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domingo, 5 de fevereiro de 2012

CNJ Independente. O papel do CNJ, a PEC dos Recursos e outras coisas (Min. Gilmar Mendes, Entrevista)...


Entrevistas

5fevereiro2012
PAPEL ESTRUTURAL

“A tarefa mais importante do CNJ é de planejamento”

Quem presenciou a veemência com que o ministroGilmar Mendes defendeu a competência originária do Conselho Nacional de Justiça na sessão da última quinta-feira (2/2), no Supremo Tribunal Federal, pode ter ficado com a impressão de que ele considera o poder de investigação do órgão a mais importante de suas atribuições. Não é por menos. Entre outras coisas, Mendes afirmou que “até as pedras sabem que as corregedorias não funcionam quando se cuida de julgar os próprios pares”.
Mas, para o ministro, o poder de investigação não é o papel mais relevante do Conselho. “O CNJ tem um papel multiforme, variado. Eu diria que a tarefa de planejamento é mais importante, a tarefa de interpretação, de produção, de seleção de dados e de comunicação de dados, para o planejamento, o diagnóstico para as ações”, afirmou. Trocando em miúdos, Gilmar Mendes defendeu, na verdade, a integridade e o poder normativo do órgão que têm a responsabilidade de tocar o planejamento estratégico da Justiça. Nesta seara, o poder de correição sobre os juízes é apenas uma das facetas do CNJ.
A solução para a lentidão que marca os processos judiciais brasileiros e a sonhada conclusão mais rápida das ações penais não serão alcançadas sem um trabalho sistêmico que parta não apenas do Poder Judiciário. É necessário o trabalho conjunto de todos os órgãos que direta ou indiretamente estejam envolvidos com o sistema de distribuição de justiça no Brasil.
Para o ministro Gilmar Mendes, pouco adianta discutir formas antecipar etapas ou restringir recursos para os tribunais superiores e para o Supremo Tribunal Federal se nada for feito para que os órgãos estatais por onde passam os problemas antes de desaguar em forma de processos no Judiciário funcionem razoavelmente bem.
“O Conselho Nacional de Justiça descobriu, em Alagoas, quatro mil homicídios sem sequer o inquérito aberto. Diante desse quadro, de problemas dessa gravidade, eu vou discutir recursos criminais no Superior Tribunal de Justiça e no Supremo?”, questiona o ministro. É a partir desse ponto de vista que Mendes classifica a PEC dos Recursos, idealizada pelo presidente do Supremo Tribunal Federal, Cezar Peluso, como “uma boa metáfora”.
O ministro recebeu a ConJur em seu gabinete para conceder uma entrevista para o Anuário da Justiça Brasil 2012, que será lançado em março. Na conversa, defendeu que a Justiça criminal seja analisada como questão de segurança pública. De acordo com Gilmar Mendes, é necessário traçar uma estratégia de segurança pública global, cujo foco parta dos problemas encontrados desde o inquérito até a ressocialização dos egressos do sistema penal. “A Justiça é um cenário importante, mas é apenas um dos cenários. É preciso integrar os sistemas e ter uma visão menos compartimentada do fenômeno”, afirmou.
Leia os principais trechos da entrevista
ConJur — Qual é o papel do CNJ?
Mendes — O CNJ tem um papel multiforme, variado. Sua principal função não é a investigação. Eu diria que a tarefa de planejamento é mais importante, a tarefa de interpretação, de produção, de seleção de dados e de comunicação de dados, para o planejamento, o diagnóstico para as ações. É mais importante saber se temos uma distribuição adequada de juízes a partir dos resultados obtidos. A tarefa normativa de regular, de disciplinar, pode ser mais importante porque, com isso, se evita uma série de desvios. Se existe uma boa disciplina em matéria de distribuição de processos, um sistema eletrônico de distribuição de processos, se evita a falta na distribuição. E com isso se elimina uma série de problemas conhecidos, de desvios, de liminares, que às vezes nem envolve o juiz, mas toda uma estrutura viciada. É preciso disciplina para que o juiz realmente esteja na comarca. Regras básicas que já estão previstas. Por outro lado, sabemos que as corregedorias têm muita dificuldade para fazer investigações nos tribunais. Então, impõe-se a ação do CNJ de forma direta. Agora, imaginar que o CNJ vai sair a investigar cada juiz sobre o qual houver uma denúncia é ilusão.
ConJur — O senhor presidiu o CNJ por dois anos. Nesse período, viajou muito pelo país e teve contato a realidade do Judiciário nos mais diferentes lugares. A Justiça tem jeito?
Mendes — Sim. É muito comum a mídia dizer que o Judiciário é o menos transparente dos poderes. Não é verdade. Na minha gestão, divulgamos todos os dados da Justiça e reclamamos que os tribunais divulgassem. Isso continua de alguma forma. A diferença do Judiciário em relação aos demais poderes é que, em geral, os casos de desvios que se tem verificado em outros poderes são revelados a partir de investigações heterônomas, de fora do sistema. É a mídia que descobre um desvio de um deputado, de um senador, de um integrante do Executivo. No Judiciário, não. São através das atividades normais de correição que se descobrem os desvios. O CNJ revelou muito. Esse é um dado importante que precisa ser destacado. Temos hoje setores do Judiciário funcionando bem. Temos também que reconhecer que a sociedade está estruturada de forma a depender muito do Judiciário quando falamos de 80 milhões de processos. E talvez haja uma demanda recôndita de mais alguns milhões de processos. Todos os setores novos que estão se incorporando à economia de forma vital certamente vão trazer novas demandas se não nos organizarmos de outra maneira. Pense que criamos os juizados especiais federais esperando ter 200 mil processos e temos lá 2,5 milhões. Isso em 10 anos.
ConJur — Doze vezes mais do que se imaginou.
Mendes — Veja como se planeja esse contexto. Mas, ao mesmo tempo, isso revela alguma coisa: ou o cidadão vai para o Juizado Especial ou fica à deriva. Precisamos pensar na relação da Justiça com a sociedade. À medida que o aparato judicial fica mais eficiente, ele atrai mais demanda. É o caso dos juizados especiais federais. Uma expectativa de 200 mil processos se transforma em 2,5 milhões. Talvez a maior repartição hoje da Previdência e assistência social seja o Juizado Especial Federal. Temos mais processos hoje nos juizados especiais federais do que na Justiça Federal como um todo. O que isso significa? Significa que nós temos que encontrar novas formas institucionais para responder a isso e melhorar o serviço público em geral.
ConJur — Evitar que as demandas sejam ajuizadas?
Mendes — Sim. Imaginemos outro campo, como o do Direito do Consumidor. Hoje temos o Procon que funciona razoavelmente bem, com variações de estado para estado. Mas ele não tem força vinculante. Então, se alguém faz um acordo no Procon e esse acordo não é cumprido, a causa é judicializada. Precisamos discutir novas formas de organização. Dos 80 milhões de processos que falamos, temos 30 milhões de execuções fiscais, que são as cobranças dos créditos da Fazenda Pública. Muitas vezes ajuizadas na última hora para não ter problema de prescrição. Créditos muitas vezes inviáveis. Será que nós não conseguimos pensar outras formas de resolver essas questões?
ConJur — A execução fiscal administrativa seria uma saída legítima?
Mendes — Alguma coisa do tipo. Ou mesmo mecanismos outros de constrição. Um processo de execução certamente deve custar R$ 1,5 mil, no mínimo. Diante disso, como cobrar um IPTU de R$ 100? Isso também não é educativo na medida em que as pessoas verificam que vale a pena não pagar porque também não será executado. Ou porque a execução vai ser frustrada. Então, é necessário repensar todas essas questões que envolvem a cultura judicialista.
ConJur — Há um projeto de lei no Congresso que prevê a execução fiscal administrativa, inclusive dando poderes para a Fazenda fazer a constrição de bens sem a mediação do Judiciário. O que o senhor acha desse projeto?
Mendes — Há uma discussão em torno disso. Tenho a impressão que há possibilidade de se fazer um modelo institucional que permita o controle judicial no momento adequado e que evite essa judicialização em massa de ações inviáveis. Eu sei que há muito desconfiança com relação àquilo que a administração faz. E não exatamente por mera suspeita, mas porque há abusos também.
ConJur — Não é uma desconfiança imotivada...
Mendes — Não. Vimos o caso, por exemplo, da quebra de sigilo bancário feita pela Receita Federal e os episódios não muito distantes de manipulação da Receita para esse fim. É preciso que haja o devido tempero. Mas certamente é possível pensar-se em formas que aliviem o Judiciário dessa sobrecarga que o onera. Porque, a rigor, a execução fiscal virou símbolo de não efetividade. Se nós fomos olhar o índice de efetivação, da transformação do crédito pretendido em algo efetivo, verificaremos que é muito baixo.
ConJur — No ano passado, o senhor alertou para uma crise numérica que se avizinhava, que era a do volume de Habeas Corpus. A crise chegou. Os ministros do STJ recebem, por dia útil, cerca de 30 pedidos de HC com liminares. O senhor acha que há abuso no manejo de Habeas Corpus hoje?
Mendes — Mentalmente sempre é possível pensar em novas formas. Agora, o que nós temos, em uma avaliação simples, é um índice de concessão de Habeas Corpus que chega a 30%, por exemplo, na 2ª Turma do Supremo. É um índice alto depois de o problema ter passado por todas as instâncias. E um olhar atento verificará que estamos discutindo a prisão provisória, a denúncia recebida em primeiro grau, detalhes do processo criminal na sua origem. Algumas vezes, questões ligadas à demora na prisão provisória e coisas do tipo. Então, diante desse quadro, como justificar a restrição ao Habeas Corpus? Já se pensaram várias formas. Por exemplo, que a lesão terá que ter sido perpetrada no tribunal imediatamente inferior ao Supremo. Mas como separar uma coisa da outra do ponto de vista de efetividade?
