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domingo, 29 de dezembro de 2019

Apropriação moral e política do Direito degrada o Estado de Direito (Lenio Luiz Streck)


Postagem no Abertura Mundo Jurídico, em 29/dez/2019...

Apropriação moral e política do Direito degrada o Estado de Direito


 
Os últimos anos têm sido difíceis. A racionalidade jurídica vem sendo substituída por “racionalidades instrumentais”, constituída de opiniões e juízos morais. Isso atinge, diretamente, o campo da interpretação das normas e, portando, a própria significação do Direito, cuja autonomia torna-se cada vez menor diante de seus predadores tradicionais: a política, a economia, a moral (e a religião). Quando o Direito vale menos do que um juízo desse quilate, a democracia fragiliza. Direito é o quê, afinal? Tentarei explicar esse fenômeno na sequência, na última coluna de 2019.
O julgamento das ADCs 43, 44 e 54 ilustra bem essa questão. Bastou o anúncio da procedência das ações para que os descontentes corressem e, mediante racionalidades instrumentais-estratégicas, tentassem mudar o resultado obtido legitimamente. No futebol, é o famoso “tapetão”: após a derrota em campo, o perdedor tenta uma “virada de mesa”, custe o que custar. No Direito, o único que não consegue mudar nada é o último da fila: o advogado. Este joga em desigualdade de armas. Também tentarei falar disso.
Os raciocínios finalísticos são assim: primeiro, busca-se a solução que mais agrada; depois, arruma-se um modo de justificá-la. Ao gosto da opinião pessoal. Basta lembrarmos do Procurador Carlos Lima, falando na Globo News: “Escolhemos um lado...”. Lembram?
Tudo isso se agrava quando instituições de garantia agem dessa maneira. Um agir ad hoc. Há um comportamento — inadequado em termos democráticos e de paridade de armas — que vem se mostrando cada vez mais frequente no cotidiano forense.
Explico: basta uma decisão não agradar ao Ministério Público para que, então, logo articule um conjunto de juízos de conveniência (chamo a isso de juízos morais) a fim de desconstituir aquilo que já se tinha construído com uma certa solidez no campo do Direito.
Trago um exemplo recente, dentre tantos que aqui poderia citar: a Operação Calvário, deflagrada em dezembro de 2018, que resultou na recente decretação da prisão preventiva de dezessete pessoas, incluindo o ex-Governador da Paraíba, a pedido do Ministério Público da Paraíba.
Após um ano de investigações — sigilosas —, o Ministério Público aguarda o final do ano-judiciário para ajuizar medida cautelar inominada, requerendo ao Tribunal de Justiça da Paraíba a decretação da prisão preventiva de dezessete pessoas, além do deferimento de diversos mandados de busca e apreensão. Veja-se que pouca gente comenta esse assunto, misturado às notícias de natal e final de ano. Ano duro, diga-se.
Ora, isso não constitui manifesto agir estratégico? Todos sabem que este tipo de medida, adotada à véspera do recesso forense, dificulta o exercício da defesa (paridade de armas?), cujos pedidos são examinados em regime de plantão e, caso indeferidos, pautados somente após o carnaval...
Alguém dirá que tudo é mera coincidência. Mas tem mais. Consta que, apesar do longo período de investigações, o pedido de prisão preventiva se baseou, exclusivamente, no teor de delações premiadas realizadas, todas elas, por pessoas presas preventivamente, cujos acordos resultaram na liberdade provisória dos colaboradores. Esse filme já é conhecido, pois não? Então, qual é o busílis? Simples. No apagar das luzes, o MP requereu a decretação da prisão preventiva contra entendimento já assentado — e aqui reside o problema —, expressamente, pelo Supremo Tribunal Federal, que já disse que a simples palavra do delator não serve para subsidiar — plenipotenciariamente — oferecimento de denúncia e nem mesmo para a decretação de prisão preventiva. Será que os agentes da força-tarefa desconhecem essas decisões da Suprema Corte?
