Acessos

segunda-feira, 28 de maio de 2018

Carta de Princípios da Mediação Familiar do Ibdfam (2013)

Postagem no Abertura Mundo Jurídico em 28/mai/2018...


CARTA DE PRINCÍPIOS, VALORES E DIRETRIZES ORIENTADORES DA MEDIAÇÃO INTERDISCIPLINAR DO INSTITUTO

BRASILEIRO DE DIREITO DE FAMÍLIA
   
Como resultado do papel de destaque do IBDFAM na construção da história da mediação no Brasil, e como reflexo de sua responsabilidade ativa no processo de criação e aperfeiçoamento de importantes marcos teóricos para o adequado desenvolvimento da mediação familiar interdisciplinar, surge a presente Carta, para instituir os princípios, valores e diretrizes orientadores da mediação do Instituto Brasileiro de Direito de Família-IBDFAM.

Tais princípios, valores e diretrizes estatuem um conjunto de parâmetros orientadores da prática responsável e ética da mediação, segundo conceitos e critérios consolidados ao longo dos anos de atuação do IBDFAM. Estes têm por finalidade precípua nortear o desenvolvimento da mediação interdisciplinar em matéria de Direito das Famílias e das Sucessões, bem como orientar a formação de mediadores.

Tendo em vista que a mediação tem como pilares a pauta ética de lealdade e o comprometimento com a adoção de posturas colaborativas para o estabelecimento de uma comunicação produtiva, o IBDFAM institui os princípios, valores e diretrizes a seguir descritos, para a prática consciente e técnica da mediação interdisciplinar.
  
 I. Da Interdisciplinaridade

 Quanto à epistemologia, a mediação é teoria e prática interdisciplinar, vez que se propõe a uma abordagem dos conflitos em seus aspectos objetivos e subjetivos. Como consequência disso, a prática da mediação não se restringe a uma única área de graduação profissional, sendo a formação do mediador também interdisciplinar. OIBDFAM foi pioneiro na difusão da mediação interdisciplinar, trazendo para o Direito a importância da interdisciplinaridade para a análise dos conflitos e de suas complexidades, permitindo-se abordar tais questões a partir de uma dinâmica que inclua a compreensão qualificada dos vínculos e dos sentimentos que os animam, possibilitando que os interessados se conscientizem e se responsabilizem pelo encaminhamento de suas questões. Dentre os alicerces epistemológicos da mediação, destaca-se a contribuição da psicanálise na compreensão dos determinantes e das consequências dos conflitos, bem como da função exercida pelo mediador.

II. Da Instrumentalidade

  A instrumentalidade está relacionada à própria função da mediação, que é essencialmente instrumental, uma vez que entre os seus objetivos primordiais está o estabelecimento e/ou o restabelecimento do diálogo, sendo o acordo, ou consenso, apenas um dos possíveis resultados da mediação. Ela busca a objetividade na subjetividade das relações. A mediação não se confunde com a conciliação, que busca o acordo ou consenso, não obstante a sua metodologia possa ser importante instrumento para o consenso e para a obtenção de acordos. 

III. Da Imparcialidade

 O mediador é imparcial não só quanto aos pólos do conflito como também quanto ao resultado da mediação, já que o seu único compromisso é em relação ao estabelecimento e/ou o restabelecimento da comunicação, atuando em benefício aos mediandos.

IV. Da Autonomia da Vontade

 A participação na mediação interdisciplinar envolve necessariamente a autonomia da vontade dos mediandos, que por meio do consentimento informado, exercem o protagonismo na decisão de participar, continuar, suspender e encerrar a mediação, assim como na construção dos possíveis encaminhamentos para os seus conflitos.

V. Da Boa

 A mediação tem a boa fé como princípio norteador e baseia-se na confiança quanto ao uso das informações e dos conhecimentos adquiridos durante procedimento. Os mediandos acordam-se sobre a maneira de gerir a confidencialidade. O mediador tem o dever de sigilo e não poderá ser arrolado como testemunha no âmbito de eventual procedimento judicial.

VI. Da Formação Continuada

 Uma das importantes missões do IBDFAM em matéria de mediação interdisciplinar é ressaltar a sua prática responsável e consciente para que seja de fato uma forma eficaz de transformação de conflitos. Para tanto, é imprescindível a devida qualificação, capacitação e atualização permanente dos profissionais que exercem a função de mediador, de modo a assegurar a idoneidade da metodologia e a eticidade de sua prática.

VII. Do Empoderamento

 A principal finalidade da mediação é o estabelecimento e/ou restabelecimento da comunicação entre os mediandos, que não são considerados partes, uma vez que o foco da mediação é a interação entre os participantes, tendo por princípio que as relações são complementares, e por vezes continuadas. O resultado desejável é a ampliação da consciência de que há múltiplos determinantes dos conflitos, a sua transformação, o empoderamento dos mediandos, que fortalecidos, poderão tornar-se cientes da responsabilidade que lhes cabe quanto ao encaminhamento das questões objeto dos conflitos presentes e futuros.

VIII. Da Transformação dos Conflitos

 A mediação tem importante papel na transformação dos conflitos atuais e futuros, o que por sua vez contribui para a não cronificação dos mesmos, ou seja, para evitar a repetição de padrões negativos em relação às formas de lidar com os conflitos. Além de atuar de maneira coadjuvante com o Poder Judiciário para a solução de controvérsias já judicializadas, a mediação também tem uma função social preventiva, que faz parte de uma consciência que paulatinamente vem sendo adquirida pela sociedade, que poderá incorporar os seus benefícios com o exercício mais pleno da cidadania.

IX. Da Dinamicidade

 As relações intersubjetivas, em especial as familiares, são altamente dinâmicas, razão pela qual a mediação deve se revestir da mesma característica. Desta maneira, a mediação envolve uma dinamicidade peculiar voltada para a prevenção, transformação, resolução e acompanhamento pós-mediação, não se limitando apenas às dinâmicas que visam puramente à solução de controvérsias.

X. Da Remuneração do Mediador

Da mesma forma que a mediação visa a empoderar os mediandos para que possam ser protagonistas do procedimento de busca pela transformação dos seus conflitos, o mediador também deve ser empoderado com o reconhecimento de que desempenha uma função remunerada, salvo em casos excepcionais, quando atuará como voluntário.