ConJur — Uma prisão injusta decretada pelo juiz de primeiro grau tem o mesmo efeito da prisão injusta do STJ...
Mendes — Exatamente. E não vamos esquecer que já corrigimos muitos constrangimentos aqui no Supremo por meio de Habeas Corpus. Denúncias por erro de preenchimento de guia, casos de crimes famélicos, outros que se encaixam no princípio da insignificância. De novo, talvez tenhamos soluções estruturais, como uniformizarmos os nossos entendimentos, do Supremo e do STJ. Talvez devêssemos ter um diálogo, quebrar esses muros, essa separação entre as instâncias. Ou seja, temos de pensar a Justiça criminal como um todo.
ConJur — O número de pedidos de Habeas Corpus que chega ao Supremo diariamente chega a ser um problema como no STJ? Chega a congestionar?
Mendes — Não. Eu posso responder pelo meu gabinete. E nós estamos praticamente em dia com o julgamento de Habeas Corpus. Mas volto ao ponto. É necessário que essa discussão seja feita em um contexto mais amplo. Temos de tentar uniformizar os critérios. Eu imagino que os juízes estejam perplexos com as nossas próprias decisões a propósito do princípio da insignificância.
ConJur — Por quê?
Mendes — Porque a toda hora tem um detalhe diferente. Uma coisa é um sujeito quebrar o vidro de um carro para tirar um CD. Aí nós decidimos que, apesar do valor ínfimo, houve a ruptura de um ambiente, uso de violência, e consideramos então que não há de se reconhecer o princípio da insignificância. Agora, outra coisa é romper, há poucos dias tivemos isso, um lacre de uma roupa de uma loja de roupas. Então nós decidimos que isso não é ruptura. E geramos uma perplexidade. Talvez devêssemos, fora da emissão de juízos nos casos concretos, tentar uniformizar esses conceitos de forma mais objetiva por meio de um diálogo no âmbito do próprio Judiciário.
ConJur — A Súmula Vinculante e a Repercussão Geral fizeram cair o número de recursos que chegam ao Supremo. Mas o volume ainda é grande. É necessário criar novos filtros?
Gilmar Mendes — Antes nós temos, no mínimo, que exaurir toda a potencialidade desses institutos. E certamente não estamos aplicando-os em toda extensão. Por exemplo, nós reconhecemos a repercussão geral de muitas questões, suspendendo os processos que tramitam em todas as instâncias, mas não damos a devida vazão aos leading cases. Isso tem implicações, porque acabamos por retardar a definição de importantes questões. O Supremo precisa trabalhar com esse foco, de julgar mais rapidamente os casos de repercussão geral. Sabemos que isso é difícil porque a pauta é tumultuada e há os inevitáveis pedidos de vista. Precisamos melhorar inclusive na questão dos pedidos de vista, talvez limitar o prazo. E isso vale para todos nós.
ConJur — Como? Por meio de uma norma regimental fixando prazo máximo para pedidos de vista?
Mendes — É. Alguma coisa que se aplique efetivamente, porque já foram feitas várias tentativas.
ConJur — Faz tempo que o Supremo não aprova súmulas vinculantes. Por quê?
Mendes — Precisamos também voltar a focar nas súmulas e dar-lhes a atenção devida. A edição de súmulas vinculantes é um fator de inibição de subida de processo, de segurança jurídica e de orientação para os tribunais.
ConJur — Não faz muito tempo que o Supremo declarou inconstitucionais benefícios fiscais concedidos pelos estados, que provocam a chamada guerra fiscal. Ainda assim, há estados concedendo benefícios fiscais em relação a ICMS, por exemplo. Esse é um caso de súmula vinculante?
Mendes — Talvez, em algum momento. Mas esse é um caso que reclama certa ponderação porque nos coloca diante de uma questão política muito delicada, que é a falta de políticas regionais e de gestão. Então, eventualmente, precisamos levar isso em conta. O governo federal, obviamente, não se anima a entrar nesse debate porque terá eventualmente que pagar a conta. Isso envolve discussões sobre dívidas, políticas regionais e, necessariamente, novos recursos. Por isso é um tema tão solto que se transforma na selva que está aí. Do ponto de vista apenas formal, não é difícil o tribunal editar uma súmula vinculante.
ConJur — Mas é preciso considerar a realidade... 
Mendes — E há movimentos do Congresso Nacional, por exemplo, para rever a lei que prevê que o Confaz (Conselho Nacional de Política Fazendária) tenha de aprovar os benefícios por unanimidade. No momento, o ambiente é muito conturbado. Vivemos um momento de repactuação federativa. É notório isso. Há uma série de questões que estão sendo reabertas e o tribunal tem de observar, também, a complexidade delas. Sempre nos deparamos com pedidos de liminares dos estados reclamando, por exemplo, de inscrições no Cadin (cadastro dos devedores da Administração Pública Federal). Há um mosaico com várias colorações na área federativa. Há a guerra fiscal, a questão da dívida pública, os royalties do pré-sal, o Fundo de Participação dos Estados. São exemplos de quatro grandes temas que precisam de uma costuma institucional. É um momento tormentoso, que pode ser venturoso em razão da oportunidade de discutir isso associadamente.
ConJur — A PEC dos Recursos é uma boa saída para dar efetividade para as decisões judiciais?
Mendes — Acredito que não. Embora a PEC seja abrangente, toda sua justificativa é a impunidade na área criminal. Mas aí há uma série de problemas que começam no inquérito. Por exemplo, o Conselho Nacional de Justiça descobriu, em Alagoas, quatro mil homicídios sem sequer o inquérito aberto. Eram quatro mil homicídios, sem dúvidas. E nem inquérito tinham. Diante desse quadro, de problemas dessa gravidade, eu vou discutir recursos criminais no Superior Tribunal de Justiça e no Supremo? Há crimes de competência de tribunal do júri com ameaça de prescrição no Brasil todo. Pernambuco, por exemplo, tem mil casos de júri para prescrever em torno de Jaboatão do Guararapes (cidade da região metropolitana de Recife).
ConJur — Mas esses crimes não prescrevem em 20 anos?
Mendes — Exato. São homicídios e tentativas de homicídio, que são de competência de júri, que prescrevem em 20 anos. E aí eu vou discutir recurso nos tribunais? É esse o problema da Justiça criminal? Quer dizer, vamos olhar para a estrutura e melhorar. Aqui no Supremo, por exemplo, com a criação dos cargos de juiz instrutor, com foco, dando certa prioridade aos processos criminais, começamos a julgar. Mas há um trabalho de estrutura por trás disso. Criamos uma secretaria para tratar do tema, passamos a verificar os casos no tribunal, criamos a figura do juiz instrutor e evitamos a delegação. Os processos criminais passaram a ter resultados, a despeito dos problemas de tempo. O STJ pode fazer a mesma coisa. O Judiciário tem de melhorar muito em termos de estrutura. Diante disso, a PEC dos Recursos é uma boa metáfora. A idéia é uma boa metáfora.
ConJur — Em defesa da PEC dos Recursos, o presidente do STF deu o exemplo do caso do jornalista Pimenta Neves que, condenado, recorreu tanto que só foi preso quase 11 anos depois do assassinato da Sandra Gomide. Esse não é um exemplo que justifica a proposta?
Mendes — Observe que o Pimenta Neves levou seis anos para ser julgado pelo Tribunal do Júri em São Paulo. Então, a maior demora não ocorreu nas demais instâncias, mas sim na originária. Voltamos ao problema da estrutura, não dos recursos, já que demorou seis anos para que ele fosse condenado em primeiro grau. Percebe-se muita mística em torno desse assunto. E é um remédio que causa muito mais males do que benefícios, a meu ver. E criará problemas sérios. O Recurso Extraordinário passaria a ter efeito rescisório. Mas quando nós revertêssemos, por exemplo, uma condenação em desapropriação, o dinheiro já não teria sido gasto? As funções do Supremo e do STJ passariam a ser comprometidas no Recurso Extraordinário e no Recurso Especial. Podemos usar os remédios normais. Precisamos fazer a Justiça usar, e dispomos hoje de mecanismos para fazê-lo, metas, julgamentos, foco na área penal, associar isso com segurança pública. Quer dizer, o país precisa se estruturar em torno disso. 
ConJur — O CNJ vinha dando grandes avanços nesse sentido, não?
Mendes — Sim. E é necessário se estruturar para fora do Judiciário. A questão da Justiça criminal é uma questão de segurança pública. Alguém que pertence a uma organização criminosa é preso e, depois de três anos, é solto. Por quê? Porque a Justiça não consegue julgar. Isso é um problema de segurança pública. Tudo isso precisaria ser visto dentro de uma estratégia. Por isso que nós lançamos há tempos a idéia de uma estratégia de segurança pública, com focos para terminar os inquéritos, terminar os processos, começar a tomar determinadas medidas no processo criminal. Isso precisaria ter segmento. Mas não como tarefa apenas do Judiciário. Isso é uma tarefa de todos os órgãos envolvidos com o problema. É necessário atentar para a ressocialização. A Justiça é um cenário importante, mas é apenas um dos cenários. É preciso integrar os sistemas e ter uma visão menos compartimentada do fenômeno.
ConJur — O Ministério Público pode fazer investigações criminais?
Mendes — Essa é uma questão que está em aberto. O Supremo tem dado respostas tópicas, especificas. Por exemplo, quando o Ministério Público exerce a função de controle da polícia, entendendo que esse é um dado quase inevitável. Do contrário, nós teríamos uma situação de endógena que é a polícia se investigando, o que nem sempre é razoável ou plausível de se admitir. Mas há situações mais complexas que talvez envolvessem um critério de subsidiariedade. Acredito que a lei pudesse nos ajudar mais para definir claramente o quadro institucional que a Constituição preconiza e também divisar situações em que o trabalho conjunto ou até complementar do Ministério Público pudesse ser desempenhado. O grande problema é afirmar que essa competência é concorrente. Até porque nós sabemos que, diante de uma falta de definição, de quem vai fazer isso, pode haver certa manipulação, certa ansiedade por parte de agentes do Ministério Público.