Ironia da coisa, na data de anteontem (24/12) o Presidente sancionou a Lei nº 13.964 (Projeto Anticrime), cujo §16 do artigo 4º estabelece, precisamente, que “medidas cautelares pessoais” e “recebimento de denúncia” não serão decretadas com fundamento apenas nas declarações do colaborador. É pouco? A nova lei apenas repete o entendimento pacífico da jurisprudência do STF.
Também consta que, em sede de habeas corpus, a defesa obteve a concessão de liminar no Superior Tribunal de Justiça (e por seguir a jurisprudência, o STJ foi muito criticado), que determinou a imediata soltura do ex-Governador da Paraíba, sob o argumento — seguindo jurisprudência sedimentada — de o que decreto prisional recorreu a “gravidade dos fatos” aliadas a um conjunto de “situações aparentes” e “elementos naturalísticos desatualizados”. É pouco? Mas já não há jurisprudência pacífica sobre isso?
Liberado o acusado, o Ministério Público — desta vez o Federal — voltou à carga com a interposição de agravo. Legítimo? A resposta é solenemente não. Um advogado pode até — como “jus esperneandi” — tentar interpor recursos já chamuscados pela jurisprudência. Pode ser multado ou enfrentar problemas éticos. Porém, o advogado não é agente político do Estado.
Mas o MP, sim. Este é o ponto, para mim, de fundamental importância. O Ministério Público — e este texto é uma ode a um Ministério Público imparcial e não estrategista — é um agente político que possui as mesmas garantias da magistratura. Por que será que o MP ganhou as garantias da magistratura? Simples. Para não se comportar como um advogado que é parte. Deve, pois, ser imparcial, como exige o Estatuto de Roma (art. 54 — incorporado ao Brasil em 2002 e muito citado nas decisões da Lava Jato) e as mais desenvolvidas democracias do mundo (EUA, Itália, Alemanha). Lhe é vedado se comportar de forma ilegal e meramente estratégica, como venho dizendo de há muito, eu que pertenci 28 anos, com muito orgulho, à essa Instituição de Alfredo Valadão, cuja função não é a de perseguir pessoas a qualquer custo e, sim, a de, como dizia Valadão, para além dos Poderes tradicionais, defender a sociedade, denunciando abusos, vindos deles de onde vierem, inclusive do próprio Estado (leia-se, o próprio MP e o Poder Judiciário). É pouco?
Como explicar o manejo de um agravo que é descabido e manifestamente contrário à jurisprudência da Corte? No âmbito do STJ, é pacífico que não cabe agravo contra decisão desse quilate. Pacífico, aqui, quer dizer: “é lei” no sentido de ser um precedente. Nada há a fazer senão aceitar o dito. Aliás, do modo como esse precedente foi construído, sequer há como fazer distinguishing.
Diante desse quadro, pergunto o que venho me perguntando: é este o comportamento (agir estratégico + pedido de prisão sem fundamento + interposição recurso descabido) que se espera de uma instituição de garantias, tal qual o Ministério Público? Aliás, o Supremo Tribunal já alertou sobre o agir estratégico de juízes e promotores (ler aqui). O caso Richa, do Paraná, é um bom exemplo do que estou falando hoje, aqui. A coisa não é nova. Por que tamanha compulsão em ignorar questões processuais penais — e isso vem sendo repetido diuturnamente — sedimentadas no Supremo Tribunal Federal?