 Araxá, 23 de novembro de 2013

 Comissão de Mediação do Instituto Brasileiro de Direito de Família
Suzana Borges Viegas de Lima- Presidente

( Membros presentes na reunião final de aprovação)

Ana Maria Gonçalves Louzada- IBDFAM/DF
Christiana Maria Roselino Coimbra Paixão- IBDFAM/ Núcleo Ribeirão Preto 
Christian Fetter Mold- IBDFAM/DF
Fernanda Tartuce – IBDFAM/SP
Gildo Alves de Carvalho Filho – IBDFAM/AM
Giselle Câmara Groeninga – Diretora de Relações Interdisciplinares 
José Fernando Simão – Diretor do Conselho Consultivo

Maria Helena Campos de Carvalho –  IBDFAM/SP 
Marília Campos Oliveira e Telles – IBDFAM/SP 
Rita Andréa Guimarães de Carvalho – IBDFAM/MG


Original disponível em: (http://www.ibdfam.org.br/imagens_up/CARTA%20DE%20PRINC%C3%8DPIOS_.pdf). Acesso em 28/mai/2018.

domingo, 27 de maio de 2018

Lei da Mediação (2015), Lei 13.140, de 26 de junho de 2015.

Postagem no Abertura Mundo Jurídico em 27/mai/2018...


Lei da Mediação (2015), Lei 13.140, de 26 de junho de 2015.


Para ler, clique:

LEI Nº 13.140, DE 26 DE JUNHO DE 2015.



Ou clique:

(http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13140.htm). 

quinta-feira, 24 de maio de 2018

A Constituição em papel couchê. E a presunção não é cool. Não vende! (Lenio Luiz Streck)

Postagem no Abertura Mundo Jurídico em 24/mai/2018...

A Constituição em papel couchê. E a presunção não é cool. Não vende!


Caricatura Lenio Luiz Streck (nova) [Spacca]
1. Duas notícias, dois ativismos: a censura e o desejo de ser diretor de novela

