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terça-feira, 28 de janeiro de 2020

O que vai sobrar da namoradinha do Brasil? (Paulo Moreira Leite)

O que vai sobrar da namoradinha do Brasil?:



'Quarenta anos depois de encarnar uma personagem importante para emancipação feminina, Regina Duarte é convidada para o papel de modelo publicitário do bolsonarismo', escreve Paulo Moreira Leite, do Jornalistas pela Democracia

domingo, 19 de janeiro de 2020

Do prazo de prescrição aplicável aos casos de abandono afetivo (Flávio Tartuce)


Postagem no Abertura Mundo Jurídico em 19/jan/2020...

Do prazo de prescrição aplicável aos casos de abandono afetivo

quarta-feira, 30 de agosto de 2017 

Como demonstrado em texto anterior, publicado neste canal, muitos acórdãos da recente jurisprudência brasileira têm afastado a indenização por abandono afetivo, não obstante o seu reconhecimento quando do acórdão prolatado pela Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça no Recurso Especial 1.159.242/SP, do ano de 2012. 

Diante desse panorama recente, recomendamos naquele artigo que os pedidos de indenização por abandono afetivo sejam bem formulados, inclusive com a instrução ou realização de prova psicossocial do dano suportado pelo filho. Notamos, também em nossa pesquisa, que muitos dos arestos estão orientados pela afirmação de que não basta a prova da simples ausência de convivência para que caiba a indenização por abandono afetivo.

A nossa impressão, conforme as palavras finais do texto, foi no sentido de que a doutrina contemporânea foi bem festiva em relação à admissão da reparação imaterial por abandono afetivo pelo Tribunal da Cidadania. Porém, no âmbito das Cortes Estaduais há certo ceticismo, com numerosos julgados que afastam a indenização. E muitos deles o fazem com base no prazo prescricional a ser aplicado à espécie, o que aqui pretendemos abordar.

De início, esclareça-se que, por se tratar de demanda reparatória de danos, o prazo eventualmente aplicado é de prescrição, e não de decadência. Como é cediço, o Código Civil de 2002 acabou por adotar os critérios desenvolvidos por Agnelo Amorim Filho, em clássico estudo sobre os prazos, publicado na Revista dos Tribunais n. 300. Isso foi feito em prol da operabilidade, em um sentido de facilitação dos institutos privados, um dos baluartes principiológicos da codificação em vigor. Seguindo tal orientação, os prazos de prescrição são associados às ações condenatórias, caso das demandas relativas à responsabilidade civil, seja ela contratual ou extracontratual. Já os prazos de decadência associam-se às ações constitutivas positivas ou negativas, como ocorre no reconhecimento de nulidade relativa de um ato ou negócio jurídico, nos termos dos arts. 178 e 179 do Código Civil, sem prejuízo de outras normas que tratam da anulabilidade.

Pois bem, a corrente amplamente majoritária entende que o prazo prescricional, em casos tais, é de três anos, afirmando-se a subsunção do prazo especial para a reparação civil, previsto no art. 206, § 3º, inc. V, do Código Civil. No âmbito estadual, numerosos julgados seguem essa vertente, do prazo exíguo, diante de uma suposta subsunção perfeita ao caso concreto. Vejamos cinco deles, dos últimos dois anos e de cada uma das regiões do país.

De início, do Tribunal de Justiça do Paraná: "Ação reparatória de danos morais e materiais em razão do homicídio da mãe dos autores e do abandono afetivo em tese praticado pelo requerido. Prescrição. Aplicação do prazo trienal previsto no art. 206, § 3º, V, CCB. Autores absolutamente incapazes à época dos fatos. Início do prazo prescricional com o alcance da maioridade" (TJPR, Apelação cível n. 1601201-4, Ipiranga, Décima Câmara Cível, Relª Desª Ângela Khury Munhoz da Rocha, julgado em 08/06/2017, DJPR 21/07/2017, pág. 130). Do Tribunal de São Paulo: "Incidência do prazo de três anos previsto no artigo 206, § 3º, inciso V, do Código Civil de 2002, em consonância com o artigo 2.028 do mesmo diploma legal" (TJSP, Apelação n. 0013103-59.2012.8.26.0453, Acórdão n. 9425346, Pirajuí, Quinta Câmara de Direito Privado, Rel. Des. A. C. Mathias Coltro, julgado em 04/05/2016, DJESP 17/05/2016).

Da região Centro-Oeste, posicionou-se o Tribunal do Distrito Federal no sentido de que "a pretensão indenizatória da autora/recorrente prescreve em três anos, na esteira do art. 206, § 3º, inciso V, do Código Civil. Além disso, fundamenta-se no descumprimento, pelo réu/recorrido, das obrigações inerentes ao poder familiar, incluindo o amparo moral e econômico. Os deveres relativos ao poder familiar cessam com a maioridade plena, ainda que o genitor não os exerça. De fato, a simples alegação de que o requerido/apelado não cumpriria as obrigações relativas ao poder familiar não tem o condão de afastar a incidência da causa suspensiva prevista no art. 197, inciso II, do Código Civil. Sendo assim, resta claro que qualquer pretensão relacionada ao inadimplemento dos deveres inerentes ao poder familiar somente pode ser demandada quando encerrada a causa suspensiva acima mencionada, ou seja, com a maioridade plena do filho ou com a emancipação deste" (TJDF, Apelação cível n. 2015.01.1.064396-6, Acórdão n. 101.8971, Quarta Turma Cível, Rel. Des. Rômulo de Araújo Mendes, julgado em 11/05/2017, DJDFTE 30/05/2017).