ConJur — É necessário adotar critérios para definir em quais casos ou momentos o MP deve atuar?
Mendes — Exatamente. Que tipo de opção preferencial vai fazer o agente do Ministério Público? Haverá grupos encarregados dessa missão? Isso tudo precisaria de regras e de definições institucionais muito mais claras. Eu não vejo dificuldades de se pensar em uma atividade do Ministério Público nessa área, mas é preciso que haja cuidado sob pena de se criar uma insegurança jurídica. Nós tivemos um caso de Habeas Corpus em que alguém era investigado há dois ou três anos pelo Ministério Público e soube disso quando se divulgou a notícia no jornal. Quando se abre um inquérito contra alguém, se sabe que há um inquérito contra alguém. Agora, quando se faz esse tipo de investigação a partir da gaveta de um membro do Ministério Público há um quadro de total falta de controle, inclusive, do processo de investigação. Então, há muitas questões que precisam ser devidamente esclarecidas. Não se pode dizer que a investigação por si só é absurda, até porque muitas vezes o membro do Ministério Público dispõe de condições adequadas de realizar o trabalho. Mas é preciso que haja realmente algumas definições legais e institucionais.
ConJur — A União pode ser condenada a indenizar vitimas de erros em investigações policiais?
Mendes — A investigação, por si só, não viola as regras básicas do Estado de Direito, desde que se saiba que ela tem um motivo plausível. Ainda que as pessoas estejam sendo investigadas de práticas de atos absolutamente lícitos ou transparentes, se isto não era claro desde o início, muitas vezes a investigação até propicia à pessoa a oportunidade de esclarecer. Então, não se pode dizer que toda e qualquer investigação que resultar, depois, em um juízo de não responsabilização, de não responsabilidade do eventual investigado, deve resultar em uma condenação por danos no plano cível. Mas temos muitas nuances nessas situações, em que nós temos que considerar o plano fático. Por exemplo, se não houve precipitação no envolvimento das pessoas, se não era possível, a partir de um levantamento preliminar e de algum esclarecimento, já pré excluir a acusação. Porque sabemos que o inquérito, por si só, causa danos, às vezes maiores, às vezes menores, na vida das pessoas. Há impactos sérios.
ConJur — Nos últimos anos, o Judiciário vem ocupando um espaço que muitos reclamam que seria do Legislativo. Há casos recentes de decisões sobre aposentadoria especial, regulamentação do aviso prévio proporcional, união homoafetiva. O que provoca esse movimento? A omissão do Legislativo?
Mendes — Não. Há razões diferentes em cada caso. Nós temos um texto constitucional que prestigia imensamente os direitos fundamentais na mais variada dimensão possível. E que outorga ao Judiciário um papel de garantidor desses direitos fundamentais. Daí, então, a inevitabilidade, muitas vezes, de o Judiciário ser cobrado e dar respostas para as diversas demandas. Isso acontece em um quadro de A a Z. De abusos nas prisões à falta de atendimento na área da saúde. O Judiciário atua a partir do reconhecimento de que há um direito constitucional assegurado. Aí se reclama: “Ah, o Judiciário está causando despesas. Está interferindo na vida administrativa”. Na área da saúde tem muito esse tipo de reclamação.
ConJur — Mas a pessoa vai ao Judiciário por causa da omissão do Estado...
Mendes — Sim. Será que não estamos executando políticas públicas de maneira deficiente? Será que se o Judiciário fosse ausente esse quadro não estaria pior? Como vai proceder o juiz diante desse tipo de situação? Como agir diante da falta de vagas em UTI, da falta de medicamentos, do não atendimento a doentes crônicos? Claro, haverá sempre idiossincrasias, peculiaridades. “Ah, deu uma liminar para que alguém fosse tratar vitiligo em Cuba”. Para isso, tem remédio processual. Mas, na maioria dos casos, nós vemos que há falha na prestação do serviço. Agora, há casos de omissão legislativa, de não feitura da lei, por longos anos. Há exemplos. O caso do direito de greve de servidores públicos, a recente discussão sobre aviso prévio proporcional ou sobre a união homoafetiva, que a despeito de vários projetos de lei, nunca foi enfrentada, por diversas razões. De parâmetros, portanto, estabelecidos pelo próprio texto constitucional, o Judiciário acaba por fixar linhas balizadoras das relações, pelo menos até que venha um pronunciamento definitivo do Congresso. Por isso, não me parece que haja exorbitância. Aqui ou acolá pode haver discrepâncias, visões diferentes sobre o assunto. O grande desafio do Judiciário é implementar bem uma carta de direitos tão pretensiosa como é essa constante da Constituição de 1988, que envolve direitos tradicionais como os de liberdade em geral, de caráter negativo, que são sistematicamente violados quando vemos, por exemplo, o estado das prisões brasileiras. E também os direitos positivos, como o direito à educação, à saúde, à assistência social. Todos direitos judicializados.
ConJur — Não é a falta de regulamentação dos direitos constitucionais pelo Legislativo que acaba pressionando mais por essa judicialização?
Mendes — Esse é o ponto. E quando o juiz intervém não se pode dizer que ele está fazendo de forma indevida. Embora tenhamos que ter consciência de que as intervenções tópicas não sejam, em toda a extensão, as mais adequadas. É preciso estimular o desenvolvimento de políticas públicas, ter consciência de que talvez uma ação coletiva fosse muito mais adequada do que uma ação individual. É melhor organizar um serviço público, vamos dizer assim, do que tentar responder à falta de Cibalena ou de medicamentos específicos atendendo a cada pedido que se formule individualmente. Nesse sentido, às vezes, a intervenção judicial tumultua. Mas isso é um aprendizado.
ConJur — Há algo de concreto que o Judiciário possa fazer neste ponto de políticas públicas?
Mendes — Podemos ter o auxílio de peritos para decidir essas questões na área de saúde. Na minha gestão no CNJ, e a ideia teve continuidade com o ministro Peluso, fizemos um plano para tentar criar grupo de peritos voluntários que auxiliem o juiz nessas demandas para que ele não dê respostas extravagantes, para que saiba de fato quando está decidindo sobre um caso grave e que tipo de iniciativa ele pode tomar. E há outras questões, que envolvem política de saúde. A ação do Judiciário pode acabar sendo desorganizadora, tumultuária, onerosa para os cofres públicos. Mas o Estado poderia agir para que os medicamentos tivessem preços compatíveis por meio da quebra de patentes ou com negociações com as próprias multinacionais, como ocorreu no pacote de medicamentos para a Aids.
ConJur — Neste caso, o Brasil se tornou exemplo mundial...
Mendes — Exatamente. Agora, isso não pode ser feito pelo Judiciário. Isso é política pública. O juiz tem que estar consciente de que ele pode estar sendo até cooptado involuntariamente. Tivemos na audiência pública que foi realizada aqui no Supremo a indicação de que havia fraudes. Laboratórios estimulavam o ajuizamento de ações para que determinados medicamentos fossem prescritos. A discussão é complexa. Os juízes apenas sabem que existe nos autos. Alguém precisa daquele medicamento e se ele não tiver argumentos contrários, irá conceder Por falta da implementação devida do serviço.
ConJur — No ano passado, o Supremo discutiu em diversas sessões o direito à liberdade de manifestação e de expressão. Foi o que aconteceu no julgamento da chamada Marcha da Maconha. Quais os limites? É válido defender pacificamente qualquer ideia?
Mendes — Essa é uma questão extremamente delicada. No julgamento, eu chamei a atenção para a necessidade de delimitarmos que estávamos discutindo apenas a questão referente à política de descriminalização das drogas. Porque podemos ter, daqui a pouco, outros tipos de propostas que a própria Constituição não contempla ou até que exija uma proteção especifica para determinados valores.
ConJur — Por exemplo?
Mendes — Se amanhã ocorre a alguém, por motivação religiosa ou ideológica, ou de outra índole, defender a pratica de pedofilia, certamente diríamos que isso é abusivo. Então, é preciso estabelecer limitações. O próprio Supremo já teve a oportunidade de dizer que não se aceitam manifestações racistas ou ataques a determinados grupos que são marcados historicamente por discriminação, como os judeus. Poderíamos fazer manifestações contra pessoas de determinados grupos nas ruas? Temos que ter algum cuidado nessa generalização. Os direitos à liberdade de expressão, à liberdade de reunião, de imprensa, são direitos de função individual, evidente, mas eles têm uma conexão muito clara com o regime democrático. O processo democrático se atualiza a partir do exercício desses direitos, tanto é que a gente diz que esses direitos são funcionalmente relevantes do ponto de vista democrático. Tem uma função democrática importante. Agora, se amanhã alguém começar a sugerir agressões ou ataques, ainda que de índole ideológica, no plano das idéias, a determinados grupos, mas que os expõe ou descrimina, isso não seria razoável dentro de um ambiente democrático. Para isso nós devemos estar atentos. E como a sociedade é muito complexa e inventa sempre novas situações, precisamos ter muito cuidado.
Pedro Canário é repórter da revista Consultor Jurídico.
Rodrigo Haidar é correspondente da revista Consultor Jurídico em Brasília.
Revista Consultor Jurídico, 5 de fevereiro de 2012

