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segunda-feira, 24 de agosto de 2020

Em defesa de Cesare Battisti (Juca Simonard)

Em defesa de Cesare Battisti:



Em defesa de Cesare Battisti

Cesare Battisti lutou contra o fascismo italiano e está tendo seus direitos violados nas masmorras da Itália



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Cesare Battisti

Cesare Battisti (Foto: Max Rossi / Reuters)



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Por Juca Simonard


Em março do ano passado, após ser extraditado para a Itália, o
ativista político italiano Cesare Battisti admitiu ter participado do
assassinato de quatro fascistas na década de 1970. Esta semana, o
ex-presidente Lula afirmou ter errado ao ter concedido asilo político ao
italiano em 2010. Lula disse que “não foi uma decisão fácil”.


“O Tarso Genro me disse: ‘olha, não dá pra gente mandar ele embora
porque ele pode ser detonado na Itália, e ele é inocente’. Toda a
esquerda brasileira [...] todo mundo defendia que o Battisti ficasse
aqui”, ressalta.


“Eu acho que, como eu, todo mundo da esquerda que defendeu o Cesare
Battisti ficou frustrado. Ficou decepcionado, sabe, e eu não teria
nenhum problema de pedir desculpas à esquerda italiana, de pedir
desculpas à família do Cesare Battisti, por ele ter praticado o crime
que cometeu e ter enganado muita gente no Brasil”, destacou.


O ex-presidente, porém, não percebe o problema para a esquerda e os
trabalhadores no geral, em dizer ter errado ao permitir a permanência de
Battisti no Brasil. O militante italiano representa a luta política de
toda uma juventude daquele país na década de 1970, quando os países
imperialistas do mundo inteiro estavam em uma política de fechamentos
dos regimes e de perseguição política contra a esquerda.


Este período, na Europa, ficou conhecido como anos de chumbo e foi
marcado pela polarização política. De um lado, a direita, sendo em
regimes ditatoriais ou “democráticos”, atacando ofensivamente os
trabalhadores, e do outro, as organizações da esquerda se radicalizando
na luta contra seus governos.



Na Itália, como em diversos países europeus e latino-americanos, a
luta política assumiu, em determinados grupos, a forma da luta armada,
das guerrilhas urbanas. Muitos destes grupos, como a Rote Armee Fraktion
(Alemanha Ocidental) e Proletari Armati per il Comunismo (Proletários
Armados pelo Comunismo - organização de Battisti), se inspiraram na luta
desenvolvida pelos militantes brasileiros, como Carlos Marighella.


Porém, no caso da Itália, em comparação com outros países da Europa, a
situação do país era muito mais complexa. Com a aliança contra
revolucionária do stalinismo com um setor do imperialismo “democrático”
durante a Segunda Guerra Mundial, a política contra o fascismo dos
trabalhadores mobilizados foi travada.


Itália nos anos 70, um regime fascista

Assim como na França, na Grécia e nos países do Leste Europeu, a
Itália, durante o final da guerra, era palco de um processo
revolucionário. Os operários e camponeses estavam armados e se
organizaram na resistência (que popularizou a música Bella Ciao) que
derrubou efetivamente o governo Mussolini. Entretanto, para não entrar
em choque com seus aliados capitalistas, a União Soviética de Stalin,
utilizando-se de sua autoridade política, desarmou os trabalhadores e
compôs um governo com a direita na Itália, alegando que ainda não era o
momento para a revolução proletária. Com base nesta mesma aliança, as
revoluções na França, na Grécia e na Alemanha foram contidas.



Porém, o que se viu na Itália foi uma recuperação de setores
políticos alinhados com o fascismo de Mussolini. Muitos dos funcionários
do Estado fascista foram incorporados no governo de coalizão com o
Partido Comunista de Palmiro Togliatti (o “Stalin europeu”), principal
dirigente do partido que se tornou ministro da Justiça.


Desta forma, a política do stalinismo impediu que revolução na Itália
fosse vitoriosa e varresse do mapa toda a corja fascista que realizou,
por mais de 20 anos, as ações mais brutais contra o povo. Assim,
Mussolini havia caído, mas alguns de seus homens de confiança
continuaram ativos, inclusive com cargos governamentais.


Não é de se espantar que, atualmente, a Itália é um dos principais
pontos da extrema-direita europeia, que chegou ao poder com Matteo
Salvini. Na década de 1970, a situação era parecida. A polarização
política tinha feito ressurgir com força os grupos reacionários, que
como sempre estão integrados nos órgãos de repressão do Estado burguês.