Há duas notícias (entre tantas) que mostram que o Porta dos Fundos está tendo séria concorrência em algumas áreas do Direito. Refiro-me à ação do Ministério Público (com êxito, porque ganhou liminar) suspendendo um curso sobre o impeachment (chamado de O Golpe de Estado de 2016: conjunturas sociais, políticas, jurídicas e o futuro da democracia no Brasil). Se o curso fosse sobre o impeachment sem a palavra “golpe”, poderia? Seria o MP fiscal das palavras? O Grande Irmão?
Ao que se vê, o Ministério Público e o Poder Judiciário (ver aqui) querem opinar (e decidir) sobre o que a Universidade deve lecionar. Ou seja, os alunos são ineptos, burros e tem de ser guiados e protegidos. Por quem? Pelo sistema de Justiça. Proteger de quem? Faltou só exigirem mudar o roteiro das aulas. Pelo andar da carruagem, em seguida cada professor terá de submeter à censura prévia qualquer conteúdo que tenha algo a ver com política. Bom, depois da Escola sem Partido, o que mais falta?
Falta, falta sim. O Ministério Público do Trabalho mandou “intimação” (tecnicamente se trata de recomendação) para que a Globo tome uma série de providências para que a novela das oito inclua atores negros e preste um conjunto de informações. Enfim, o MPT está querendo reescrever o roteiro e mudar atores do folhetim (despiciendo tratar, aqui, do problema do racismo existente no Brasil — quem negaria isso? O ponto não é esse). O ponto é que, vingando a tese do MPT, não haverá espaço livre da interferência do MP e do Poder Judiciário. De time de futebol a filmes, de restaurantes a programas de TV, o panóptico ministerial estará (omni)presente. Em vez da política e do voto, o MPT quer apostar no seu papel de vanguarda iluminista. Além do fato de querer ser os Irmãos Coen. Ou o Benedito Ruy Barbosa.
Sem comentários sobre os dois episódios. Eles são autoexplicativos do grau de ativismo a que chegamos. Em breve as famílias terão que fazer licitação pública para as filhas casarem. Vá que algum varão se sinta prejudicado. Pelo princípio da felicidade, entrará em juízo pedindo preferência no namoro. By the way: não existe bom ativismo. Aliás, um dos problemas é que nem a doutrina e nem a jurisprudência fazem ou fizeram a distinção entre ativismo e judicialização (estou careca de mostrar isso). E isso é-foi fatal. Ah, as boas intenções...
Por tudo isso, prefiro falar dos dois episódios de outro modo, a partir de uma alegoria. O Porta dos Fundos fez isso muito bem tendo o texto da Bíblia como pano de fundo (vejam aqui). No esquete, há dois participantes: O publicitário “totalmente cool” e o bispo de uma igreja neopentecostal que necessita de uma campanha para rearranjar a sua igreja que está perdendo fiéis. Reproduzo, de forma aproximada, os diálogos (quem assistiu ao vídeo não precisa ler a transcrição, pulando direto para o restante da coluna):
Diz o Publicitário: “Eu dei uma olhada no livrinho... bacana. Como é o nome? Ah, Bíblia. O título não é bom; como título, não vende. Pensei em trocar o nome, tipo 50 Tons de Bíblia. Ah, Quem mexeu na Bíblia... De qualquer forma, é um bom material. Tem passagens que me fizeram rir muito. Mas é muito longo...”
O bispo intervém: “Mas é a história da humanidade.”
Mas o publicitário continua: “Mas lá por Mateus tem uma barriga. Isso aqui eu cortaria tudo”, mostrando várias páginas do texto. “Jeremias... E quem éSalmos? Noé... Argh... Eu tiraria o personagem do rapaz!”
Perplexo, o bispo pergunta: “Que rapaz?”
E responde o publicitário: “O principal, que diz que é o principal”. Ah, responde o bispo, “Jesus”.
Acrescenta o publicitário: “Não entendi a função dele. Ele não tem carisma...”,emendando: “Ele é filho de quem mesmo? É tudo rocambolesco, meio mexicano.”
O bispo interrompe novamente: “Na verdade, ele é o personagem principal.”E o publicitário ataca: “Ele precisa morrer? E a cruz... Vamos substituir por pneus.” “Mas a história tem dois mil anos”, diz o bispo. “Tá bem. Você quer manter o personagem, OK. Mas, por que Cristo... é esse o nome, não, por que ele tem que ser homem?” “Mas é que...”, gagueja o bispo...
O bispo é interrompido pelo publicitário, que berra: “Quem disse que era um homem? Por que não uma mulher disfarçada de homem, lutando contra o preconceito?”
E o bispo: “Mas eu não gostaria de mexer nisso...”. Volta o publicitário: “A Cléo Pires no papel de Cristo. Isso dá um filme, bispo Carmelo!”. E, chamando a assessoria, diz: “Manda a Bíblia para o Duduxa. Mas não mande nesse papel... Manda em papel couchê... Onde se viu um livro com esse tipo de papel fininho?”. E o bispo vai embora, com a cara amarrada. Fim do esquete.
Bom, o resto aqui não importa. O que importa é comparação, a analogia, a metaforização, a alegorização com o que está ocorrendo com o Direito. É assim que funciona “a coisa” hoje.
2. Outro “livrinho” que não é cool: a Constituição! Mais papel couchê! E funk!
Outro “livrinho” que querem repaginar é a Constituição. Ela está perdendo fiéis. Já ninguém a respeita. Vamos ao diálogo entre o professor e o publicitário:
Publicitário: “Não gostei. Este livro já tem um problema. Tem uma lista muito grande de direitos. Já de cara peca por não ter inteligência artificial, quando fala em pobreza. E erradicar a pobreza. Erradicar já induz violência. E é breguíssimo. Ora, erradicar a pobreza... Isso não vende para quem usa camisa polo e faz compra no exterior. Vamos trocar essa parte por outra. Por exemplo, vamos reproduzir uma parte do hino. A parte que fala de ouro e riquezas. Isso pega bem. Outra coisa que não vende é a parte da divisão de poderes. E por que três poderes? Ora, põe um só: a mídia. Você quer vender ou não seu produto?”
E segue o mister cool“O livro ‘essedaí´é muito grande. Cool é o dos Isteites. Lá só sete artiguinhos. Por isso “issodaí” tem de ser menor e de papel couchê. Mais uma coisa: na nova versão em papel couchê, vai junto um Manual de Instruções e um DVD. Tipo este aqui [e mostra este vídeo – muito cool]. Se não gostou, tem também este vídeo que faz muito sucesso. Ele ensina como a Policia Federal deve fiscalizar. Dá para adaptar. O Brasil devia aprender com esse professor como ensinar Direito”.
E continua o publicitário: “Quanto ao conteúdo, tem mais coisas que são dispensáveis. Esse negócio de hora extra, gratuidade da Justiça. Trabalho que é bom, nem falar, né? Corta fora. Outra coisa: Devido processo legal — isso é contraproducente em termos de fonética. Devido... Já parece coisas de quem está devendo. O país precisa de crédito. Mais: ampla defesa. Você quer o que? O sujeito comete um crime e você quer vender um livro dizendo que ele tem direito a ampla defesa? E ainda, quando o sujeito é pobre, advogado grátis? Enlouqueceu? Tsc, tsc, tsc. Sugiro cortar. Na Avenida Paulista, por exemplo, a venda será zero”.
Constrangido, diz o professor/cliente, “mas isso é assim em todo mundo. Uma constituição serve para isso...”.
“Você é quem pensa isso”, retruca o publicitário. “Nós pagamos os impostos — e atualmente já nem conseguimos viajar uma vez por ano à Miami comprar roupas e outros apetrechos cool — e vem um livrinho dizer que todos têm direito à defesa e que o Brasil é uma república que visa a erradicar (argh) a pobreza e fazer justiça social e diminuir as desigualdades regionais. Ah, ah. Falta só me dizer que esse livrinho diz que condução coercitiva só depois que o sujeito for avisado... Tá de brincadeira. Se você avisar o cara, ele foge... Logo, tem mesmo é que buscar o sujeito na marra. ”
Timidamente, o professor diz: “Bem, isso está em outro livrinho, o CPP”.
CPP, pergunta o publicitário? “Parece a sigla do PCC. Esse é outro livrinho que tem de mudar. O título deveria ser: DHHD — direitos humanos só para humanos direitos. Sacou, teacher? Veja a sonoridade... DHHD!”
Ah, complementa Mister Cool: “Falta só me dizer que o livrinho fala em presunção de inocência. Coisa mais brega isso. Não vende. Vamos colocar no seu lugar algo como ‘a prisão é obrigatória para quem não quer delatar’. Isso é que é cool”.
O professor nada responde.
“Outra coisa que li aqui e que deve ser cortada”, complementa o publicitário, “é esse negócio de proibir interceptações e vazamentos de diálogos... que coisa mais retrógrada. Na era da informática, qual é o problema? Se o vazamento for para o bem, que mal tem? Melhor é arrumar isso na tal lei. Ah: vou chamar o pessoal da arte para cortar isso. Livros com mais de 100 páginas, nem falar”.
Professor: “Mas, senhor, assim acaba com a Constituição”.
Publicitário: “Ah, é esse o nome do livrinho? Constituição? Bom, não importa. Vamos ter de trocar o nome. E temos que colocar uma coisa irada nesse livrinho, algo que vire meme, como o que se vê no Programa do Datena e na GloboNews. Assim: ‘toda decisão jurídica emana do clamor popular’. Isso é que vende. Se liga, teacher”.
“Pois é”, conclui o professor, “não vai sair negócio. Vamos deixar assim. Devolva-me o livro. Este ano está fazendo trinta anos...” E saiu meditabundo, pela porta dos fundos, sem terminar a frase. Em meia hora tinha o compromisso de ministrar uma aula. Não sabia o que dizer aos alunos. Olhava alrededor e se sentia em Aleppo. Olhou para o céu para ver se o planeta, que um dia vai colidir com a terra, não tinha adiantado a chegada. Ligou o celular e viu que no seu grupo de "uats" preferido tinha acabado de receber o tal vídeo do professor que ensina cantando o funk das leis. Ou as leis via funk. Mentalmente o professor pensou em um palavrão rimando. E se deu conta que já não havia saída.
Quando as águas da enchente cobrem tudo, é porque já começara a chover na serra. De há muito.
 é jurista, professor de Direito Constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do escritório Streck e Trindade Advogados Associados: www.streckadvogados.com.br.

Revista Consultor Jurídico, 24 de maio de 2018, 8h00.

quarta-feira, 23 de maio de 2018

Cooperação no novo CPC (primeira parte): os deveres do juiz (Eduardo Talamini)

Postagem no Abertura Mundo Jurídico em 23/mai/2018...