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

Brasil tem pacto antiliberal entre elites e governo, diz Persio Arida (Entrevista)...


16/01/2012 - 03h30

País tem pacto antiliberal entre elites e governo, diz Persio Arida

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ELEONORA DE LUCENA
DE SÃO PAULO
O Brasil foi o último país a ter escravidão. Foi o último a ter hiperinflação e tem um regime de remuneração do FGTS que prejudica os trabalhadores. Demorou muito para criar a Comissão da Verdade para apurar crimes da ditadura. Por detrás desses fatos está um pacto antiliberal formado entre elites e governo.
A análise é do economista Persio Arida, 59, um dos idealizadores do Plano Real, que enxerga um denominador comum entre escravidão, hiperinflação e FGTS: "os mais prejudicados são os mais pobres, sempre".
Ex-presidente do Banco Central e hoje sócio do banco BTG Pactual, ele avalia que o primeiro ano do governo Dilma Rousseff foi bem-sucedido do ponto de vista macroeconômico. "É um governo mais austero", declara. Mas diz não gostar do que define como "uma tendência protecionista", revelada do caso do aumento do IPI para os automóveis importados. "Se está protegendo um grupo de multinacionais contra outro grupo de multinacionais", afirma.
Carlos Cecconello - 10.dez.10/Folhapress
Persio Arida é um dos idealizadores do Plano Real
Persio Arida é um dos idealizadores do Plano Real
Arida ataca também o novo reajuste do salário mínimo que, para ele, não distribui renda nem dinamiza a economia e vai "na contramão de tudo que o país precisa".
Ex-presidente do BNDES, ele discorda da atual política da instituição de fortalecer os chamados "campeões nacionais", os grandes grupos. Na sua visão, "quem tem acesso ao mercado de capitais privado não deveria usar recursos do BNDES".
Arida prevê uma trajetória de recuperação para os Estados Unidos e acha que a desaceleração suave na China não vai ter impacto dramático para o Brasil. O maior problema, para ele, está na Europa e no seu sistema bancário. Lá países podem sair do euro isoladamente ou a situação pode ser empurrada com a barriga. Há também possibilidade de nacionalização de bancos.
"Há que salvar os bancos", defende, lembrando que o grande drama da recessão de 1929 foi a quebra dos bancos. "Não se pode repetir os erros de 29", alerta.
A seguir, a entrevista.
Folha: Qual avaliação do governo Dilma?
Persio Arida: O governo Dilma teve o desafio de enfrentar o legado de uma economia excessivamente aquecida em 2009/2010. Optou por fazer um "soft landing", baixando ao mínimo a inflação, para evitar que uma desinflação muito rápida sacrificasse por demais o nível de emprego. O resultado de 2010 foi bom nesse sentido do "soft landing". A inflação reverteu a trajetória de alta, embora ainda esteja no topo da banda. A atividade econômica está desacelerando para a taxa de crescimento brasileira de longo prazo, que é algo entre 3,5% e 4%. Desse ponto de vista, o desafio macroeconômico, que era como lidar com o aquecimento excessivo de 2010, foi bem resolvido para esse ano de 2011.
Não foi um erro ter segurado a economia em demasia no início do ano passado; agora o governo quer estimulá-la novamente. O desaquecimento tem mais a ver com essas medidas do que com a crise no exterior, certo?
O desaquecimento é primordialmente ditado pelas medidas; é um desaquecimento intencional e necessário e foi numa boa medida. A economia brasileira não cresce a taxas de 2010 _são insustentáveis.
Por quê?
Porque é muito acima da taxa de crescimento normal, leva a sobreaquecimento, pressão inflacionária excessiva, gargalos de infraestrutura, falta de poupança doméstica. Há inúmeros fatores que fazem com que a economia não possa crescer a 7% ao ano de forma sustentada.
Então o normal é um crescimento baixo?
O crescimento é o que é. Na economia brasileira hoje a taxa sustentável de crescimento é algo em torno de 3,5%, 4%. Sustentável no sentido de capaz de manter a inflação sob controle e evitar gargalos maiores nos processos de infraestrutura. Para crescer mais do que isso, se precisaria ou ter mais poupança doméstica ou ter mais poupança externa. Mais poupança externa não seria prudente, pois já estamos com déficit de conta-corrente. Para ter mais poupança doméstica teriam que ser feitas reformas estruturais que não vejo sendo encaminhadas no momento. Do ponto de vista macroeconômico foi um ano muito bem sucedido. Essa desaceleração recente da economia brasileira no último trimestre é um pouco enganosa; a economia vai acelerar de novo este ano, ao longo do ano. Acho que 2012, se não houver um percalço maior lá fora, teremos de novo uma taxa de crescimento de 3,5%, 4%.
E inflação, câmbio, juros?
A inflação deve seguir com a tendência moderada de queda. Câmbio é a variável mais difícil de imaginar. É a variável mais suscetível a eventos externos. Depende muito do que acontecer no resto do mundo.
A economia norte-americana está em trajetória de recuperação, o que tende a fortalecer o dólar. Se não houver uma mudança política muito radical nos EUA, a recuperação vai continuar. A política de juro zero com "quantitative easing" norte-americana vai ser suficiente para, ao longo do tempo, fazer com que os EUA voltem à trajetória de crescimento de longo prazo. A China tem outra trajetória de "soft landing", que acho que também vai ser bem-sucedida. Sou mais otimista, acho que a China vai crescer perto de 8,5% neste ano, o que para a China é um "soft landing". O grande desafio é a Europa. É a grande incerteza que tem no cenário.
Como este "soft landing" da China vai afetar o Brasil, já que a ligação entre as economias é muito grande?
Menos do que as pessoas pensam. Porque o "sotf landing" chinês não implica nenhuma redução abrupta da demanda de matérias-primas brasileiras. Tem muito mais a ver com a transformação da China de uma economia primordialmente exportadora para uma economia voltada para o mercado doméstico. A China, por razões de demografia e do próprio desenvolvimento, não consegue mais sustentar taxas de crescimento de 10%, 11% sem pressão inflacionária. Os salários na China estão claramente subindo. A China, que foi uma força deflacionária para o mundo, hoje está deixando de sê-la. A desaceleração da China é consequência do próprio crescimento, primordialmente do mundo e dela em especial. Mas é uma desaceleração relativamente suave, acho que não vai ter impacto dramático nenhum.
Sobre EUA, alguns acham os dados recentes pouco conclusivos para assegurar uma recuperação.
O problema norte-americano é muito parecido com o problema japonês. Acontece quando se tem bolhas imobiliárias e bancos se tornam inviáveis por problema de crédito. O problema dos bancos nos EUA foi em crédito. Foi uma gigantesca bolha de crédito, como no Japão. A pergunta que geralmente se faz é: uma vez que você entra numa bolha de crédito e a bolha explode, se tem um período recessivo prolongado necessariamente ou se consegue encurtar o período recessivo com políticas monetária e fiscal, principalmente monetária? Dependendo de como se responde, se vê o futuro dos EUA. As políticas de juro zero e um agressivo "quantitative easing" do BC norte-americano vão abreviar o período, digamos, recessivo. Em 2013, 2014 vai começar a haver uma certa reversão da política monetária norte-americana. Sou muito mais otimista com os EUA.
E o emprego vai se recuperar?
No emprego a recuperação é mais lenta porque os setores que voltam não são os setores que desempregaram. Setores onde o desemprego tende a ser maciço, o financeiro e o "real state", não são os setores que se beneficiam na volta. Tem um aspecto estrutural no desemprego, porque é difícil para as pessoas mudarem de trabalho, mudar de ramo. Mas vai ser caudatário do processo. Se houver uma recuperação econômica sustentável, mais cedo ou mais tarde o emprego se recupera também. O grande desafio do mundo está na Europa.
E o que vai acontecer por lá? Qual a origem da crise?
Como em toda a crise, é tentador achar uma única origem. Mas é um fenômeno muito complexo. O euro foi uma construção, antes de mais nada, política, não econômica. É um projeto de, via unificação monetária e através da zona do euro, via unificação tarifária, permitindo livre migração, se criar um cimento econômico entre países que evitasse a repetição das tragédias do século 20, as duas Grandes Guerras. Como projeto político é um extraordinário sucesso. A ideia de integrar economicamente e de forma quase mais próxima da irreversibilidade para evitar as tensões políticas que levaram às guerras e conflitos, se demonstrou uma proposição política correta. Como proposição política é um projeto muito bem sucedido, ao contrário do que as pessoas imaginam. A questão é que para fazer sentido economicamente teria que ter sido acompanhada de medidas que não ocorreram.
Quais são os desafios? Primeiro, o federativo. Desafios federativos são muito difíceis de lidar. O Brasil tem uma questão federativa, mas ela não existe politicamente. Exemplos simples: há transferências maciças de renda entre regiões do Brasil, de uma região para outra, entre Estados do Brasil. A regra um homem/um voto não vale no Brasil, porque um votante num Estado vale mais do que de outro. No debate político brasileiro, esses desequilíbrios federativos não fazem parte da agenda. O país, por razões de história, de cultura etc tem convido bem com isso. Mas poderia não conviver. Num país abstrato, a questão da regra de um homem/um voto e a magnitude das transferências de renda seriam um conflito federativo monumental. Só que o país não existe em abstrato, existe numa história. E na nossa trajetória histórica isso não tem importância politicamente. No Brasil, a cidadania não de define localmente, ao contrário do que ocorre na Europa.
Na Europa, a questão federativa, que no Brasil é oculta, é aparente e visível desde a partida. Porque os países continuam independentes e não existe um mecanismo coercitivo entre eles. Não há um mecanismo de ajuda sistemática entre países. Até hoje os vários bancos centrais têm contabilidades internas entre eles etc. Essa questão federativa é uma dimensão muito complexa no problema europeu.
Porque o problema não é o mesmo nos vários Estados. Há países que sempre foram menos responsáveis fiscalmente do que outros. Há uma dimensão fiscal/federativa. Há uma dimensão de balanço de pagamentos entre países que sistematicamente conseguiram lidar bem com a apreciação da moeda conjunta do euro, enquanto outros lidaram mal. E há problemas de condução do processo. A resistência alemã no caso da Grécia é desastrosa. Se você insiste em que haja perdas para os credores de determinado país, como você imagina que seja a reação dos credores do país vizinho? A Europa enfrenta uma crise que é, antes de mais nada, de governança interna.
Se aquilo fosse um país, a Europa teria estatísticas melhores do que os norte-americanos. Teria menos dívida e menos déficit. É uma abstração --aquilo não é um país, mas é preciso ter isso em vista. O problema é federativo, que está desde a partida e nunca foi resolvido. O problema confluiu quando houve a explosão da bolha por razões completamente díspares. A Irlanda era um país com dívida pública muito baixa, que tem uma trajetória fiscal invejável, que se tornou um país problematizado por conta de seus bancos. Na outra ponta, a Grécia sempre teve uma trajetória fiscal reprovada por toda a União Européia, mas que de alguma forma a União Européia permitiu...