Mas, afinal, o que quero dizer com tudo isso, na última coluna do ano? Apenas uma coisa prosaica, que aqui reitero depois de décadas que escrevo sobre isso. Quero dizer e lembrar que o Direito tem um grau de autonomia. O Direito deve ser aplicado com coerência e integridade (art. 926 do CPC). Nem o judiciário e nem o MP podem surpreender. Eles são o próprio Estado. E as garantias processuais existem justamente contra esse poder estatal. O próprio Judiciário, uma vez que sedimenta jurisprudência legítima (de acordo com a CF, é claro e não contra essa) somente pode deixar de aplicar seus próprios entendimentos quando for o caso de distinguishing no caso concreto. As instituições devem proporcionar confiança. Previsibilidade. Não se pode correr sozinho e chegar em segundo lugar.
Se tenho direito a um habeas corpus, não há juízo moral ou político que possa impedir a concessão. Como Procurador de Justiça, assim procedia. É a confiança que o Direito deve passar à sociedade. Processo é garantia. É forma dat esse rei. Processo é protocolo, de aplicação obrigatória. É como o raio X do aeroporto. Ele é que garante a segurança do voo. Essa segurança não pode depender de juízos morais do manejador do raio X, se me permitem a comparação. E se há a concessão do HC dentro da lei, não há juízo-moral-de-descontentamento que pode bulir com a liberdade — seja de quem for, do mais perigoso dos meliantes ao menos perigoso.
Aproveito, aqui, para denunciar um novo fenômeno que vem se consolidando: o realismo jurídico de segundo nível. Já não basta o de primeiro nível. Explico: realismo é quando o Direito legislado acaba sendo o que o judiciário diz que é (coisa com a qual não concordo, porém, uso, aqui, para argumentar). Daí a pergunta: por que, então, o próprio judiciário — e o MP — desobedecem a esse Direito, fazendo um Direito de segundo ou terceiro nível, como se a jurisprudência fosse um palimpsesto? Por exemplo, se há entendimento pacífico de que delação isolada não comporta denúncia nem prisão e coisas assim, por qual razão então o Direito — já dito pelo judiciário — passa a ser outro, por conveniência de quem o maneja? Nessa nova fenomenologia, o cidadão — e não interessa quem seja ele — fica à mercê dos juízos morais feitos sobre os juízos morais já feitos, com o que se constroem camadas de raciocínios. Há limites? Eis a questão.
Tomas da Rosa Bustamante, professor coordenador da pós-graduação da vetusta UFMG, lembra que Joseph Raz, o mais importante positivista exclusivo vivo, escreveu já na década de 70, que o Estado de Direito (rule of law) é um princípio que existe para servir de contraponto aos riscos que a existência de um sistema jurídico gera. O risco de apropriação do Direito e sua utilização como arma política, sempre esteve presente. Isto porque o direito é capaz de oprimir. Salva e oprime. O rule of law protege o próprio Direito contra o uso distorcido dele mesmo.
Foi pensando nisso que batalhei mais um ano na busca da concretização daquilo que ajudei a colocar no art. 926 do CPC-2015: a jurisprudência dos tribunais deve ser estável, integra e coerente. Por quê? Porque necessito ter razões para acreditar que o judiciário acredita nas suas próprias decisões, que o MP será imparcial, que o Direito tem um grau de autonomia, que garantias devem ser deferidas mesmo que os agentes estatais (PJ e MP) desgostem de seu conteúdo.
Se há um pedido a ser feito para 2020, é este, que retiro de Dworkin: decisões judiciais (e isso se aplica ao MP) devem ser por princípio e não por política ou moral (nesse sentido, meus livros Verdade e Consenso, Jurisdição Constitucional e Decisão Jurídica, Dicionário de Hermenêutica e O que é Isto – Decido Conforme Minha Consciência, entre outros). E agir por princípio quer dizer o contrário do agir estratégico, de fins e resultados. Agir por princípio quer dizer: mesmo que eu não goste do réu, tenho de lhe conceder o Direito.
Feliz 2020 a todos leitores.
 é jurista, professor de Direito Constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do escritório Streck e Trindade Advogados Associados: www.streckadvogados.com.br.