Cooperação no novo CPC (primeira parte): os deveres do juiz

Eduardo Talamini
Novo CPC dá ênfase aos princípios e garantias fundamentais do processo. É nesse contexto que se insere a consagração do dever de cooperação.
terça-feira, 1º de setembro de 2015
1. Introdução
Um dos traços marcantes do novo CPC é a ênfase nos princípios e garantias fundamentais do processo. Reafirmam-se e especificam-se vetores constitucionais. É nesse contexto que se insere a consagração do dever de cooperação.
2. Origens
A origem da formulação teórica do dever de cooperação remonta ao direito civil. Trata-se do reconhecimento da existência, nas relações obrigacionais, de deveres acessórios de conduta, impondo a cooperação entre as partes (deveres de informação, esclarecimento, prevenção, auxílio...). Como se vê a seguir, sua aplicação ao processo civil não deriva de um influxo do direito civil sobre o direito processual, mas, antes, da incidência dos mesmos valores fundamentais em ambas as searas.
Mesmo no processo civil a ideia de cooperação não é nova. É afirmada há décadas – ainda que com terminologias variáveis – por doutrina, jurisprudência e legislação de países como Alemanha (berço da formulação), Itália, França... No Brasil, textos de Barbosa Moreira publicados há quase quarenta já tratavam do tema. Na primeira metade da década de 1990, o princípio já estava amplamente desenvolvido na doutrina brasileira.
Portanto, e a rigor, já vigora no ordenamento atual.
3. Noção
Mas em que consiste? Trata-se de reconhecer que – em que pesem as posições antagônicas, contrapostas, das partes; em que pese a distinção entre a posição do juiz (autoridade estatal) e das partes (jurisdicionados, sujeitos àquela autoridade) – todos os sujeitos do processo estão inseridos dentro de uma mesma relação jurídica (ou de um complexo de relações) e devem colaborar entre si para que essa relação, que é dinâmica, desenvolva-se razoavelmente até a meta para o qual ela é preordenada (a resposta jurisdicional final).
4. Fundamentos
Os fundamentos constitucionais dessa imposição são a boa-fé (moralidade), o contraditório e a razoabilidade (inerente ao devido processo legal).
Há quem critique a incidência do dever de cooperação no processo civil. Impor-se às partes o dever de cooperar implicaria ignorar o litígio, a conflituosidade, a verdadeira guerra entre as partes. Dir-se-ia que “o processo não é um jardim florido em que as partes passeiam de mãos dadas”.
Mas o princípio na cooperação não é uma descrição de como é o processo e sim uma prescrição de como ele deve ser.
Trata-se de compatibilizar a ideia do processo como embate (salutar, na essência, mas cuja distorção conduz à ideia do “processo como jogo”) com as exigências constitucionais de boa-fé e razoabilidade.
5. A norma geral no CPC/15
O novo CPC explicita o princípio (além de formular diversas regras que são clara expressão dele): “Art. 6º. Todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva.”
A norma impõe o dever de cooperação entre todos os sujeitos do processo: não só do juiz perante as partes; não só das partes entre si.
Neste primeiro breve texto, examinam-se os deveres que o princípio da cooperação impõe ao juiz. Mas desde já se ressalva: as partes também se submetem a deveres de cooperação – o que será objeto de um segundo texto.
6. O juiz e o dever de cooperação
No que tange ao juiz, a cooperação desdobra-se em quatro âmbitos: esclarecimento, diálogo (consulta), prevenção e auxílio (adequação).
6.1. Dever de esclarecimento
Cumpre ao juiz esclarecer-se quanto às manifestações das partes: questioná-las quanto a obscuridades em suas petições; pedir que esclareçam ou especifiquem requerimentos feitos em termos mais genéricos e assim por diante.
Um exemplo de tal dever no CPC/73 tem-se no despacho de especificação de provas. A despeito da exigência de que as provas sejam requeridas já na inicial e na contestação e da inexistência de previsão legal desse despacho, assentou-se o reconhecimento do dever do juiz, antes de sanear o processo, dar às partes tal oportunidade de esclarecimento.
No novo CPC, um dos vários exemplos é extraível do art. 357, § 3º (“Se a causa apresentar complexidade em matéria de fato ou de direito, deverá o juiz designar audiência para que o saneamento seja feito em cooperação com as partes, oportunidade em que o juiz, se for o caso, convidará as partes a integrar ou esclarecer suas alegações”).
O dever de esclarecimento apresenta ainda uma segunda dimensão, nem sempre considerada sob essa perspectiva: o juiz deve não só buscar a clareza das partes, mas ser, ele mesmo, claro. É nesse contexto, de cooperação, que se compreende melhor o extremo detalhamento que o CPC/15 estabelece para o dever de fundamentação das decisões do juiz (art. 489, §§ 1º e 2º).
6.2. Dever de diálogo (ou de consulta)
Impõe-se ainda reconhecer o contraditório não apenas como garantia de embate entre as partes, mas também como dever de debate do juiz com as partes. O CPC francês de 1975 vale-se de feliz fórmula para expressar essa exigência: o juiz deve “ele mesmo” observar o contraditório.
Não se admite que o juiz surpreenda as partes com decisões tomadas de oficio. O dever de cooperação não tolhe o poder judicial de instrução e cognição ex officio. Enquadram-se nesse âmbito o conhecimento da falta de pressupostos de admissibilidade da tutela jurisdicional e das nulidades processuais absolutas, os enquadramentos jurídicos diversos dos aventados pelas partes [jura novit curiam], as objeções materiais etc. Inserem-se também aqui a inversão do ônus da prova e a produção de provas de ofício. Em todos esses casos, em vez de decidir diretamente, o juiz deve antes dar a oportunidade para as partes se manifestarem. Nos termos do art. 9º do CPC/15: “Não se proferirá decisão contra uma das partes sem que ela seja previamente ouvida”. E o art. 10 é ainda mais explícito quanto ao dever de diálogo: “O juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício.”
Estaria o juiz afetando sua imparcialidade, por estar adiantando aquilo que pretende decidir em seguida? Não, pelo contrário: ao permitir o debate, está reforçando sua imparcialidade. Mesmo porque, depois de ouvir as partes, pode vir a mudar sua inicial impressão.
A segunda crítica que se costuma a fazer ao dever de diálogo é também impertinente: ele não inviabiliza o curso do processo em prazo razoável. Primeiro, porque em muitos casos ganha-se tempo (evitando-se recursos, mediante decisões mais acertadas). Depois, mesmo que se perca tempo em outros tantos casos, é o preço que se paga por um processo com um contraditório substancialmente mais qualificado.
6.3. Dever de prevenção
O juiz deve ainda advertir as partes sobre os riscos e deficiências das manifestações e estratégias por elas adotadas, conclamando-as a corrigir os defeitos sempre que possível. Tome-se como exemplo o art. 321 do novo CPC: “O juiz, ao verificar que a petição inicial não preenche os requisitos dos arts. 319 e 320 ou que apresenta defeitos e irregularidades capazes de dificultar o julgamento de mérito, determinará que o autor, no prazo de 15 (quinze) dias, a emende ou a complete, indicando com precisão o que deve ser corrigido ou completado.”
6.4. Dever de auxílio (adequação)
Além disso, o juiz deve ajudar as partes, eliminando obstáculos que lhes dificultem ou impeçam o exercício das faculdades processuais.
Esse é o dever mais discutível, no plano da cooperação. O auxílio legítimo já não estaria consubstanciado nos demais deveres, antes mencionados? O auxílio direto não deveria ser propiciado por outros sujeitos processuais (ministério público, defensor público...)?
Mas existe um campo específico de incidência do dever de auxílio, que nada tem a ver com assistência material a necessitados. Trata-se de uma intervenção técnica destinada a eliminar óbices ao exercício das garantias processuais (que podem pôr-se até contra litigantes de boa situação econômica). Ou seja, a questão não é tanto de auxílio subjetivo, mas de adequação objetiva do processo às peculiaridades concretas do conflito.
Pense-se na distribuição dinâmica do ônus da prova (art. 373, § 1º: “Nos casos previstos em lei ou diante de peculiaridades da causa relacionadas à impossibilidade ou à excessiva dificuldade de cumprir o encargo nos termos do caput ou à maior facilidade de obtenção da prova do fato contrário, poderá o juiz atribuir o ônus da prova de modo diverso, desde que o faça por decisão fundamentada, caso em que deverá dar à parte a oportunidade de se desincumbir do ônus que lhe foi atribuído”)
Considere-se ainda o poder de flexibilização procedimental, para a inversão da ordem das provas (art. 139, VI), ou ainda a ampliação de prazos, quando houver dificuldade para o cumprimento do prazo posto na lei por exemplo (art. 139, VI, e art. 437, § 2º).
________________
*Eduardo Talamini é advogado, sócio do escritório Justen, Pereira, Oliveira & Talamini - Advogados Associados. Livre-docente, doutor e mestre pela Faculdade de Direito da USP. Professor da Faculdade de Direito da UFPR.