E os bancos também, porque emprestaram...
E os bancos também porque emprestaram. Irlanda e Grécia são dois extremos. Como um todo, na Europa hoje há um problema bancário.
Qual é a dimensão bancária do problema?
É muito difícil fazer essa conta porque o teste de estresse que o Banco Central Europeu rodou ficou muito desmoralizado. Fizeram o teste e logo em seguida o Dexia... Falhou. Então não é uma boa medida. Por outro lado, os requerimentos de Basiléia, que seriam uma outra medida, têm uma dificuldade. Se pode calcular assim: para cumprir os requisitos de Basiléia, quanto os bancos deveriam ter de capital. Essa é uma medida que se entende. O que o mercado normalmente olha é quanto os bancos precisam levantar de dinheiro para se financiar. O que é uma medida torta do problema. O problema é a insuficiência de capital. A questão é que lidar com uma crise soberana e uma crise bancária ao mesmo tempo é um problema de extraordinária complexidade. Porque as duas crises são ligadas.
Vamos ter como exemplo um título italiano de dez anos que está hoje vendido a 7%, digamos. Um título do governo italiano, naturalmente, é um título que qualquer banco italiano tem como mais líquido, como em qualquer lugar do mundo. Se você perguntar qual o título mais líquido dos bancos brasileiros, a resposta será: os títulos do governo brasileiro. Se você obriga no teste de estresse que haja um requerimento de capital suficiente a fazer face a um "default" soberano dificilmente os bancos vão conseguir levantar o dinheiro.
Vão ter que ser socorridos pelos Estados.
Ou estatizados.
E o sr. enxerga essa estatização acontecendo de forma mais forte?
A estatização de bancos é sempre o último recurso. Mas é melhor estatizar os bancos do que deixar os bancos quebrarem.
Mas é um cenário possível na Europa, uma onda de estatização bancária?
É difícil imaginar... É muito fácil e tentador traçar cenários, e muito difícil, ao mesmo tempo, traçá-los. Você pode traçara cenários da Europa dissolvendo coletivamente o euro, todos os países saem ao mesmo tempo...
E volta o dracma, a lira, o marco...
Volta o dracma. Tem artigo recente do Robert Barro que sugere uma URV para dissolver o euro.
Um plano Larida [elaborado por André Lara Resende e Persio Arida, que resultou no Plano Real]?
Um plano Larida para dissolver o euro. Seria um Larida para outro propósito. Você tem perspectivas de países saírem do euro isoladamente. Você tem perspectiva de nacionalização de bancos. Você tem perspectiva de empurrar com a barriga por mais um tempo.
O Estado do bem-estar social vai ser desmontado? Há os que dizem que as causas da crise da dívida soberana estão no socorro a bancos, no regime tributário regressivo e houve uma redução da arrecadação de impostos.
A questão do Estado do bem-estar na Europa é pouco entendida. Vou dar um exemplo. A França tem três vezes mais funcionários públicos per capita do que a Alemanha. Nada consta de que o Estado de bem-estar social seja muito pior na Alemanha do que na França. Outro dado. Se você tem seguro-desemprego muito generoso, como é o caso da Espanha, é contraproducente, porque torna o desemprego mais rígido. Um país com seguro-desemprego generoso de mais não é melhor do ponto de vista do bem-estar do que um país com seguro-desemprego menos generoso. Por detrás da discussão de Estado de bem-estar ou não tem uma questão de eficiência do Estado.
Faz parte do pacto social europeu um certo Estado de bem-estar que foi maior do que o norte-americano. A história tem que ser respeitada. Isso sempre foi assim e provavelmente sempre será assim. O que está em jogo não é uma americanização da Europa. Não vejo isso acontecendo. O que está em jogo é uma modernização do Estado de bem-estar. Tem que dar mais eficiência, tornar os seguros-desempregos menores.
É o dinheiro da saúde e da educação que está sendo cortado, da Grã-Bretanha à Grécia.
Tem aspectos aí. A Inglaterra tem um sistema de saúde socializado. Funciona surpreendentemente bem para um sistema de saúde público. Mas você tem que racionalizar o tempo todo. A despesa de saúde, se não tiver racionalização, vai ao infinito. Para você acertar um diagnóstico, com 90% de chance, é relativamente barato. Se você quiser acertar um diagnóstico com 99% de chance, o custo sobe exponencialmente.
Em saúde pública você sempre tem que ter um cálculo econômico de custo e benefício. É triste falar assim, quando se fala de vidas humanas, mas, se não, o sistema não tem limite. Não acho que vá haver na Europa o fim do Estado de bem-estar. Você vai ter uma enorme racionalização do Estado de bem-estar.
Outro exemplo. Morei muitos anos na Inglaterra. A Inglaterra já não permite o tratamento de fertilidade em mulheres obesas. A mulher é forçada a emagrecer antes, por causa do risco de perder o bebê. Evidentemente, se a mulher está numa idade mais crítica do ponto de vista da fertilidade, ela pode legitimamente argumentar que não vai dar tempo, que precisa fazer. Outros países da Europa permitem. São decisões difíceis, mas há um enorme espaço na Europa para racionalização do Estado de bem-estar. Isso é muito diferente da americanização, que não faz parte da cultura e da história européia.
Mas as medidas contra a crise não estão na direção errada ao sufocar os gastos públicos e reduzir a renda. Não deveria ser feito o contrário, como aumento de salários?
Vai ter uma política fiscal mais apertada, demissão de funcionários públicos, redução de gastos do Estado, racionalização do Estado do bem-estar. Mas precisa ter medida na coisas. Não se pode pedir para um país fazer um ajuste de menos 4 para 4 positivo do PIB. Vai gerar uma crise no tecido social que torna o país ingovernável. Precisa ter limites no processo, bom-senso. Mas fazer o ajuste fiscal em si no momento de crise é até bom, porque a sociedade toma consciência da necessidade do ajuste.
A questão é junto com o ajuste fiscal fazer uma política monetária muito mais flexível. A Europa poderia expandir o balanço do BC europeu, idealmente, muito mais do que faz hoje. Em outras palavras, uma impressão de moeda, taxa de juros zero e uma emissão monetária muito mais radical, mais acentuada do que tem sido feito até agora. Falo a mesma coisa nos dois contextos [Brasil e mundo]. O mundo precisa ir na direção de políticas fiscais mais contracionistas e políticas monetárias mais expansionistas.
E aumentar salário? O salário não é uma parte importante na dinâmica capitalista?
Não se deve aumentar salário. O salário tem um elemento cíclico. A economia capitalista tem ciclos. Quando está na fase alta o salário aumenta sozinho. Na fase baixa, ele tem uma enorme resistência. Ele fica e acaba tendo desemprego. O salário não é um preço flexível, digamos. Salário funciona um pouco diferente dos demais preços. Por conta disso, não é preciso estimulo para fazer aumentos salariais para melhorar a vida das pessoas. A melhor maneira de aquecer uma economia nas condições atuais da Europa, dos EUA e do próprio Brasil, com as devidas adaptações, é sempre política monetária.
O sr. não concorda com a análise que aponta no socorro a bancos, na regressividade do sistema tributário e na corte dos impostos para os ricos como causas da crise da dívida soberana? A salvação dos bancos não tem a ver com essa crise da dívida soberana?
Obviamente tem. Toda a crise bancária sistêmica associada a bolhas ou de ativos ou no mercado imobiliário ou no mercado acionário tipicamente põe os governos diante de uma situação difícil. Se pode permitir que os bancos quebrem, o que é um trauma extraordinário para a formação de poupança ao longo do tempo. Ou salvar os bancos. E para salvar os bancos, ou o governo injeta dinheiro ou absorve parte do portfólio podre dos bancos. É sempre melhor a segunda solução do que a primeira. O grande drama da grande recessão, não foi a queda da bolsa de 1929 ou o folclore de alguém que se jogou pela janela. O drama foi a quebra dos bancos. Foi a quebra dos bancos que provocou o trauma e a perda de confiança no padrão fiduciário. Não pode repetir os erros de 1929. Se pode dizer que não deviam ter deixado a situação ter chegado àquele ponto. Isso é uma questão política e que outros governantes sejam eleitos. Uma vez que se está diante da situação, há que salvar os bancos.
Se pode salvar os bancos de inúmeras formas diferentes. Penalizando os acionistas dos bancos, que é a forma correta, nem sempre adotada na Europa. Sempre o primeiro a ser penalizado tem que ser o acionista do banco. Mas salvar bancos, não penalizar o credor dos bancos. Penalizar o acionista e não penalizar o credor.
Mas mesmo que se tire todo o capital do acionista, numa crise bancária de grandes proporções não dá para salvar o credor. Se precisa colocar mais dinheiro. Então são crises que levam ao aumento da dívida pública. É uma certa transferência, de um excesso de endividamento privado, para um gradual excesso de endividamento público.
É a socialização das perdas.
É uma socialização de perdas, por assim dizer. O termo é meio enganoso. Porque a grande socialização de perdas é uma questão de gerações. O governo tem duas alternativas: pode deixar todos os bancos quebrarem e aí ele socializa todas as perdas hoje. Porque o depositante, o trabalhador que tem dinheiro no banco perde a sua poupança, zera. Ou ele pode aumentar a dívida pública, com o que ele socializa a dívida entre a geração atual e as futuras. A dúvida não e socializar a perda ou não: ela vai haver de qualquer forma. É se quem paga é só a geração atual ou se de alguma forma divide o peso do pagamento entre as gerações atual e as futuras. Quando se divide o peso, se aumenta a dívida pública, porque alguém vai ter que pagar isso em algum momento para frente. Não necessariamente o trabalhador de hoje, mas o trabalhador do futuro.
O capitalismo assim fica sem riscos?
Não, o capitalismo tem riscos.
Sim, mas se alguma coisa sai errada, o Estado vai lá e ajuda, não é?
Tem dois aspectos aí. A legislação brasileira é melhor do que a demais. A legislação brasileira é baseada no princípio de que a responsabilidade do controlador e do estatutário é ilimitada. Esse é o princípio correto, porque mesmo se o governo tiver que socorrer o banco, a sociedade tem uma garantia de que o administrador do banco e o acionista do banco perdem tudo. E se for o acionista perde não só as ações do banco como todos os seus bens.
A legislação norte-americana foi criada sobre outro pressuposto. Esse debate houve nos EUA, se devia ter responsabilidade ilimitada ou não. Os EUA optaram pela responsabilidade limitada dos dirigentes, sob o argumento de que se a responsabilidade fosse ilimitada seria tão arriscado que só aventureiros topariam ter instituições financeiras. Isso nos anos 1920.
Então para tornar o sistema financeiro mais sólido optou-se pela responsabilidade limitada.
Mas essa discussão não ressurgiu agora com essas manifestações de rua?
Curiosamente não. Existe um mal-estar público contra o que aconteceu nos bancos, mas ele é difuso, não se transladou para uma proposta. O debate nos EUA sobre bancos não é sobre se deveria introduzir a regra brasileira ou não. O debate é politizado, busca aumentar o controle, reforçar a margem de segurança dos bancos. Mas ninguém fala em tornar a responsabilidade ilimitada. O sistema brasileiro é muito mais avançado.