Revista Consultor Jurídico, 26 de dezembro de 2019, 8h00


O juiz das garantias e o dever de fundamentação das decisões de recebimento da denúncia (Pietro Cardia Lorenzoni)


Postagem no Abertura Mundo Jurídico em 29/dez/2019...

O juiz das garantias e o dever de fundamentação das decisões de recebimento da denúncia


1 - Introdução No dia 24 de dezembro de 2019, foi sancionada a lei nº 13.964 de 2019 — mais conhecida como lei do "pacote anticrime" do ministro Sérgio Moro. Segundo a própria lei, trata-se de aperfeiçoamento da legislação penal e processual penal brasileira.
 
Com a alteração legislativa, deverão ocorrer diversas mudanças paradigmáticas na prática forense pátria em matéria penal. Como muito já foi veiculado, o juiz das garantias, muito possivelmente, será a maior, mas não a única, das mudanças.
Diversos questionamentos surgem dos muitos pontos polêmicos que apenas principiam. De forma meramente ilustrativa, como funcionará o juiz de garantias em comarcas com um único juiz, ou melhor, como funcionará o sistema de rodízio de magistrados previsto no parágrafo único do artigo 3º-D da lei?
Fica, aqui, o convite para o aprofundamento desse e diversos outros temas oriundos do pacote anticrime, que merece a devida crítica como já feito pelo maestro Lenio Streck. A presente coluna, diante das múltiplas questões que exsurgem da mencionada lei, abordará a alteração referente ao recebimento da denúncia.
Explica-se. Parcela da jurisprudência pátria, de forma controversa,posicionava-se pelo entendimento que o despacho de recebimento da denúncia não possuía caráter decisório. Outra parcela posicionava-se pelo entendimento que a decisão de recebimento de denúncia, por ser decisão, possuía nítido caráter decisório, devendo, portanto, ser fundamentada. A hipótese desta coluna é de que a nova lei encerra a discussão, trazendo a definição de que se trata de uma decisão com obrigatoriedade de fundamentação.
2 – O estado da arte: Tocante ao recebimento da denúncia, Renato Brasileiro de Lima, de forma ilustrativa, escreve que “o magistrado não está obrigado a fundamentar a decisão de recebimento da peça acusatória, até mesmo para se evitar que eventual excesso de fundamentação acarrete indevida antecipação da análise do mérito”, uma vez que não se trata “de ato de caráter decisório, daí por que não se exige que seja fundamentado”.
Apesar de certo descuido na formulação da frase, afinal, como uma “decisão de recebimento da peça acusatória” não teria “caráter decisório”? Melhor seria, como já fez o Supremo Tribunal Federal, chamar de ato de recebimento da denúncia, uma vez que o ato judicial (e não a decisão) “não se qualifica nem se equipara, para os fins a que se refere o inciso IX do artigo 93 da CF, a ato de caráter decisório” (HC nº 93.065/SP, DJE de 14/05/2009; HC nº 95.354, DJE de 14/06/2010). O Superior Tribunal de Justiça tem entendimento no mesmo sentido (RHC Nº 76864/RJ, dje 22/09/2017).
Não se desconhece a existência de diversas decisões que anulam atos de recebimento da denúncia que se prestem a fundamentar qualquer recebimento da exordial acusatória, uma vez que classificam o referido ato como de natureza de decisão interlocutória, e não de mero despacho. Como exemplo, pode-se citar o RHC nº 90.509/PR (DJE 29/05/2018) e o RHC nº 59.790/SP (DJE 25/02/2016) — ambos julgados pelo Superior Tribunal de Justiça.
Da análise desses e diversos outros julgados, percebe-se que há um ponto controverso na jurisprudência e na doutrina sobre o que configura fundamentação exauriente, fundamentação concisa e ausência de fundamentação, uma vez que há diversos exemplos de julgados que confundem de forma sistemática os três casos. Desse contexto, entende-se que a jurisprudência dos tribunais superiores alinha-se no sentido de que o ato de recebimento da inicial acusatória possui natureza de decisão interlocutória.
Contudo, ainda há diversos exemplos de julgados que entendem o ato como de natureza de mero despacho, prescindindo, assim, de fundamentação. Na prática forense, é rotineira a ocorrência de atos de recebimento de denúncia com fundamentação genérica que não leva em conta as particularidades dos caso concretos. Diante desse contexto, examina-se a alteração legislativa.
3 – A alteração O artigo 3º da Lei determina que o Código de Processo Penal passa a vigorar com algumas alteração, entre elas, os artigos 3-A e 3-B referentes ao juiz de garantias. No artigo 3º-B, fica estipulado que o juiz de garantias é responsável pela salvaguarda dos direitos individuais cuja franquia tenha sido reservada à autorização prévia do Poder Judiciário, competindo-lhe especificamente: decidir sobre o recebimento da denúncia ou queixa nos termos do art. 399 doCPP.
Ressalta-se o verbo utilizado pelo legislador pátrio, qual seja: decidir. O juiz de garantias decide sobre o recebimento da denúncia, queixa ou aditamento, porque se trata, agora de forma incontroversa, de decisão de recebimento, e não de mero despacho. O juiz de garantias, responsável pela legalidade e pela salvaguarda dos direitos fundamentais, será, também, responsável pela concretização de um dos princípios mais basilares de um Estado Democrático de Direito, previsto no artigo 93, IX, da nossa Constituição pátria, o do dever de fundamentação das decisões judiciais.
Destarte, não é por acaso que o mencionado artigo constitucional define que todas as decisões judiciais serão fundamentadas. O dever de fundamentação é condição de possibilidade para um Estado que proponha cumprir o ruleoflaw, porque possibilita transparência, evita abusos de poder, impede autoritarismos e garante o controle das decisões judiciais.