Princípio da cooperação. Busca de bens penhoráveis pelo sistema Infojud não quebra sigilo fiscal. Possibilidade. Agravo provido. TJRS. j. 07/dez/2017.

Postagem no Abertura Mundo Jurídico em 23/mai/2018...


Ementa:

AGRAVO DE INSTRUMENTO. DIREITO PRIVADO NÃO ESPECIFICADO. EXECUÇÃO DE TÍTULO EXTRAJUDICIAL. ENSINO PARTICULAR. LOCALIZAÇÃO DE BENS. SISTEMA INFOJUD. POSSIBILIDADE. INEXISTÊNCIA DE QUEBRA DE SIGILO FISCAL. 
Viável a localização de bens penhoráveis perante a Receita Federal,

Princípio da cooperação. Pedido de consulta de endereço da parte indeferido. Decisão reformada. Agravo provido. Consulta determinada. TJRS. j. 25/abr/2018.

Postagem no Abertura Mundo Jurídico em 23/mai/2018...


Ementa:

AGRAVO DE INSTRUMENTO. RECUPERAÇÃO JUDICIAL E FALÊNCIA. REALIZAÇÃO DE PESQUISA DE ENDEREÇO DA PARTE AGRAVADA JUNTO A ÓRGÃOS CONVENIADOS COM O PODER JUDICIÁRIO. POSSIBILIDADE. 
1. No presente caso, pretende a parte agravante a reforma da decisão que indeferiu o pedido de

Por que a gasolina é tão cara

Postagem no Abertura Mundo Jurídico em 23/mai/2018...






Original disponível em: (https://www.youtube.com/watch?v=sV-xFUvskdc#action=share). Acesso em 23/mai/2018.

segunda-feira, 21 de maio de 2018

Ciro faz defesa enfática de Lula e ataca Globo: "jornalismo deplorável"

Postagem no Abertura Mundo Jurídico em 21/mai/2018...




Original disponível em: (https://www.youtube.com/watch?v=f7vPWX9ijJU#action=share). Acesso em 21/mai/2018.

TSE não pode barrar candidatura de Lula, diz Cármen Lúcia

Postagem no Abertura Mundo Jurídico em 21/mai/2018...


A presidenta do Supremo Tribunal Federal, ministra Cármen Lúcia, afirmou na madrugada desta segunda (21), em entrevista ao programa Canal Livre, da Band, que os ministros do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) não podem, de ofício, barrar a candidatura do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.



Leia no Blog do Esmael:



TSE não pode barrar candidatura de Lula, diz Cármen Lúcia

domingo, 20 de maio de 2018

Advogado eleitoral explica por que Lula pode ser candidato

Postagem no Abertura Mundo Jurídico em 20/mai/2018...






Original disponível em: (https://www.youtube.com/watch?v=KaUfEVFwmhA#action=share). Acesso em 20/mai/2018.

Lula Livre ganha comitê internacional na internet em quatro idiomas

Postagem no Abertura Mundo Jurídico em 20/mai/2018...

O Blog do Esmael anotou mais cedo que "Lula Livre" tinha virado uma ideia mundial, impossível de ser aprisionada. Agora chega a informação sobre a criação do “Comitê Internacional Lula Livre”, cuja iniciativa foi materializada em um site na internet disponível em quatro idiomas.

Leia no Blog do Esmael:

Lula Livre ganha comitê internacional na internet em quatro idiomas

Documentário: A indústria da delação premiada na Lava Jato

Postagem no Abertura Mundo Jurídico em 20/mai/2018...








Original disponível em: (https://www.youtube.com/watch?v=NHAxHyz3-dQ#action=share). Acesso em 20/mai/2018.

Requião questiona contrato de R$ 1,6 milhão para segurança de Fachin



O senador Roberto Requião (MDB-PR) questionou neste sábado (19), via Twitter, a licitação do Supremo Tribunal Federal de R$ 1,6 milhão para contratar segurança privada para o ministro Edson Fachin.

Leia mais no Blog do Esmael:

Requião questiona contrato de R$ 1,6 milhão para segurança de Fachin

“Lula Livre” virou ideia mundial. Assista...

Postagem no Abertura Mundo Jurídico em 20/mai/2018...

Uma multidão de Lulas tomou as ruas de Buenos Aires, capital da Argentina, na noite deste sábado (19), em apoio ao ex-presidente do Brasil. O gesto mostrou que "Lula Livre" virou uma ideia mundial que dificilmente ficará aprisionada.

Leia e assista no Blog do Esmael:

“Lula Livre” virou ideia mundial; assista:

domingo, 13 de maio de 2018

ENTREVISTA Jürgen Habermas: “Não pode haver intelectuais se não há leitores” (Borja Hermoso. El Pais)

Postagem no Abertura Mundo Jurídico em 13/mai/2018...