Qual o significado do rebaixamento de países europeus definido na última sexta-feira?
O rebaixamento era esperado, não há surpresa. As agências erraram muito nas avaliações de risco em 2008. No crédito provado erraram muito, falharam. Para investidores institucionais criou-se uma cultura pela qual os investimentos são feitos de acordo com o "rating" das agências _ o que é conveniente para os administradores dos fundos. Essa cultura não mudou apesar dos erros das agências. Por isso, há consequências no rebaixamento, mas não há nada surpreendente.
A crise vai resultar num maior controle das finanças globais? O sistema financeiro vai passar por alguma redução? Muitos dizem que os governos ficaram submetidos aos seus desejos das finanças. O que o sr. acha?
Há clichês de todo o tipo. Esse é um clichê, que existe um sistema financeiro globalizado.
Não existe isso?
Em bom português é bobagem. Você tem um mundo crescentemente globalizado, com integração financeira, comercial, tem uma difusão cultural maior. E os grandes beneficiários da globalização foram os pobres. Foi a globalização que permitiu a ascensão dos emergentes. A integração de comércio e financeira é extremamente benéfica aos pobres do mundo. Do ponto de vista das políticas nacionais, ela coloca um problema, porque os Estados se percebem cada vez mais interdependentes. Há uma certa ilusão. Na Grande Depressão havia um grau de interdependência similar. Criou-se a percepção de que são mais interdependentes hoje do que anteriormente, o que é até duvidoso. Mas há, de fato, laços de comércio crescentes, grau de interdependência comercial entre países crescente, fluxos de capitais crescentes, fluxos financeiros crescentes.
Quais são os desafios que isso coloca na esfera nacional? Primeiro, o mais óbvio, que é a taxa de câmbio, processos muito dramáticos de apreciação ou depreciação causados por fluxos financeiros. Segundo, desafios na área comercial. Terceiro, na área de investimento. Grosso modo, se está falando, tanto na área comercial quanto na de investimentos, da questão protecionista: se os países devem se defender, até que ponto se sentem atacados. Pressões protecionistas são naturais. Em contextos recessivos elas aumentam; na prosperidade diminuem. Portanto, as pressões protecionistas são cíclicas. Mas quase sempre são péssimo conselheiro. É raríssimo o caso que você consegue justificar de fato a medida protecionista do ponto de vista do bem estar social do país que está implementando a medida. Normalmente as pressões protecionistas beneficiam lobbies. Beneficia um lobby empresarial e prejudica outro lobby empresarial. Mas do ponto de vista do bem-estar da sociedade, elas fazem mais mal do que bem.
Essa crise mundial vai durar dez anos, como afirmam alguns?
O mundo tem lógicas muito distintas, apesar de globalizado. Os EUA estão numa trajetória de recuperação. Vai haver uma eleição presidencial. Como a recuperação é frágil, é muito importante saber se as políticas governamentais vão continuar. Economia não é um exercício econométrico, porque as pessoas pensam, os governos agem, a política existe. Então é muito difícil fazer previsões. Mas os EUA, se não tiver nenhum desacerto na política econômica maior, tende a se recuperar. A China tem um "soft landing", mas não é nada desastroso. O grande desafio para o mundo para a frente é a Europa.
E não há um horizonte de tempo?
É difícil prever. Uma coisa é uma tendência econômica. Se você me perguntar se a economia brasileira, tudo o mais constante, estará em recuperação no segundo trimestre de 2012 comparado ao último trimestre de 2011, a resposta é provavelmente sim. Porque estou falando de um processo com uma dinâmica basicamente econômica. Na Europa não estou falando de uma dinâmica econômica mais. É também econômica, mas, antes de mais nada, é política de decisão. Tem eleição na França. Tem uma situação na Grécia complicadíssima. A atual geração de líderes europeus, do ponto de vista econômico, é extraordinária. Todos eles. Têm extraordinárias lideranças hoje na Europa: na Grécia, na Itália, em Portugal, na Espanha, na Irlanda. De primeiríssima qualidade. A pergunta é a seguinte: vão sobreviver ao próximo teste das urnas? A Europa tem hoje um desafio essencialmente político de governança. Esse é muito difícil de prever.
Há os que afirmam que há um governo Goldman Sachs na Europa porque vários desses líderes que você aponta passaram pelo banco. Isso também é um clichê?
Isso não faz sentido nenhum. Alguns deles passaram pela Goldman, que era um empregador de excelência, que melhor pagava. Pessoas talentosas, 15 anos atrás, naturalmente preferiram trabalhar na Goldman a trabalhar em bancos que pagavam menos.
Como o sr. define o governo Dilma do ponto de vista da política econômica? É desenvolvimentista, ortodoxa?
É difícil dar um resumo. O "soft landing" foi muito bem sucedido. Do ponto de vista fiscal, a performance de 2011 foi melhor do que a de 2010. É um governo mais austero. Houve uma contração dos balanços do BNDES, o que é um lado positivo de ajuste. Tem várias dimensões que aconteceram em 2011 inequivocamente positivas. Todas sendo vistas como contraponto da herança de 2010 e 2009. Por outro lado, tem uma tendência protecionista que não me parece boa.
Por exemplo?
Automóveis. No caso você está protegendo um grupo de multinacionais contra outro grupo de multinacionais. É difícil de entender a racionalidade.
Emprego no Brasil não seria uma justificativa?
Não, é difícil. As medidas protecionistas como um todo dificilmente tem justificativa. A tendência intervencionista tem que ser contida, porque ela dá uma satisfação imediata e faz um desacerto no longo prazo.
Mas todos os países adotam medidas assim.
Não existe país perfeito no mundo. Quando se faz gestão econômica, você tem que evitar errar. Se outros erram é problema deles. Na parte macroeconômica [Dilma] foi bem sucedida. Tem uma tendência protecionista que não é ideal. Há uma série de reformas estruturais que poderiam ser feitas em sistemas como FGTS, FAT etc.
Que é a sua proposta.
Que é a minha proposta. Poupança pública não cresceu. Você tem uma diminuição de gastos públicos. O Brasil tem uma trajetória preocupante em gastos públicos, que não é de agora. Uma trajetória pela qual a arrecadação cresce porque o país cresce. O país se formaliza, felizmente, isso é um ótimo sinal. Ao mesmo tempo os gastos públicos crescem pari passu. Não estou falando de superávit, estou falando da contração de gastos públicos. O Brasil teria muito a ganhar com contração de gastos públicos e desoneração fiscal. Sei que é uma plataforma impopular, que ninguém fala. As duas coisas têm que ser feitas pari passu. Teria um enorme ganho de eficiência na economia se essa linha fosse seguida.
Qual sua avaliação sobre o desempenho do BNDES? O sr. concorda com essa linha dos "campeões nacionais"?
Não. Eu entendo a racionalidade dessa linha dos "campeões nacionais", mas acho que a lógica que deveria nortear é um pouco diferente. Há setores onde se têm um argumento de falhas do mercado. Basicamente porque o Brasil vem de uma história traumática de alta inflação ainda tem horizontes de empréstimos relativamente curtos. Há áreas onde não o preço do custo de empréstimo, mas a duração do empréstimo provida pelo mercado privado é relativamente limitada. Nesse sentido se pode dizer que tem uma falha de mercado.
Mas a análise tem que ser a partir das falhas de mercado e não da constituição de grupos. É um outro enfoque. Como conceito básico, que é o conceito de falha de mercado, o que deveria nortear é mercado de capitais privado. Quem tem acesso ao mercado de capitais privado não deveria usar recursos do BNDES. O conceito certo é enfocar para onde o mercado de capitais não supre. É para onde as coisas deveriam ser orientadas. Mais do que a ótica dos "campeões nacionais" gosto da ótica de entrar onde o mercado de capitais não entra.
Tem três aspectos sobre BNDES. Tem o tamanho do balanço, que está diminuindo, o que é muito positivo. Tem a precificação dos empréstimos, dos juros direcionados. Tem o aspecto de qual é a ótica de quem recebe o empréstimo. Se é uma ótica dos campeões, da formação de grandes grupos. Esse raciocínio tem seus méritos. Coreia do Sul e vários países adotaram essa abordagem. Deveríamos adotar uma outra, que é estar presente onde o mercado de capitais privados não está. Se tem uma falha do mercado de capitais tenho um argumento para concessão de empréstimo forte. É a visão liberal.Se o mercado estiver falhando, eu entendo. Agora se o mercado não estiver falhando não tem porquê.
Mas o mercado andou falhando demais nesses últimos tempos, não? Não ficou prejudicada essa linha de pensamento?
A crise de 2008 é uma gigantesca falha regulatória. É uma crise de crédito. Os bancos concederam crédito excessivamente inventando certas estruturas de crédito paralelas ao sistema bancário. A banca internacional passou um drible no regulador. Não é que as leis estavam erradas. O que houve foi uma gigantesca falha regulatória.
Mas crise não foi gerada pela queda de renda, que levou as pessoas a buscarem mais crédito?
Pelo contrário. A origem é o crédito. As pessoas sempre têm limitação de renda. O sistema hipotecário norte-americano induz as pessoas a se endividarem. De outro lado, se tem os bancos que deram um drible no regulador e concederam crédito. Juntou a fome com a vontade de comer. Na raiz o problema é a falha regulatória. Isso gerou uma enorme confusão. As pessoas dizendo que a crise de 2008 provou que o capitalismo tinha falhado. Na prática houve uma desregulamentação sem consentimento do regulador.
E o investimento público?
Depende de uma contração de gastos correntes. Se houver redução de gastos correntes, você consegue. O grande desafio é diminuir gastos correntes em matérias não relacionadas a investimentos. É um desafio de eficiência, de gestão. Isso não é do governo Dilma, vem de muito tempo. A máquina pública cresce sem medida.
Qual vai ser o impacto deste aumento do salário mínimo?
Isso é desastroso. É uma regra desprovida totalmente de qualquer sentido. É uma superindexação. Porque é uma indexação pela inflação passada e mais ajuste do PIB. É uma regra na contramão de tudo que o país precisa. É uma regra que visa recompor o valor do salário mínimo, mas que na verdade tem um efeito prejudicial do ponto de vista de custos do trabalho, exerce uma pressão inflacionária. Tem um efeito danoso sobre os orçamentos de Estados e municípios que empregam muita gente com salário mínimo. E particularmente danoso sobre a Previdência, porque as aposentadorias são relacionadas ao mínimo.
Mas esse aumento não dinamiza a economia, já que aumenta a renda?
Não. Se você quer dinamizar a economia, você diminui a taxa de juros e diminui impostos. É a maneira certa de dinamizar a economia. Essa é a maneira errada.
Mas o aumento do mínimo não distribui renda?
Não. Isso provoca pressão inflacionária, de um lado. Aumenta os gastos com inativos da União. Aumenta o gasto público na veia.
Então o aumento do salário mínimo não é distribuição de renda?