A reforma legislativa traz, ademais, um dispositivo que, apesar de ilustrar a modernidade tardia da República brasileira, tem notável importância para o dia-a-dia prático dos juristas — o novel parágrafo 2º do artigo 315 do Código de Processo Penal. Com ele, fica assentado que não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que não explicar a relação entre ato normativo e a causa decidida, que empregar conceitos indeterminados sem explicar o motivo concreto de sua incidência e que invocar motivos que se prestem a fundamentar qualquer outra.
Se, antes da reforma legislativa, uma leitura democrática do ato judicial em análise já direcionava, conforme o melhor entendimento jurisprudencial, para o dever de fundamentação ante a natureza interlocutória do recebimento da denúncia, agora, depois da atualização, trata-se não apenas de “desvelar a melhor luz” para utilizarmos Dworkin, mas de “uma interpretação discursivamente necessária”,agora com Alexy. Não há espaço, ante a própria construção textual do artigo 3º-B e do parágrafo 2º do artigo 315, para outra interpretação.
Nesse sentido, os limites hermeneuticamente construídos à atividade interpretativa impossibilitam que se diga qualquer coisa sobre qualquer coisa, conforme sempre relembra Streck. O controle democrático das decisões judiciais, principalmente no específico objeto de estudo dessa coluna, impõe o dever de fundamentação ante a correlação dada pela Crítica Hermenêutica do Direito entre limite semântico, a leitura sistemática da Constituição e do Código de Processo Penal e a coerência do ordenamento jurídico.
4 – Considerações finais Por fim, devemos lembrar, com Muller, que o Estado constitucional foi conquistado no combate contra uma história marcada pela ausência do Estado de Direito e pela falta de democracia; e esse combate continua. A democracia e o Estado de Direito legitimam toda a estrutura estatal pátria contemporânea.
Assim, é imprescindível compreender em quais campos as pretensões democrático-constitucionais são cumpridas e em quais não são, sendo um dever, principalmente das decisões dos juristas, operacionalizar e concretizar, a partir de processos racionalmente controláveis, as promessas democrático-constitucionais.
Quando Muller aborda, no livro “Quem é o Povo”, o déficit, ou, melhor dizendo, o desnível entre as promessas constitucionais e democráticas promovidas pela CF/88 com a realidade prática calcada numa inautêntica tradição autoritária e inquisitorial, o que adquire valor maior diante do processo penal pátrio, ele escreve que “todo e qualquer sistema político necessita de legitimidade interna bem como externa. Quanto maior a frequência com que se interprete a Constituição efetivamente ao pé da letra Lorenzoni — contrariando certas tradições do passado — e quanto mais frequentemente isso ocorra publicamente, tanto mais o próprio sistema político deverá a longo prazo aceitar que ele mesmo seja tomado cada vez mais ao pé da letra, com base na própria Constituição” (MULLER, 2003, p. 103).
Nesse sentido, advém a legitimação do Estado não apenas por meio de textos (formulados de forma simbólica), mas de lográ-la apenas por meio da ação do Estado conforme determina o texto constitucional, consoante Muller.  Assim, o grande autor alemão alinha-se com Streck, quando este, referindo-se à applicatio dos textos e à concretização das promessas constitucionais, ensina que “a consequência lógica disso é nos “segurarmos” nos limites semânticos, que é um modo de resguardarmos uma legalidade que, agora, já não é uma simples legalidade, mas, sim, uma legalidade constitucional” (2014, p. 81).
Dito de outra forma, trata-se do respeito à autoridade do Direito -  algo que já está recorrente nas colunas do diário de classe, mas que não pode ter sua importância diminuída. Isto é assim, pois o Direito deve conformar e limitar a atuação do Estado e dos seus agentes de poder. Não é aquele que depende desses, mas esses que dependem do Direito, uma vez que apenas o ruleoflaw pode legitimar sua atuação.
Nesse ponto, a mudança, ou melhor escrito, a adesão ao entendimento jurisprudencial de que a decisão de recebimento da denúncia precisa de fundamentação deve imperar. Ainda, afigura-se impossível aceitar decisões de recebimento da denúncia, queixa ou aditamento que se prestem a fundamentar qualquer processo ou que tenham nítido caráter genérico. Parece afirmar o óbvio, entretanto, nem esse é rotineiramente cumprido no sistema criminal brasileiro.
Afinal, conforme Streck diversas vezes já advertiu e como Muller escreveu, deve-se levar a Constituição a sério. “Afinal de contas, não se estatuem impunemente textos de normas e textos constitucionais, que foram concebidos com pré-compreensão insincera. Os textos podem revidar” (2003, p. 105). O trabalho dos juristas nessa direção concretiza passo a passo a qualidade de Estado de Direito, mas não só. Esse mesmo trabalho garante, em igual grau, a permanência de um Estado Democrático.

Referências bibliográficas:

STRECK, Lenio Luiz. HERMENÊUTICA JURÍDICA E(M) CRISE: Uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 11ª ed. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2014.

MULLER, Friedrich. Quem é o Povo? A questão fundamental da democracia. 3º ed. São Paulo: Max Limonad, 2003.

Pietro Cardia Lorenzoni é advogado, professor de Direito Público do Centro Universitário Ritter dos Reis (Uniritter) e da Faculdade Monteiro Lobato (Fato), doutorando em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e membro do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

Revista Consultor Jurídico, 28 de dezembro de 2019, 9h33