ENTREVISTA

Jürgen Habermas: “Não pode haver intelectuais se não há leitores”

Jürgen Habermas: “Não pode haver intelectuais se não há leitores”


Prestes a completar 89 anos, o filósofo vivo mais influente do mundo está em plena forma. O velho professor alemão, discípulo de Adorno e sobrevivente da Escola de Frankfurt, mantém mão de ferro em seus julgamentos sobre as questões essenciais de hoje e de sempre, que continua destilando em livros e artigos. Os nacionalismos, a imigração, a Internet, a construção europeia e a crise da filosofia são alguns dos temas tratados durante este encontro na sua casa em Starnberg.




Ao redor o lago de Starnberg, a 50 quilômetros de Munique, se amontoam sucessivas fileiras de chalés de estilo alpino. A única exceção às esmagadoras doses de melancolia, madeira escura e flores nas sacadas surge na forma de um bloco branco e compacto de cantos suaves, com janelas grandes e quadradas como única concessão à sobriedade. É o racionalismo feito arquitetura no país da Heidi. A Bauhaus e sua modernidade raivosa no meio da Baviera eterna e conservadora. Uma minúscula placa branca sobre uma porta azul confirma que ali vive Jürgen Habermas (Düsseldorf, 1929), sem dúvida o filósofo vivo mais influente do mundo por sua trajetória, sua obra publicada e sua atividade frenética até hoje, quando falta um mês e meio para que complete 89 anos. Sua esposa há mais de 60 anos, a historiadora Ute Wesselhoeft, nos recebe no pequeno vestíbulo e demora apenas alguns segundos para girar a cabeça e exclamar: “Jürgen, os senhores da Espanha chegaram!”. Ambos habitam esta casa desde 1971, quando Habermas passou a dirigir o Instituto Max Planck de Ciências Sociais.


O discípulo e assistente de Theodor Adorno, além de membro insigne da segunda geração da Escola de Frankfurt e ex-catedrático de Filosofia na Universidade Goethe de Frankfurt, avança vindo do seu escritório, uma adorável bagunça de papéis e livros em estado de caos, cujos janelões dão para uma floresta. Aperta a mão com força. É muito alto, caminha muito ereto e tem uma espetacular mata de cabelos brancos como a neve. Cumprimenta afável e convida a sentar num dos grandes sofás. O cômodo está decorado em tons brancos e areia e acolhe uma pequena coleção de arte moderna que inclui pinturas de Hans Hartung, Eduardo Chillida, Sean Scully e Günter Fruhtrunk e esculturas de Oteiza e Miró (esta última simboliza o Prêmio Príncipe de Astúrias de Ciências Sociais recebido em 2003). Abre-se imponente ao visitante a biblioteca de Habermas, que aloja velhos volumes de Goethe e de Hölderlin, de Schiller e de Von Kleist, e fileiras inteiras de obras de Engels, Marx, Joyce, Broch, Walser, Hermann Hesse e Günter Grass, entre uma infinidade de escritores e pensadores.

“Não pode haver intelectuais comprometidos se já não há mais leitores a quem continuar alcançando com argumentos”

O autor de obras imprescindíveis do pensamento, da sociologia e da ciência política do século XX, como Mudança Estrutural da Esfera Pública, Conhecimento e Interesse, O Discurso Filosófico da Modernidade e Teoria da Ação Comunicativa, troca impressões com o EL PAÍS a respeito de alguns dos temas que lhe preocuparam durante seis décadas e continuam a preocupá-lo. Com uma exceção: o entrevistado preferiu evitar qualquer questão relacionada ao passado nazista de seu país e à sua própria experiência a respeito (foi membro das Juventudes Hitlerianas — por obrigação, como tantos compatriotas seus). Habermas está furioso. “Sim…, continuo furioso com algumas das coisas que ocorrem no mundo. Isso não é ruim, não é?”, brinca.
Pergunta. Professor Habermas, fala-se muito na decadência da figura do intelectual comprometido. Considera justo esse julgamento? Não é frequentemente um mero tema de conversa entre os próprios intelectuais?



Jürgen Habermas: “Não pode haver intelectuais se não há leitores”


Resposta. Para a figura do intelectual, tal como a conhecemos no paradigma francês, de Zola até Sartre e Bourdieu, foi determinante uma esfera pública cujas frágeis estruturas estão experimentando agora um processo acelerado de deterioração. A pergunta nostálgica de por que já não há mais intelectuais está mal formulada. Eles não podem existir se já não há mais leitores aos quais continuar alcançando com seus argumentos.

“A única forma de fazer frente às ondas mundiais de emigração seria combater suas causas econômicas nos países de origem”


P. É possível pensar que a Internet acabou por diluir essa esfera pública que antes talvez fosse garantida pela grande mídia tradicional e que isso afetou a repercussão dos filósofos e dos pensadores?

R. Sim. Desde Heinrich Heine, a figura histórica do intelectual ganhou importância junto com a esfera pública liberal em sua configuração clássica. No entanto, esta vive de certos pressupostos culturais e sociais inverossímeis, principalmente da existência de um jornalismo desperto, com meios de referência e uma imprensa de massa capaz de despertar o interesse da grande maioria da população para temas relevantes na formação da opinião pública. E também da existência de uma população leitora que se interessa por política e tem um bom nível educacional, acostumada ao processo conflitivo de formação de opinião, que reserva um tempo para ler a imprensa independente de qualidade. Hoje em dia, essa infraestrutura não está mais intacta. Talvez, que eu saiba, se mantenha em países como Espanha, França e Alemanha. Mas também neles o efeito fragmentador da Internet deslocou o papel dos meios de comunicação tradicionais, pelo menos entre as novas gerações. Antes que entrassem em jogo essas tendências centrífugas e atomizadoras das novas mídias, a desintegração da esfera populacional já tinha começado com a mercantilização da atenção pública. Os Estados Unidos com o domínio exclusivo da televisão privada é um exemplo chocante disso. Hoje os novos meios de comunicação praticam uma modalidade muito mais insidiosa de mercantilização. Nela, o objetivo não é diretamente a atenção dos consumidores, mas a exploração econômica do perfil privado dos usuários. Roubam-se os dados dos clientes sem seu conhecimento para poder manipulá-los melhor, às vezes até com fins políticos perversos, como acabamos de saber pelo escândalo do Facebook.



O pensador alemão aparece numa janela da casa onde vive com sua esposa, Ute, desde 1971.
O pensador alemão aparece numa janela da casa onde vive com sua esposa, Ute, desde 1971.


