportunismo de alguns de seus
membros. O juiz Moro é um herói de ocasião, que passará para o rodapé da
História rapidamente. Entretanto ele tem desempenhado um papel
relevante, pois – sendo um juiz de primeira instância em um estado de
pouca relevância política no país – foi alçado a grande autoridade.
Prende, solta, manda buscar, com mandados coercitivos, quem ele decide,
na hora que quiser, para irem até ele e possibilitar que exerça seu
poder. Além do juiz também agora é sinônimo de Judiciário, os membros do
Supremo Tribunal Federal. Somos mais de 200 milhões de pessoas, há um
governo eleito com mais de 50 milhões de votos e dependemos da sorte de
nenhum processo cair nas mãos de Gilmar Mendes, ou tudo poderá
acontecer. Isto não se constitui mais em um poder da república, um golpe
já foi claramente dado.
Soma-se muito de perto do poder
Judiciário o Ministério Público. Não vou me ater aqui às trapalhadas de
alguns membros do Ministério Público de São Paulo, risíveis ao exporem
ao Brasil seu profundo primarismo intelectual, mas ao Procurador Geral
da República, Rodrigo Janot, que mudou seu parecer em relação à nomeação
do ex-Presidente Lula como ministro da Casa Civil porque, segundo ele
próprio, leu um pouco melhor o processo. Isto é um escárnio, para não
dizer um deboche das instituições, das autoridades constituídas, do povo
brasileiro. Então o Procurador Geral da República, do alto de sua
autoridade, dá pareceres desta importância sem uma análise cuidadosa?
Será que o Dr Janot pensa ser possível acreditar em tal absurdo?
Mas o assalto ao Estado Democrático de
Direito não pára aí, tem talvez seu ponto alto na presidência da Câmara
de Deputados. O problema não é o que deputado Eduardo Cunha faz a partir
de seu cargo, mas o que o Poder Judiciário, o Ministério Público e seus
colegas de legislativo deixam ele fazer. As leis, as indignações, os
falsos moralismos que valem para Lula ou qualquer político ligado ao PT
que tenha seu nome mencionado mesmo de passagem por um delator de
plantão em Curitiba, não são as mesmas que valem para o Dr Cunha. Ele
continua mandando, apesar de citado pela banca internacional e pelos
delatores nos porões das prisões de Moro, o que parece não ter
importância. Ele fará o trabalho sujo e certamente será recompensado.
Se o Estado já foi tomado pelos
golpistas, o que fazer? Parece que lutar a partir de dentro está muito
difícil, se não impossível. A única possibilidade de reverter este
quadro é uma grande mobilização popular, nas ruas nos sindicatos, com
manifestações, atos públicos, abaixo-assinados, campanhas nacionais, uso
total de todas as redes sociais, constante resposta aos
pseudo-jornalistas da Rede Globo, pois há muitos jornalistas contra o
golpe. Urge recriar o discurso progressista, a defesa das instituições
tomadas pelos agentes do golpe. Urge trazer os partidos políticos para o
protagonismo da batalha democrática. Há necessidade de uma frente
popular. Há necessidade de politizar a política.
.oOo.
Céli Pinto é Professora Titular do Departamento de História da UFRGS.
Original disponível em: (http://www.sul21.com.br/jornal/a-gestacao-de-um-golpe-por-celi-pinto/). Acesso em 13/abr/2016.