A Itália não era nem um pouco democrática e a política da época era a
continuidade do regime fascista e suas prisões contavam com milhares de
presos políticos. Por isso, contra o terrorismo do Estado, que
assassinou milhares de jovens e velhos militantes, setores da juventude,
inspirados pela luta latino-americana contra as ditaduras (Cuba,
Brasil, Chile, Argentina, Uruguai, etc.) e na mobilização africana
contra o colonialismo (Argélia, Congo, Moçambique, Angola, etc.),
decidiram se organizar em grupos armados para se contrapor à repressão.


Quem são as “vítimas” de Battisti

É neste contexto que surgem os quatro assassinatos admitidos por
Battisti. O PAC surgiu para vingar as vítimas dos fascistas, executando
os carrascos e assassinos do povo. Cabe destacar, no entanto, que a
única prova concreta contra Battisti é ele mesmo ter admitido os casos,
pois até então o processo era absolutamente farsesco e infundado, como revela o autor Carlos Lungarzo, que escreveu o livro “Os Cenários Ocultos do Caso Battisti”.


Artigo publicado no Diário Causa Operária em dezembro de 2018 mostra que:


“De acordo com Lungarzo, apoiado em suas investigações, a ‘pretensa
culpabilidade de Battisti’ foi ‘forjada pelos delatores e os
magistrados’. As sentenças contra ele e outros militantes do PAC
proferidas em 1981 e 1983, ao contrário das outras, não tiveram o mínimo
de difusão por parte das autoridades e da imprensa italiana, justamente
porque mostram que Battisti foi acusado somente de ‘crimes políticos’ e
não de homicídio. Isto é, ele era um preso político.”


“Para conseguir extraditar Battisti para a Itália, em 2004 a França
teve acesso a documentos do Estado italiano que mostram que, nas
sentenças de 1981 e de 1983, a acusação contra ele é de ter cometido
delitos políticos. Foi apenas depois de 1983, com a sentença de 1988,
que se incluiu o crime de homicídio (apesar de não ter havido
indiciamento, denúncia e acusação, que são as etapas anteriores a uma
condenação). Isso só ocorreu após a captura de Pietro Mutti (um dos
líderes do PAC) que, após ser torturado, delatou Battisti acusando-o de
estar envolvido em assassinatos.” (DCO nº 5492 – 16/12/18 – domingo)


Porém, com Battisti admitindo o crime (não se sabe em que
circunstâncias), vale ressaltar quem são as figuras que foram
executadas.


“As ‘pobres’ vítimas das execuções eram, na verdade, torturadores,
assassinos e fiéis colaboradores de organizações fascistas e do próprio
Estado italiano, herdeiro da ditadura de Mussolini. A seguir, exibimos
informações das ‘vítimas’, colhidas na investigação de Lungarzo e
apresentadas em seu livro:



Antonio Santoro, assassinado em 1978, era chefe dos
carcereiros da prisão de Udine, onde Battisti fora mantido preso. Foi
descrito em vários documentos como
organizador de torturas e violador dos direitos dos presos.
As autoridades registraram diversas denúncias de presos e seus
familiares contra ele. As delações e os comentários dos juízes são
divergentes sobre seu assassinato.



Lino Sabbadin, morto em 1979, era açougueiro do
Vêneto e filiado ao mais tradicional grupo fascista herdeiro de
Mussolini, o Movimento Social Italiano (MSI), segundo o próprio jornal
de direita Il Giornale. Esse grupo paramilitar
executava a sangue-frio pessoas marginalizadas, como mendigos e delinquentes. Segundo Lungarzo, Sabbadin também era membro do grupo parapolicial Maioria Silenciosa, que atacava sindicalistas e estudantes em piquetes.


Pierluigi Torregiani, morto também em 1979, era
joalheiro em Milão e também integrava a Maioria Silenciosa. Andando em
locais perigosos com joias caras, ele
procurava o confronto com assaltantes a fim de matá-los, sempre portando armas e vestindo coletes à prova de balas, de acordo com o jornal La Reppublica.


Quase todos os jornais importantes da Itália (como La Reppublica,
Corriere della Sera, Il Giornale e La Notte) noticiaram um tiroteio em
um restaurante de Milão provocado por Torregiani, quando dois
assaltantes haviam entrado no local e rendido os clientes. O joalheiro,
então, junto com um amigo,
matou um dos assaltantes e um comerciante, além de ferirem outros dois homens, conforme coincidem muitos analistas em suas versões do ocorrido.


O La Notte e o La Reppublica chamavam Torregiani de ‘xerife pistoleiro’ e ‘jagunço’. Ele exibia orgulhosamente em sua joalheria a foto do cadáver do ladrão que ele matou no restaurante. Ou seja, era um carniceiro fascista.