P. O senhor acredita que a Internet, para além de suas indiscutíveis vantagens, criou uma espécie de novo analfabetismo?

R. O senhor se refere às controvérsias agressivas, às bolhas e às histórias falsas de Donald Trump em seus tuítes. Deste indivíduo não se pode dizer sequer que esteja abaixo do nível da cultura política de seu país. Trump baixa esse nível constantemente. Desde a invenção do livro impresso, que transformou todas as pessoas em leitores potenciais, foi preciso passar séculos até que toda a população aprendesse a ler. A Internet, que nos transforma todos em autores potenciais, não tem mais do que duas décadas. É possível que com o tempo aprendamos a lidar com as redes sociais de forma civilizada. A Internet abriu milhões de nichos subculturais úteis nos quais se troca informação confiável e opiniões fundamentadas. Pensemos não só nos blogs de cientistas que intensificam seu trabalho acadêmico por este meio, mas também, por exemplo, nos pacientes que sofrem de uma doença rara e entram em contato com outra pessoa na mesma condição em outro continente para se ajudar mutuamente com conselhos e experiências. Sem dúvida, são grandes benefícios da comunicação, que não servem só para aumentar a velocidade das transações na Bolsa e dos especuladores. Sou velho demais para julgar o impulso cultural que as novas mídias vão gerar. O que me irrita é o fato de que se trata da primeira revolução da mídia na história da humanidade que serve antes de tudo a fins econômicos, e não culturais.

P. No cenário hipertecnologizado de hoje, onde triunfam os saberes úteis, por assim dizer, qual o papel e sobretudo qual o futuro da filosofia?

R. Veja, sou da antiquada opinião de que a filosofia deveria continuar tentando responder às perguntas de Kant: o que é possível saber?, o que devo fazer?, o que me cabe esperar? e o que é o ser humano? No entanto, não tenho certeza de que a filosofia, como a conhecemos, tenha futuro. Atualmente segue, como todas as disciplinas, a corrente no sentido de uma especialização cada vez maior. E isso é um beco sem saída, porque a filosofia deveria tentar explicar o todo, contribuir para a explicação racional de nossa forma de entender a nós mesmos e ao mundo.

P. O que resta de sua orientação marxista? Jürgen Habermas continua sendo um homem de esquerda?

“Macron me inspira respeito porque, no paralisante cenário atual, é o único que se atreve a ter uma perspectiva política e que demonstra coragem”


R. Estou há 65 anos trabalhando e lutando na universidade e na esfera pública em favor de postulados de esquerda. Se há 25 anos advogo pelo aprofundamento político da União Europeia, faço isso com a ideia de que apenas esse regime continental poderia domar um capitalismo que se tornou selvagem. Jamais deixei de criticar o capitalismo, nem tampouco de ter consciência de que não bastam diagnósticos vagos. Não sou desses intelectuais que atiram a esmo.

P. Kant + Hegel + Iluminismo + marxismo desencantado = Habermas. Essa equação é suficiente para resolver o “x” de sua ideologia e pensamento?

R. Se é preciso expressá-los de forma telegráfica, estou de acordo, apesar de ainda faltar uma pitada da dialética negativa de Adorno...

P. O senhor cunhou em 1986 o conceito político do patriotismo constitucional, que hoje soa quase medicinal diante de outros supostos patriotismos de hino e bandeira. É muito mais difícil exercer o primeiro do que o segundo, não?

R. Em 1984, pronunciei uma conferência no Congresso espanhol a convite de seu presidente, e no fim fomos comer em um restaurante histórico. Ficava, se não me engano, entre o Parlamento e a Porta do Sol, na calçada da esquerda. Seja como for, durante a conversa animada com nossos impressionantes anfitriões — muitos deles eram colegas socialdemocratas que tinham participado da redação da nova Constituição do país —, minha esposa e eu nos inteiramos de que nesse lugar tinha acontecido a conspiração para preparar a proclamação da Primeira República espanhola de 1873. Ao saber disso, experimentamos uma sensação totalmente diferente. O patriotismo constitucional exige um relato apropriado para que tenhamos sempre presente que a Constituição é a conquista de uma história nacional.

P. E nesse sentido o senhor se considera um patriota?

R. Me sinto patriota de um país que, finalmente, depois da Segunda Guerra Mundial, deu à luz uma democracia estável, e ao longo das décadas subsequentes de polarização política, uma cultura política liberal. Hesito em declarar isso e, de fato, é a primeira vez que faço isso, mas nesse sentido sim, sou um patriota alemão, além de um produto da cultura alemã.



Jürgen Habermas lê na sala da sua casa em Starnberg, perto de Munique.
Jürgen Habermas lê na sala da sua casa em Starnberg, perto de Munique.



P. De que cultura alemã? Só há uma ou há culturas alemãs?

R. Sinto-me orgulhoso dessa cultura também em relação à segunda ou terceira geração de imigrantes turcos, iranianos, gregos, ou de onde quer que tenham chegado, que aparecem de repente na esfera pública como cineastas, jornalistas e os apresentadores de televisão mais fabulosos; como executivos e os médicos mais competentes, ou como os melhores literatos, políticos, músicos e professores. Tudo isso constitui uma demonstração palpável da força e da capacidade de regeneração de nossa cultura. A rejeição agressiva dos populistas de direita contra as pessoas sem as quais essa demonstração teria sido impossível é uma bobagem.

P. Acredito que o senhor prepara um novo livro sobre a religião e sua força simbólica e semântica como remédio para certas lacunas da modernidade. Pode nos contar um pouco desse projeto?

R. Bem, na verdade este livro não fala tanto de religião, mas de filosofia. Espero que a genealogia de um pensamento pós-metafísico desenvolvido a partir de um discurso milenar sobre a fé e o conhecimento possa contribuir para que uma filosofia progressivamente degradada como ciência não esqueça sua função esclarecedora.

P. Falando de religiões e de guerra de religiões e culturas, levando-se em conta o atual nível de intransigência e os fundamentalismos de todo tipo, o senhor acredita que rumamos para um choque de civilizações? Será que já estejamos imersos nele?

R. Em minha opinião, essa tese é totalmente equivocada. As civilizações mais antigas e influentes se caracterizaram pelas metafísicas e as grandes religiões estudadas por Max Weber. Todas elas têm um potencial universalista, e por isso se construíram sobre a base da abertura e da inclusão. A verdade é que o fundamentalismo religioso é um fenômeno totalmente moderno. Remonta à alienação social que surgiu e continua surgindo em consequência do colonialismo, da descolonização e da globalização capitalista.

P. O senhor escreveu certa ocasião que a Europa deveria fomentar um islã ilustrado e europeu. Acredita que isso esteja ocorrendo?

