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segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

Aqui acontecem coisas estranhas (Fernando Boppré)


18 de fevereiro de 2012 | N° 9452

PENSO | Fernando Boppré

  • Aqui acontecem coisas estranhas

    Nossa pátria é tão altiva que jamais se dispôs a debater aberta e democraticamente temas dramáticos de sua história. Como numa arena romana, divertimo-nos condenando os pais que atiraram a filha do sexto andar por se tratar de um homicídio espetacular e midiático. Em contrapartida, desconversamos quando se cogita condenar torturadores (ou aqueles que os ordenavam) que são (ou foram) servidores públicos brasileiros: soldados, governadores, tenentes, policiais, cabos, presidentes, dentre outros.

    João Baptista Figueiredo (1918-1999), o último presidente do governo militar. Após deixar o cargo, em 1985, caminhava todos os dias e tomava água de coco na Praia do Pepino, no Rio de Janeiro. Por vezes, ostentava uma ridícula sunga à beira-mar, símbolo da plena liberdade que usufruiu até o fim da vida, mesmo tendo comandado as Forças Armadas que produziram um dos maiores ataques terroristas da história do Brasil: o episódio do Riocentro, em 1981.

    Não por acaso, cada cadeia deste país ainda hoje é um porão de torturas. E esperamos, hipocritamente, que os condenados voltem recuperados para a sociedade e se tornem trabalhadores ordeiros. Todos os gestores – civis ou militares – sabem que jamais serão condenados caso enfiarem um prego nas mãos de um preso. Mas se, numa situação inversa e hipotética, o preso enfiar o mesmo prego nas mãos deste gestor (ou de um de seus subordinados), ele terá a justiça que merece – não a dos tribunais, mas aquela executada friamente nos casos de condenação sumária à morte que ocorrem, todos os dias, nos presídios e penitenciárias.

    Vamos ao supermercado (esse espaço onde a classe média e alta quase levita, aproveitando a liberdade – de comprar – que o capitalismo contemporâneo lhes oferta) e adquirimos carne moída ao lado de um militar reformado que torturou cidadãos brasileiros durante a Ditadura. Ele sequer foi processado. Se quisermos estabelecer um Estado de Direito, é preciso ter claro que pelos acordos internacionais dos quais o Brasil é signatário, a tortura é um crime hediondo e imprescritível. Ou seja, pouco importa se há uma lei de anistia ou não: é preciso julgar a todos os envolvidos, incluindo os membros das guerrilhas rurais e urbanas de esquerda.

    É pena que Dilma Rousseff, que sofreu na pele os horrores da violência militar, não bancou a Comissão da Verdade nos moldes que ela foi proposta originalmente. Tratar-se-ia de uma comissão oficial criada para apurar – e julgar! – os crimes cometidos durante as Ditaduras, desde o início do Governo do general Eurico Gaspar Dutra, em 1946, até o ano de 1988. Todavia, a cúpula militar foi categórica e não concordou com o caráter judicial da comissão. E o mais lamentável: os comandos do Exército, da Aeronáutica e da Marinha foram apoiados por Nelson Jobim (o ex-ministro do STF e ex-ministro da Era FHC que se tornou, num passe de mágica, ministro da Defesa de Lula, que o deixou como herança mui amiga para Dilma). Perceba-se: Jobim era um civil comandando militares, representante de um governo civil. Ele poderia (e deveria) ter cumprido uma demanda histórica da sociedade brasileira, mas barrou os poderes da Comissão.

    Assim que os nomes forem selecionados (a presidente Dilma Rousseff, numa demora injustificada, ainda estuda os nomes), caberá apenas investigar – e não julgar! – os culpados. Ou seja, saberemos a verdade, mas nada faremos com ela. Nós a colocaremos numa prateleira, e isso nos causará menos recalques. Diremos, com alívio: “Ao menos, sabemos os nomes dos culpados”. As mães, pais, irmãos, irmãs, filhos, filhas, maridos e esposas que tiveram seus entes queridos aniquilados pelo Estado brasileiro não terão, em vida, o direito à justiça. Nós daremos a eles apenas o direito à verdade.