Andrea Campagna, também executado em 1979, era
motorista da Divisão de Investigações Gerais e Operações Policiais
(DIGOS), um departamento investigativo da polícia. Como motorista
policial, ele levava os detidos do PAC entre a prisão e o tribunal de
Milão. Militantes o acusaram de
torturar os prisioneiros que ele deslocava.” (Idem.)


Uma tática errada, porém justificada

É fato, porém, que as vítimas de Battisti não eram inocentes, mas
verdadeiros carrascos da população à mando dos fascistas. A tática,
alguns dirão, é errada. De fato, é errada, pois o terrorismo como arma
de luta política da esquerda já foi superado há muito tempo pelos
marxistas. Lênin, Marx e Trótski têm diversos escritos denunciando esta
forma de luta política.


Porém, mesmo reconhecendo o erro e criticando-o, eles nunca trataram
de linchar os que utilizam este método, fazendo coro com a direita
fascista contra os guerrilheiros. O que eles pontuaram é que o
terrorismo não é efetivo na luta política da classe operária. A tática
se limita a focos que lembram a atuação dos anarquistas russos e
franceses anteriores a Marx e Lênin, e no geral não mobiliza a classe
operária e não ajuda na construção do partido revolucionário.


Essa tática (errada), entretanto, era comum entre a esquerda europeia
e latino-americana (e até norte-americana - ver Weather Underground).
Neste sentido, Battisti pode ser facilmente considerado o Carlos
Marighella italiano. Marighella também usou táticas terroristas contra
os inimigos do povo. A organização do brasileiro, Ação Libertadora
Nacional (ALN), junto com o MR-8 participou, por exemplo, do sequestro
do embaixador norte-americano Charles Elbrick, entre outras coisas.


Assim, o papel da esquerda é de vangloriar estes militantes, por mais
erradas que fossem as suas táticas, pois eles tiveram a coragem de
enfrentar os fascistas e ditadores e de pegar em armas contra eles,
sabendo que poderiam ser assassinados em uma conjuntura tão
desfavorável.


Battisti sentenciado à morte pelo Estado italiano

A esquerda, porém, independentemente do caso - seja de Battisti ou
qualquer outro prisioneiro do Estado capitalista - precisa sempre
defender os direitos humanos das pessoas privadas de liberdade. No
Brasil, os direitos mais básicos são frequentemente violados e os presos
são jogados em masmorras que dão inveja ao Inferno de tão ruim. Na
Itália, a situação do ex-militante comunista não é diferente.


O advogado do italiano Davide Steccanella tem denunciado
sistematicamente que as condições de Battisti estão cada vez pior. O
ex-integrante do PAC, com 65 anos, tem hepatite e prostatite e denuncia
que a comida da prisão lhe está fazendo mal. Diante disso, foi
solicitado o direito de cozinhar ele mesmo sua comida - o que é
permitido para outros detentos.


O advogado, porém, em entrevista ao jornal Il Dubbio ressalta que o pedido foi distorcido pela imprensa capitalista, que passou a desmoralizar a reivindicação.


“Como sempre, foi feita uma instrumentalização vergonhosa. Battisti
manifestou sobre o seu estado de saúde e não se queixou do cardápio na
prisão, como disseram, mas ele simplesmente pediu ao magistrado a
possibilidade de poder cozinhar em sua própria cela os alimentos que são
destinados  e adequados para ele, o que é um direito concedido a
todos”, disse Steccanella.


“Ele exigiu seu direito, assim como é dado à outros detentos, de
cozinhar alimentos compatíveis com o seu estado de saúde em suas celas,
porque ele notou uma piora de sua condição de saúde após o consumo de
alimentos da prisão”. (Il Dubbio - 13/07/2020)


O preso político italiano está tendo seus direitos abusados quando as
autoridades italianas negam-lhe um fogão em sua cela - direito ao qual o
restante dos prisioneiros italianos têm acesso. Isso, todavia, é apenas
uma das situações em que ele está sendo exposto e é importante pois o
afeta diretamente sua saúde.


Segurança máxima, solitária ilegal e tentativa de isolá-lo de familiares e advogados

No geral, não bastasse o processo totalmente fraudulento - denunciado
por Lungarzo - do qual foi vítima, Battisti continua tendo seus
direitos violados pela Justiça italiana. Além de ser linchado pela
imprensa burguesa, que o trata como um dos maiores bandidos da história,
o preso político “se encontra em isolamento ilegítimo, há um ano”, segundo o advogado.


Steccanella argumenta que “o ministério o classificou como ‘As2’
(regime de alta segurança) em uma prisão onde se sabia não haver outros
prisioneiros na mesma situação. O que significa que, após os seis meses
de isolamento estabelecidos pelo tribunal depois de 41 anos [da
realização dos crimes], ele deveria ser colocado num regime de detenção
igual a todos os outros”.