R. Na República Federal Alemã nos esforçamos por incluir em nossas universidades a teologia islâmica, de forma que possamos formar professores de religião em nosso próprio país e não tenhamos de continuar importando-os da Turquia ou de outros lugares. Mas, na essência, esse processo depende de conseguirmos integrar verdadeiramente as famílias imigrantes. No entanto, isso nem de longe é suficiente para conter as ondas mundiais de imigração. A única maneira de enfrentar isso seria combater as causas econômicas nos países de origem.

P. E como se faz isso?

R. Não me pergunte como se faz isso sem mudanças no sistema econômico mundial do capitalismo. É um problema de séculos. Não sou especialista, mas leia o livro de Stephan Lessenich Die Externalisierungsgesellschaft [A sociedade da externalização] e verá que a origem das ondas que agora refluem para a Europa e o mundo ocidental está exatamente nisso.

P. “A Europa é um gigante econômico e um anão político.” Assinado: Jürgen Habermas. Nada parece ter ficado melhor depois do Brexit, dos populismos e extremismos, dos movimentos nazistas, das tentativas nacionalistas de separação da Escócia e Catalunha...

R. A introdução do euro dividiu a comunidade monetária em norte e sul, em vencedores e perdedores. A causa é que as diferenças estruturais entre as regiões econômicas nacionais não podem ser compensadas se não se avança no sentido da união política. Faltam válvulas, como por exemplo a mobilidade em um mercado de trabalho único ou um sistema de segurança social comum, e faltam competências europeias para uma política fiscal comum. A isso se acrescenta o modelo político neoliberal incorporado aos tratados europeus, que reforça mais ainda a dependência dos Estados nacionais em relação aos mercados globalizados. O elevado desemprego juvenil nos países do sul é um escândalo absurdo. A desigualdade aumentou em todos os nossos países e erodiu a coesão populacional. Os que conseguem se adaptar aderem ao modelo econômico liberal que orienta a ação em benefício próprio; entre os que se encontram em situação precária, espalha-se os medos regressivos e as reações de ira irracionais e autodestrutivas.

P. O senhor acompanha de perto o problema catalão? Qual a sua opinião e diagnóstico?

R. Realmente qual é o motivo de um povo culto e avançado como a Catalunha desejar estar sozinha na Europa? Não entendo. Me dá a sensação de que tudo se reduz a questões econômicas... Não sei o que vai acontecer. O que lhe parece?

P. Acredito que pensar em isolar politicamente uma população de cerca de dois milhões de pessoas com aspirações independentistas não é realista. E sem dúvida não é simples...

R. Sem dúvida é um problema, sim. É muita gente.
Jürgen Habermas fala com muita dificuldade, pois nasceu com fissura labiopalatina. Uma pequena tragédia pessoal para alguém cuja missão filosófica primordial sempre foi valorizar a linguagem e a dimensão social e comunicativa do homem como remédio de tantos males (tudo isso compilado em sua célebre Teoria da ação comunicativa). O velho professor se mostra realista e resignado quando, olhando pela janela, sussurra: “Já não gosto dos grandes auditórios nem dos grandes salões. Não entendo bem as coisas. Há uma cacofonia que me desespera”.

P. Professor, o senhor considera os Estados-nação mais necessários do que nunca ou, pelo contrário, acredita que de alguma forma estão superados?

R. Hum, talvez não devesse dizer isso, mas considero que os Estados-nação foram algo em que quase ninguém acreditava mas que precisaram ser inventados em seu tempo por razões eminentemente pragmáticas.

P. Sempre culpamos os políticos pelo fracasso da construção europeia, mas nós, cidadãos comuns da UE, não temos nossa parcela da culpa? Nós, europeus, realmente acreditamos na europeidade?

R. Vejamos... Até agora as lideranças políticas e os governos levaram adiante o projeto de maneira elitista, sem incluir as populações dos países nessas questões complexas. Tenho a impressão de que sequer os partidos políticos e os deputados dos Parlamentos nacionais se familiarizaram com a complicada matéria da política europeia. Sob o lema “mamãe cuida do seu dinheiro”, Merkel e Schäuble protegeram durante a crise, de forma verdadeiramente exemplar, suas medidas contra a esfera pública.

P. A Alemanha conserva uma vocação de liderança europeia? A Alemanha confundiu às vezes liderança com hegemonia? E a França? Que papel deve desempenhar o país liderado por seu querido presidente Macron?

R. Seguramente, o problema foi, na verdade, que o Governo federal alemão sequer teve o talento ou a experiência de uma potência hegemônica. Do contrário teria sabido que não é possível manter a Europa unida sem levar em conta os interesses dos demais Estados. Nas duas últimas décadas, a República Federal agiu cada vez mais como uma potência nacionalista no terreno econômico. No que se refere a Macron, continua tentando persuadir Merkel de que é preciso pensar em sua imagem com vistas aos livros de história.

P. Que papel o senhor acredita que a Espanha pode desempenhar na melhoria da construção europeia?

R. A Espanha simplesmente tem de respaldar Macron.

P. Em artigos recentes o senhor defendeu com paixão a figura do presidente Macron que, veja só, é filósofo como o senhor. O que mais o atrai nele? Acredita que é um bom político por ser filósofo?

R. Por Deus, nada de governantes filósofos! No entanto, Macron me inspira respeito porque, no cenário político atual, é o único que se atreve a ter uma perspectiva política; que, como pessoa intelectual e orador convincente, persegue as metas políticas acertadas para a Europa; que, nas circunstâncias quase desesperadas da contenda eleitoral, demonstrou valor pessoal e que, até agora, em seu cargo de presidente, faz o que disse que ia fazer. E em uma época de perda de identidade política paralisante, aprendi a apreciar essas qualidades pessoais contrárias às minhas convicções marxistas.

P. No entanto, é impossível no momento saber qual é a ideologia dele... caso exista.

R. Sim, tem razão. Até o momento continuo sem ver claramente que convicções estão por trás da política europeia do presidente francês. Gostaria de saber se pelo menos é um liberal de esquerda convicto, e isso é o que espero.
Esta entrevista, que se pode realizar graças à colaboração do professor e escritor Daniel Innerarity, é um cruzamento de caminhos entre respostas oferecidas por escrito e trocas de impressões durante aquela manhã em Starnberg. 
Quando a conversa terminou, o único sobrevivente da segunda Escola de Frankfurt desapareceu de repente atrás da porta da cozinha de sua casa. Voltou com um sorriso cúmplice no rosto, trazendo uma garrafa de Rioja em uma mão e uma de Riesling na outra. Espanha e Alemanha, juntas na casa de Habermas.

Original disponível em: (https://brasil.elpais.com/brasil/2018/04/25/eps/1524679056_056165.html?id_externo_promo=enviar_email). Acesso em 13/mai/2018.