Não. A melhor distribuição de renda que o Brasil pode fazer, de um lado, é a ajuda direta aos mais necessitados, com bolsas família. De resto, suba o salário mínimo de acordo com a inflação, se você quiser chegar a tanto. Deixa o mercado funcionar. A melhor distribuição de renda é diminuir a taxa de juros, permitir o desenvolvimento do sistema de hipotecas no Brasil, reajustar bem o FGTS, que é um roubo dos trabalhadores. Evite que os trabalhadores sejam roubados. Quer melhor distribuição de renda do que esta? Posso dar vários exemplos. Mas essa regra [de reajuste do mínimo] está na contramão de tudo o que o Brasil precisa. O problema é que, uma vez criada a regra, entendo que seja politicamente difícil escapar dela.
E o que o PSDB e a oposição deveriam propor?
Não quero falar sobre política. Não é a minha especialidade.
Mas você propôs ao PSDB mudar a questão dos juros subsidiados.
É um certo tabu no Brasil. Temos sistemas hoje que foram montados na época do governo militar ainda, que tinham uma certa racionalidade. O Brasil do Plano Real para cá evoluiu extraordinariamente. Hoje esses sistemas se tornaram contra-produtivos. Basicamente se você eliminar os chamados créditos direcionados a taxa de juros para a economia como um todo vai ser menor. Melhora a distribuição de renda e melhora a alocação de recursos. Só tem vantagens. Mas é um gigantesco tabu, parte porque a questão é complexa e parte por causa de lobbies empresariais que se beneficiam do atual sistema.
Então o Brasil não deveria ter política industrial?
Política industrial pode ter ou pode não ter. Política industrial não tem nada a ver com o que está acontecendo. Política industrial se faz da maneira usual. Tem um orçamento. Se você quer beneficiar determinado setor, se faz isenção fiscal específica. Transparente, consta do orçamento, as pessoas sabem do que se trata, se tem objetivos claros: esse setor tem isenção fiscal por determinado tempo. Não estou dizendo que política industrial seja justificado ou não. Se o país optar por fazer política industrial, essa é a maneira certa de fazer.
Não via BNDES?
Não por uma via torta que distorce a formação da taxa de juros. No caso do FGTS, concentra renda. Há distorções de todos os lados. Qualquer que seja a o objetivo, ele tem que ser feito de outra maneira. Dar um incentivo no orçamento. É a maneira correta, pública transparente _se quiser usar uma palavra que nem gosto muito: republicana de fazer isso. Quando você faz política industrial por vias tortas, penalizando trabalhadores na aplicação do FGTS, distorcendo a formação da taxa de juros, fazendo com que a Selic seja mais alta, você cria uma nuvem de complicações que embaçam a percepção do problema e gera distorções por todos os lados. No final, você nem sabe avaliar se a política industrial é bem sucedida ou não.
O sr. foi preso e torturado na ditadura militar. Como analisa a criação da Comissão da Verdade?
Sempre fui a favor da instalação da Comissão da Verdade. Há inúmeras críticas sobre como foi instaurada, conduzida, seus limites etc. Ainda é cedo para fazer uma avaliação.
Gostaria de fazer parte dela?
Acho que há pessoas mais significativas do que eu para fazer parte.
No relato sobre aquele período, o sr. fala da teia de interesses que se formou entre empresários, políticos, gestores do Estado naquela época e que resultou num silêncio prolongado sobre a ditadura. Como o sr. analisa essa questão hoje? A lei da anistia deveria ser revista?
A revisão da lei da anistia é um tópico mais difícil. É pena que a discussão esteja acontecendo apenas agora.
Por que o sr. acha que só acontece agora? Por que a demora?
O Brasil tem seus pactos de silêncio. Falei há pouco sobre FGTS, FAT, que é outro pacto de silêncio. Se você pensar sobre a história brasileira, não é à toa que o Brasil foi o último país do mundo a terminar com a escravidão. Ou foi o último país do mundo a terminar com a hiperinflação.
Como explicar isso?
É mais uma pergunta para um historiador do que para um economista. Existe um pacto entre Estado e grupos empresariais e elites no Brasil que é um pacto, digamos, não-liberal, antiliberal.
Como assim?
A plataforma liberal..
Liberal no sentido norte-americano.
Liberal no sentido norte-americano, que é plataforma da diminuição da intervenção estatal e das liberdades civis. Essa plataforma foi cronicamente fraca no Brasil. O Brasil é um país do novo mundo. Nesse sentido, é mais semelhante aos EUA do que qualquer outro. A terminologia dos Brics é muito enganadora. O Brasil tem poucas similaridades com a China, que é uma civilização milenar. A similaridade brasileira é com os EUA. São países de dimensão continental, com sistemas democráticos, formados pela imigração basicamente européia e africana, um pouco asiática. Países cuja cultura indígena local desapareceu. Não são países, como na América espanhola, que tem o substrato de uma outra cultura. Mas, contrariamente aos EUA, é um país onde o liberalismo foi sempre fraco. Acho que por detrás dessas várias questões _escravidão, FGTS ou hiperinflação _ se tem um denominador comum: os mais prejudicados são os mais pobres, sempre. Numa hiperinflação o prejudicado é quem nem conseguia ter conta bancária. Na escravidão, não preciso nem falar. O FGTS hoje é de quem trabalha.
A escravidão financiava o governo do imperador...
Sem dúvida. Escravidão houve em outros países, outros tiveram servidão. Interessante é que o Brasil foi o último. Chamo atenção sobre isso porque o país tem um pacto entre elites e governo antiliberal. É um pacto a favor do Estado e que sempre se pautou por uma certa repressão de liberdades civis.
É um pacto a favor do Estado, do empresariado e contra os mais pobres, é isso? É um pacto conservador?
Se você disser que é contra os pobres você está falando uma coisa errada. Ninguém é contra os pobres.
Mas a resultante é essa?
Pelo contrário. O pacto é feito para tentar beneficiar. Quando você faz políticas protecionistas, créditos direcionados, quando privilegia determinados grupos, quem está implementando e quem recebe benefícios genuinamente pensam que estão fazendo o bem comum.
Pelo menos o discurso é esse.
O discurso é esse e muitas vezes as pessoas pensam assim. O interessante não é o discurso, mas, historicamente falando, é [pensar] porque a tradição liberal foi sempre tão fraca no Brasil e continua sendo fraca. Isso se aplica inclusive para liberdades civis. O caso da Comissão da Verdade é um exemplo.
Olhe, por exemplo, para um pequeno, em escala, episódio de violação das liberdades civis em Guantánamo, associado ao governo Bush. Num contexto específico da lei patriótica etc, aquilo suscitou uma resposta da sociedade norte-americana liberal em defesa das liberdades civis muito forte. No contexto de uma extraordinária agressão contra a civilização norte-americana que foi a barbaridade do 11 de Setembro. Mas a sociedade reagiu ainda assim. A questão liberal no Brasil é fraca historicamente nessas duas dimensões, na econômica e na política.
Isso perpassa governos de diferentes matizes?
Claro que certos governos, dependendo da orientação ideológica, puxam isso um pouco mais ou um pouco menos. Têm matizes, diferenças importantes. Mas não é um fenômeno de hoje. Tem uma história que foi feita assim.
A política de juros, que faz uma enorme transferência de riqueza para os mais ricos, faz parte desse pacto anti-liberal?
Não é que as pessoas são antiliberais para fazer maldades. Tem uma certa mentalidade antiliberal. Acho que até um melhor termo que eu usaria, em vez de pacto antiliberal, uma mentalidade antiliberal. A taxa de juros eu não colocaria nessa linha, embora ela tenha certamente um efeito concentrador de renda. Ela responde a outros fatores.
O Brasil fez enormes violências contra a poupança financeira ao longo do tempo. Desde a manipulação da correção monetária, chegando ao extremo no Plano Collor. Foi gerada uma certa insegurança e um prêmio de risco associado à poupança financeira. Quanto mais tempo passa sem que você faça nenhuma violência contra poupança financeira, menor o trauma do passado e melhora esse prêmio de risco. O respeito aos contratos, os direitos de propriedade vão diminuindo esse temor. A taxa de juros tem um componente próprio, não faz parte dessa mentalidade antiliberal. Se você baixar a taxa de juros, você melhora dramaticamente a distribuição de renda. Não tem a menor dúvida. Por isso minha insistência de que o ajuste cíclico seja feito sempre via taxa de juros.
O sr. acha que o ritmo atual de redução da taxa poderia ser intensificado?
A inflação está rodando a 6,5%. Ainda tem um problema inflacionário que está longe de estar bem equacionado. O aumento de salário mínimo é uma pressão altista sobre inflação. O mercado tem uma projeção de taxa de juros ainda com uma queda. Para diminuir de uma forma sustentada o elemento crítico é o controle fiscal. Com o tempo, esse prêmio de risco causado pelo trauma da poupança financeira vai diminuindo naturalmente, desde que os governantes respeitem contratos. Do Real para cá, as taxas de juros reais são as menores que o Brasil já teve. Ainda é extraordinariamente alta. O tempo joga a favor, desde que você respeite contratos porque as memórias do passado vão se diluindo. Mas se você avançasse no sentido da consolidação fiscal mais agressiva, mais firme poderia reduzir mais a taxa de juros e num ritmo mais acelerado.
O sr. leu o "Privataria Tucana"?
Não falo sobre isso.
Como está o seu indiciamento na Satiagraha?
Não quero falar sobre isso.
E sobre Daniel Dantas?
Não quero falar sobre isso.
Você que trabalhou dos dois lados, o que acha que deveria mudar na relação público-privado no Brasil?
O Brasil tem hoje os instrumentos legais adequados: a quarentena, leis que proíbem o uso de informações privilegiadas etc. Do ponto de vista da cultura de gestão das coisas públicas talvez o país precise amadurecer.
Como o sr. avalia o processo de fusões e aquisições?
O Banco foi líder inconteste neste ano de 2011 no processo de fusões e aquisições e tenho certeza que será o líder inconteste em 2012 também. É uma área central dentro da nossa atividade. Além da nossa liderança tem o fato de que a economia brasileira em si tem um dinamismo muito grande crescente de mercado de capitais. Às vezes esse mecanismo se traduz em mais IPOs, às vezes em fusões em aquisições. É quase uma gangorra. Este ano [2011] foi um ano em que a bolsa brasileira sofreu muito. Em compensação, as fusões e aquisições cresceram muito. Ano que vem acho que a bolsa brasileira deve ter uma performance melhor, dependendo da Europa. Acho que o fluxo de fusões e aquisições vai continuar. De um lado o investimento estrangeiro no Brasil está só começando. Tem uma atração enorme. O Brasil entrou no mapa dos investidores globais. É o mapa da atenção, mas ainda não é o da presença de dinheiro colocado. Vai ter uma enorme entrada de investimentos estrangeiros. No ano que passou a bolsa brasileira teve uma performance sofrível, mas os investimentos estrangeiros diretos estão no pico. Esse processo de entrada maciça de investimentos diretos estrangeiros vai continuar e é muito bom que continue. Têm fusões e aquisições dos dois lados. Tem pelo dinamismo crescente no mercado de capitais brasileiro e pela entrada de investidores estrangeiros. Estou muito otimista para este mercado em 2012.