“Eles conseguiram mandá-lo para um isolamento de fato, irreversível,
que ainda perdura. Escrevi para o presidente do DAP, para o diretor,
para o administrador, para todos, relatando a detenção ilegítima em prisão solitária que dura mais de um ano.
Ninguém me respondeu, exceto por uma conversa que tive na prisão com a
qual foi explicado que a desclassificação ao As2 foi rejeitada”,
reforçou.


E continua: “Mais de 6.000 pessoas foram condenadas pelos eventos
daqueles anos, nenhuma delas esteve sob o regime de alta segurança,
então eu gostaria de entender por que fazê-lo 40 anos após os fatos. Que
tipo de segurança é necessária? Escrevam-me! Mas não é possível obter
uma resposta. Não creio que um Estado democrático possa omitir o
fundamento de tal medida”.


“Os primeiros seis meses, após a prisão em janeiro de 2019, foram
realmente previstos pela sentença que o condenou à prisão perpétua por
quatro assassinatos, mas o ano seguinte não”, informa Tiziana Maiola no
jornal Il Riformista. (Il Riformista - 12/05/2020)


O defensor denuncia que a Justiça ainda está orquestrando para isolar
Battisti de todos os seus familiares. Hoje, ele consegue falar com seu
filho de seis anos por Skype, mas essa permissão só ocorreu após um ano.
Foi um ano sem conseguir contato com seu filho mais novo e isto só foi
permitido pois foi feito “o impossível”, segundo o advogado.


Além disso, Battisti está sendo prejudicado porque deve permanecer em
regime de alta segurança em Oristano, na ilha da Sardenha, quando seu
destino era Rebibbia, em Roma, e suas condenações finais ocorreram em
Milão. O único motivo para isso é o caráter persecutório que impuseram
ao condenado, querendo isolá-lo de sua família e de seu advogado,
complicando as condições para que seja visitado no cárcere.


Steccanella ainda denuncia que a Justiça está procurando enviá-lo
para Rossano Calabro, em uma comuna no extremo Sul do país, em região
pouco habitada, “ainda mais longe da família – que não tem recursos para
pagar as visitas – e do defensor”.


“Não se pode viver sem sequer poder falar com alguém – diz seu
advogado, Davide Steccanella – isso é uma forma de tortura. Como não há
outros presos com essa classificação em Oristano, ele está condenado ao
silêncio de um túmulo. Se ele sai para a ‘hora do ar’, os outros têm que
voltar. ​O advogado não o vê há dois meses, apenas o escuta por
telefone por alguns minutos (então a linha sempre cai) como ontem de
manhã”. (Idem)


O acordo assinado com o Brasil, entretanto, previa que Battisti
deveria ser submetido ao regime comum e não a regimes especiais, pois os
“crimes” ocorreram em 1979. “No entanto, o Ministério decidiu, no seu
julgamento inquestionável, que deve ser mantido sob alta vigilância. E,
como alternativa, enviá-lo para Rossano, juntamente com terroristas
islâmicos”, destacou o advogado. Ou seja, até o acordo desfavorável
assinado com o Brasil está sendo violado.


Soma-se a tudo isso que já foi exposto o fato de que Battisti pediu
prisão domiciliar em maio deste ano, enquanto a Itália estava no auge da
pandemia do coronavírus, por risco de contrair Covid-19, que para uma
pessoa no seu estado de saúde seria fatal.


“Ele é um homem idoso, um pensionista, se não estivesse na prisão,
doente e preocupado com um possível contágio de Covid-19. Apesar de sua
situação isolada com a classificação de alta segurança na prisão de
Oristano, ele mantém contatos com o pessoal da penitenciária. Um homem
idoso com hepatite B e infecção pulmonar pode correr alguns riscos
sérios se um único agente se comportar de maneira imprudente. Pela sua
idade e por seu quadro clínico”. (Idem)


O artigo de Maiolo termina desta forma e não acho necessário acrescentar nada mais além disso:


“​Como permitem que um terrorista, dizem os grandes jornais em coro
hoje, peça prisão domiciliar? Mas ninguém se pergunta por que na Itália
um prisioneiro é mantido há mais de um ano em uma espécie de buraco
negro, isolado, correndo o risco de enlouquecer. E por que, então, na
Sardenha, longe de todos, parentes e advogados, quando todos os seus
julgamentos foram realizados em Milão, a cidade onde existem três
prisões, uma das quais, Opera, é altamente segura? O advogado
Steccanella está certo, isso é tortura. Ou seja, algo muito sério a
pedir contas ao ministro Bonafede e aos novos chefes do Departamento de
Administração Prisional”. (Idem)


*A tradução das reportagens italianas para o português foram publicadas pelo blog Cartas de Cesare