    Ora, daqui em diante, sugiro que tenhamos a mesma postura ao investigar crimes considerados “normais”, como traficantes que matam e trucidam nas favelas brasileiras: não os condenaremos à prisão, apenas informaremos os nomes de cada um deles para que as famílias tomem o conhecimento da verdade.

    Nunca é demais lembrar que a nossa vizinha, Argentina, condenou ex-presidentes e, ainda hoje, penitencia militares que produziram atentados contra seus cidadãos. A discussão avança e, agora, a sociedade argentina também quer fazer justiça e condenar, se for o caso, os montoneros (guerrilha urbana de esquerda que chefiava sequestros e assassinatos daqueles considerados a serviço do regime militar).

    É bom lembrar que a violência militar é pior do que aquela praticada pela população civil, por exemplo, em roubos ou latrocínios. Porque é uma violência estudada, disciplinada e com métodos quase científicos. O torturador tem uma pia para lavar as mãos do sangue da vítima. Ele irá enxugá-las com papel toalha comprado com o imposto do contribuinte. Depois disso, irá para casa assistir televisão com a família e comer pizza de quatro queijos.

    O Estado de Exceção conduzido pelos militares é a cicatriz que não quer fechar justo porque levou a cabo uma violência oficial contra seus cidadãos por um longo período. E, o mais importante, aplicou essa violência contra os filhos de sua elite: estudantes, jornalistas, deputados, entre outros cidadãos, foram torturados e assassinados. Talvez por isso (e só por isso) que esse regime tenha sido questionado. Em contrapartida, em rebeliões de outrora (e de agora), tal qual Canudos, Cabanagem, Contestado, Carandiru (só para ficarmos nos movimentos legítimos de reivindicação da população por reconhecimento de direitos mínimos que começam com a letra “C”), o Estado assassinou meros camponeses e a população pobre em geral. Uma gente sem acesso à imprensa e a outras esferas do poder.
  • Além do mais... É sorte

    É sorte que nem sempre foi assim. Um exemplo foi a geração de estudantes e professores franceses que colocaram em dúvida, por outros motivos, o status quo durante Março de 1968. Foram às ruas de Paris, construíram barricadas com o calçamento e os automóveis revirados. Enquanto não enfrentavam a repressão policial chefiada pelo decadente general De Gaulle, discutiam com donas de casa, operários, enfim, com a população sobre a vida e o que dela esperavam.
  • Revirar Brasília?

    Por aqui, não há uma Paris para revirar. A ficção comunista de Brasília (Oscar Niemeyer, esse gênio da linha com a visão de futuro mais inconsequente da arquitetura brasileira) afastou o local de articulação e decisão política dos brasileiros. Juscelino Kubitschek sonhou com a cidade-piloto para entregá-la nas mãos do presidente mais louco (e divertido) que já tivemos, Jânio Quadros. Logo depois, os militares transformariam Brasília em um bunker de ultradireita.
  • Herzog e Markun

    A edição dominical da Folha de S. Paulo de 5 de fevereiro de 2012 publicou matéria elucidativa, assinada por Lucas Ferraz, sobre a incrível e difícil história do fotógrafo Silvaldo Leung Vieira, da Polícia Civil do Estado de São Paulo, que, em 1975, fotografou o cadáver de Vladimir Herzog. O jornalista de origem judaica, então diretor da TV Cultura (ou seja, uma figura pública brasileira) foi assassinado após ser torturado. Meu colega de Coluna Penso, Paulo Markun, foi preso no mesmo dia que Herzog. Segundo ele, “o suicídio foi uma farsa total – Vlado teria se enforcado com um cinto do macacão que foi obrigado a vestir. Nenhum preso podia usar cinto ou cadarço nos sapatos”. Herzog e Markun foram presos no Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), da Polícia Civil, tristemente famoso pela ação do delegado Sérgio Paranhos Fleury. Silvaldo entrou no cárcere onde se encontrava cenicamente pendurado o corpo do jornalista e foi obrigado a fazer a foto, sem poder se aproximar do corpo, já que, temendo a repercussão do caso, os agentes simularam um suicídio. Na ocasião, o rabino Henry Sobel assumiu uma postura ética invejável: negou-se a enterrá-lo na ala de suicidas do cemitério israelita do Butantã, num claro desafio ao governo militar.