terça-feira, 3 de janeiro de 2012

Poder Judiciário. O poder jurisdicional, político, ideológico...


Entrevistas

1janeiro2012
ADMINISTRAÇÃO DO JUDICIÁRIO

"Presidente de tribunal deixa de ser juiz para ser político"

“Um desembargador ao se tornar presidente do tribunal passa a ser um chefe de poder do Estado, logo um político. Precisa agir como tal”. Este é o pensamento do advogado e ex-deputado federal que exerceu a magistratura por 30 anos, Regis Fernandes de Oliveira. Para ele, o presidente tem que entrar no jogo político na hora de negociar com o Legislativo e com o Executivo. “Quantas demandas de interesse dos outros poderes não estão nas mãos do presidente do tribunal? Ele tem que usar isso a favor do Judiciário”.
Regis de Oliveira fala de política com propriedade. Além de deputado federal por dois mandatos, foi vice-prefeito de São Paulo e chegou a assumir a prefeitura por 18 dias, em substituição a Celso Pitta. Acredita que os presidentes de tribunal não têm visão política, e que o tribunal deveria reestruturar-se administrativamente de modo que juízes possam se restringir a decidir processos, o presidente a fazer a política judiciária, e assessores indicados por ele a administrar o tribunal.
Professor de Direito Financeiro da Faculdade do Largo São Francisco, defende a autonomia financeira do Judiciário e crítica a alocação na Secretaria da Justiça de verbas para construção de fóruns. Afirma, ainda, concordância com medidas que restrinjam o acesso à terceira instância, e que processos contra desembargadores sejam iniciados no CNJ.
Leia a entrevista que o advogado, sócio do Regis de Oliveira, Corigliano e Beneti Advogados, concedeu à ConJur:
ConJur — O senhor defende a existência de um presidente político no tribunal. O que seria isso?Regis de Oliveira — Um presidente que “deixou” de ser juiz para ser um político. Um presidente de tribunal não está lá para dar sentenças. Ele é um chefe de poder do Estado, e como tal, um político. Deve sentar á mesa de negociação com o governador e com os parlamentares, negociar o orçamento, gerenciar a estrutura e debater questões de interesse do Judiciário. Nenhum presidente faz isso, até porque não estão preparados. Não há uma política do Judiciário.
ConJur — O que impede que um presidente de tribunal tenha essa posição? Regis de Oliveira — A função jurisdicional ao longo dos anos tem limitado os juízes apenas a decidir. São grandes homens, bem preparados, mas apenas para decidir processos. Então, eles nunca se preocuparam, por exemplo, se tem povo distante do Judiciário, se existe uma área com 300 mil pessoas sem juiz — e existe —, enquanto há cidades com 40 mil habitantes com dois juízes. O juiz não é preparado para pensar o Judiciário. Portanto, quando precisam fazer isso, não fazem a menor idéia do que seja. Eles nunca fizeram um curso de administração. Tanto que em uma eleição paraa  presidência não se vêem propostas dos candidatos, o que reflete bem esta falta de visão política.
ConJur — A ausência de propostas também não é resultado das atuais regras que restringem o direito de ser candidato apenas aos mais antigos na corte?Regis de Oliveira — A regra está absolutamente errada. Quem deveriam ser os candidatos? Todos os desembargadores. E os eleitores? Todos os juízes vitalícios. Juízes de primeiro grau não poderiam candidatar-se, mas poderiam votar. Com isso você anima toda a magistratura a participar de uma decisão. Muita gente já me criticou por causa disso: “Isso é política. Você vai politizar o Tribunal.” Mas o eleito se torna um chefe de poder, ele não é mais um juiz, não é mais um mero administrador para assinar papel. Ele é Presidente de um dos órgãos do poder, chefe do poder, que tem que ser político.
ConJur — Quais seriam os benefícios de um tribunal que tem um presidente com esse perfil?Regis de Oliveira — Autonomia. Veja a importância de um presidente político: Hoje a construção de fóruns está a cargo da Secretária da Justiça. Então vão dois políticos conversar com o secretário e pedir a construção de um fórum, mas só há verba para construir um. Quem leva? Quem tiver mais força política. O Judiciário precisa decidir onde e em que momento vai construir os fóruns. O tribunal que sabe quanto custa a sua estrutura, por isso precisa ir à Assembléia Legislativa, ao Palácio do Governo e negociar seu orçamento, fazer política. Quantas demandas de interesse do governo não estão na Justiça? O presidente de um tribunal tem o poder de conceder  ou não um pedido liminar ao governo e precisa usar isso a seu favor.
ConJur — Mas o senhor está falando de usar uma decisão para fazer política. Até que ponto isto é ético e até mesmo legal?Regis de Oliveira — A liminar que eventualmente um Presidente tenha que analisar é uma liminar política. O fato de o tribunal usar determinada causa para defender seus interesses em nenhum momento quer dizer que deva se corromper. Estou falando, por exemplo, de um aumento de ICMS. Se ele der, beneficia o Estado, se não der, benefia a sociedade. Sendo assim é uma decisão que está nas mãos dele. Ele tem uma arma política na mão a favor ou contra a sociedade, a favor ou contra o Estado. E ele deve usar isso. Porque o governador corta a verba do judiciário? Ele não está prejudicando a sociedade quando  faz isso? Por que ninguém fala nada disso?
ConJur — O tribunal e o Executivo não conseguem chegar a um consenso quando o assunto é orçamento. Isso é por falta de ação política do representate do Judiciário?Regis de Oliveira — O tribunal está brincando de fazer proposta orçamentária. Ele calculou tudo o que tinha que pagar para todos os juízes, funcionários, e mandou a proposta. É óbvio que o governador não vai aprovar, mesmo que venha da Assembléia. O que deveria ter sido feito? Uma negociação. E não com o secretário de orçamento, mas com o governador. Por que se o presidente for conversar com o secretário, claro que vai ser engolido, afinal é um juiz contra um especialista em orçamento. Duas ou três palavras técnicas do secretário acabam com o presidente. Presidente de tribunal negocia com o governador. “Governador, eu preciso disso.” Se não der, vai para o jornal e detona o governador.
ConJur — O presidente eleito do Tribunal de Justiça de São Paulo, desembargador Ivan Sartori, disse que deveria ser estipulado um percentual no orçamento do estado destinado ao Judiciário. O senhor fala em negociação. Ter que negociar é ter autonomia?Regis de Oliveira — Com certeza. Isso traz harmonia entre os poderes. Porque, de fato, quem manda no orçamento é o governador, é ele quem arrecada. Como o dono da arrecadação é outro, o presidente tem que dialogar, dizer quais são as necessidades, o que o outro pode atender ou não. Mas se me atendeu, ótimo. “Governador, obrigado. Vou a público dizer que você é o cara.” E isso funciona. Autonomia financeira do Judiciário significa gerenciar os recursos do Judiciário, inclusive, como já dissemos, com relação à criação de fórum do Judiciário. Porque o Executivo está com esse poder?
ConJur — O senhor discorda desta alocação de verba para construção de Fóruns na Secretária da Justiça?Regis de Oliveira — Claro. O que acontece? Um político de muita força política vai ao secretário e pede: “Coloca um fórum na minha cidade. Preciso mostrar serviço.” Ele é atendido, mas outro que não tem força não vai ser. Quem sai prejudicado nessa história é o Judiciário, porque lugares que necessitam de fóruns com urgência não serão atendidos e outros com menos urgência, sim. Então, esta decisão política tem que ser do Judiciário. Ele que tem que saber onde é que o fórum está ruim, não o parlamentar, muito menos o Secretário de Justiça. O Judiciário não tem autonomia financeira para construir, o que está errado.
ConJur — É possível ter uma sentença rápida e justa?Regis de Oliveira — Sim. Havia uma frase de um jurista italiano, que dizia: "A Justiça não pode ser segura e rápida. Se é segura não é rápida. Se é rápida não é segura". São frases que deram saídas de acomodação da morosidade. É evidente que o Judiciário é moroso. Portanto, precisamos encontrar um ponto ideal. Considero que há casos que demandam uma duração maior e outros que podem ser julgados na hora. Eu prego há tempos que haja um Judiciário que funcione 24 horas por dia. Por exemplo: acidentes de trânsito. Bateu, vai falar com o juiz na hora. Já decide quem vai pagar para quem. Se possível, a parte já assina o cheque. Isso vai contribuir para que o juiz seja mais conciliador que julgador.
ConJur — Falando em autonomia, como o senhor, após 30 anos de magistratura, avalia a atuação do CNJ?Regis de Oliveira — Penso que a grande questão não é se o CNJ pode agir originariamente em um processo, pois ao meu ver, pode. O problema é que temos casos em que o juiz é investigado pela corregedoria local e pelo CNJ. Isto é um problema. A qual autoridade estou subordinado? Onde me defendo? Quanto à autonomia para iniciar processos contra juízes acredito que as corregedorias locais poderiam processar queixas contra juízes e o CNJ contra desembargadores, afinal, nunca se teve controle sobre os desembargadores. Falo isso há mais de 25 anos.
ConJur — Mas os desembargadores argumentam que isso vai contra o preceito constitucional do duplo grau de jurisdição? Regis de Oliveira — Não. Ele pode ser julgado em um grau só. Qual é o problema? Político não é julgado apenas no Supremo? Qual a diferença? Duplo grau de jurisdição existe para quando você não tem foro especifico, o chamado foro privilegiado. Que na verdade, não é privilegiado, ao contrário, é mais complicado, porque você tem apenas um julgamento. Óbvio que é um julgamento qualificado, mas é apenas um. 
ConJur — O senhor concorda que o sistema recursal contribui para a morosidade do Judiciário?Regis de Oliveira — Não é o sistema recursal, é o excesso de recurso. Isso é outra coisa.
ConJur — Se o problema é o excesso de recursos, podemos dizer que ele reside na atuação do advogado e não na atuação  do juiz?Regis de Oliveira — Poderia ser. Mas o advogado faz o que a parte quer. “Doutor, você me segura o máximo que puder.” É assim que funciona. Eu me suponho um bom advogado depois de ter aprendido tanto no Judiciário, e se eu quiser que uma causa não acabe em “x” anos, ela não acabará. Agora, está errado o meu comportamento, se a parte quer isso? Eu posso exaurir todos os recursos que a lei me dá, em beneficio do cliente. Às vezes interpomos recurso que sabemos que não dará absolutamente em nada, mas tenho que exaurir os recursos, eu não posso ficar no meio do caminho. A lei permite, logo, é absolutamente legal.
ConJur — O advogado pode, de alguma forma, contribuir para diminuir a morosidade?Regis de Oliveira — Com certeza. Por exemplo, com relação aos recursos meramente protelatórios, a que me referi. Ademais, acredito que não deva ter uma terceira instância. Deve haver uma instância de controle constitucional. Isso todos os países civilizados do mundo têm. Mas não um controle como o que temos no STJ. Tudo o que você quiser pode subir para lá. Isso é errado, tem que ser revisto.
ConJur — Então o senhor é favorável à PEC do Peluso?Regis de Oliveira — Claro que deve haver um órgão de controle constitucional, pois a constitucionalidade é nacional. Mas decisões de direito civil, direito penal, direito processual, não devem chegar a esta corte. Se sim, como tese, e não como caso concreto. Portanto, a idéia do ministro Peluso é bastante viável. Acho que no primeiro grau o juiz pode sofrer algum tipo de influência. Não que os desembargadores não possam sofrer, mas no primeiro grau, o juiz é um só. No tribunal já são três pessoas mais antigas, experientes, sofrendo o impacto de membros que vieram do Ministério Público e da Ordem dos Advogados. Alguns juízes de primeiro grau podem até ser mais antigos que um desembargador, mas não tem experiência da decisão coletiva. Quando você julga em três, o grau de responsabilidade aumenta e você não pode falar bobagem, tem que fundamentar bem, porque os outros juízes podem te corrigir. Acho que quase tudo poderia terminar em segundo grau.
ConJur — E qual sua opinião sobre o plenário eletrônico? Regis de Oliveira — O julgamento precisa ser público. A seção não. Isto é irrelevante. O relator faz o voto, passa para o revisor, que analisa e o remete para um terceiro juiz, tudo nos autos e depois publicado para quem quiser consultar. Isso não é público? A seção deveria se restringir a aqueles advogados que realmente querem fazer sustentação oral. Aí se leva cinco, seis, 10 processos para a seção. Inclusive, deve-se abrir espaço para o advogado contestar o voto do juiz, se perceber que ele está dando o voto errado.
ConJur —Como o senhor analisa o desempenho dos presidentes com relação á administração do tribunal?Regis de Oliveira — O ideal seria um presidente para fazer a política, assessores para fazer a administração e juízes para julgar. Em todos os fóruns tem que ter um servidor qualificado para ser o executor da despesa, um administrador judicial, funcionário de carreira ou de confiança do juiz. O presidente deveria se restringir a decisões políticas, como faz o governador. Seria bom reestruturarmos a administração do tribunal, por meio da criação de cargos como o de secretário de recursos humanos, secretário de recursos orçamentários, entre outros. Três ou quatro secretários já seriam suficientes. Alguém para pensar pelo presidente, representá-lo e dialogar com os outros poderesIsto no que se refere ao tribunal. Nas varas a situação é mais complicada porque não tem presidente, não tem administrador, sobra tudo para o juiz.
ConJur — Qual a situação nas varas?Regis de Oliveira — O tempo do juiz, que deveria ser todo direcionado para julgamento de processos, é dividido com decisões do tipo: vai ter de comprar suco de laranja ou de caju para o Fórum; no lanche dos juízes será servido suco ou refrigerante. O juiz perde tempo com isso e ainda precisa prestar contas, que na verdade nem é ele que presta, é um funcionário, e se este fizer errado... meu deus! O juiz tá perdido. Precisamos criar a figura do administrador oficial da vara. Juízes têm que se preocupar é com processos.
Rogério Barbosa é repórter da revista Consultor Jurídico.
Revista Consultor Jurídico, 1º de janeiro de 2012


Do Portal Conjur: (http://www.conjur.com.br/2012-jan-01/entrevista-regis-oliveira-advogado-juiz-aposentado-tj-sp). Acesso em: 03/dez/2012.