Seguindo, do Estado da Paraíba, no mesmo sentido: "a pretensão de reparação civil por abandono afetivo nasce quando cessa a menoridade civil do autor, caso a suposta paternidade seja de seu conhecimento desde a infância, estando sujeita ao prazo prescricional de três anos" (TJPB, Recurso n. 0028806-67.2013.815.0011, Quarta Câmara Especializada Cível, Rel. Des. Romero Marcelo da Fonseca Oliveira, DJPB 11/04/2016). Por derradeiro, chegando-se ao Amazonas, tem-se que "a pretensão de indenização por abandono afetivo prescreve em três anos, conforme o prazo estabelecido no art. 206, § 3º, V, do Código Civil, e começa a contar a partir da maioridade do alimentando. No caso concreto deve ser reconhecida a prescrição, porquanto a presente ação foi ajuizada quase sete anos após o autor atingir a maioridade" (TJAM, Apelação n. 0622496-32.2013.8.04.0001, Primeira Câmara Cível, Relª Desª Maria das Graças Pessoa Figueiredo, DJAM 17/08/2017, p. 12).

Como se pode perceber, todos os julgados transcritos acabam por concluir que o prazo prescricional de três anos tem início com a maioridade do filho, pois, nos termos do art. 197, inc. II, do Código Civil, não corre a prescrição entre ascendentes e descendentes durante o poder familiar, o que é cessado quando o filho completa dezoito anos, em regra. Esse dispositivo, segundo tal interpretação, deve prevalecer sobre outra, enunciada pelo art. 198, inc. I, da mesma codificação, segundo a qual não corre a prescrição contra os absolutamente incapazes, os menores de dezesseis anos. Sendo assim, o prazo prescricional para o abandono afetivo acaba por vencer quando o filho completa vinte e um anos de idade (18 anos + 3 da prescrição).

Entre colegas professores consultados, assim se posicionam Ricardo Calderón, Rodrigo Toscano de Brito, João Ricardo Brandão Aguirre, Maurício Bunazar, Marcelo Truzzi Otero, Eduardo Busatta, Fábio Azevedo, Alexandre Gomide, Maurício Andere Von Bruck Lacerda, Roberto Lima Figueiredo, Marcelo Junqueira Calixto, Marco Aurélio Bezerra de Melo, Fernando Carlos de Andrade Sartori e Marcos Ehrhardt Júnior. No âmbito do STJ existe acórdão da Terceira Turma concluindo exatamente dessa forma: "Indenização por danos morais decorrentes do abandono afetivo. Prescrição. Aplicação do prazo prescricional trienal previsto no artigo 206 § 3º, inciso V, do CC/2002. Precedentes deste Tribunal" (STJ, AREsp 842.666/SP, Terceira Turma, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, DJE 29/06/2017).

Porém, é preciso aqui fazer uma ressalva, pois, se os fatos tiverem ocorrido na vigência do Código Civil de 1916, há que se aplicar o prazo geral de vinte anos para as ações pessoais, previsto no art. 177 da codificação revogada. Nessa linha, importante precedente da Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça, segundo o qual “os direitos subjetivos estão sujeitos a violações, e quando verificadas, nasce para o titular do direito subjetivo a faculdade (poder) de exigir de outrem uma ação ou omissão (prestação positiva ou negativa), poder este tradicionalmente nomeado de pretensão. A ação de investigação de paternidade é imprescritível, tratando-se de direito personalíssimo, e a sentença que reconhece o vínculo tem caráter declaratório, visando acertar a relação jurídica da paternidade do filho, sem constituir para o autor nenhum direito novo, não podendo o seu efeito retro-operante alcançar os efeitos passados das situações de direito. O autor nasceu no ano de 1957 e, como afirma que desde a infância tinha conhecimento de que o réu era seu pai, à luz do disposto nos artigos 9º, 168, 177 e 392, III, do Código Civil de 1916, o prazo prescricional vintenário, previsto no Código anterior para as ações pessoais, fluiu a partir de quando o autor atingiu a maioridade e extinguiu-se assim o ‘pátrio poder’. Todavia, tendo a ação sido ajuizada somente em outubro de 2008, impõe-se reconhecer operada a prescrição, o que inviabiliza a apreciação da pretensão quanto a compensação por danos morais” (STJ, REsp 1.298.576/RJ, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, 4ª Turma, julgado em 21/08/2012, DJe 06/09/2012).

Com o devido respeito às posições expostas, entendo que, em casos de abandono afetivo, não há que se reconhecer qualquer prazo para a pretensão, sendo a correspondente demanda imprescritível. Primeiro, pelo fato de a demanda envolver Direito de Família e estado de pessoas, qual seja a situação de filho. Segundo, por ter como conteúdo o direito da personalidade e fundamental à filiação. Terceiro, porque, no abandono afetivo, os danos são continuados, não sendo possível identificar concretamente qualquer termo a quo para o início do prazo.

Em verdade, penso que os casos de abandono afetivo são similares aos casos de responsabilidade civil por tortura, reconhecendo o Superior Tribunal de Justiça, em vários arestos, a imprescritibilidade da pretensão em tais situações. Assim, por exemplo, entre os mais recentes, com citação de outros acórdãos: “as ações indenizatórias por danos morais decorrentes de atos de tortura ocorridos durante o Regime Militar de exceção são imprescritíveis. Inaplicabilidade do prazo prescricional do art. 1º do Decreto 20.910/1932. Precedentes do STJ: AgRg no Ag 1.339.344/PR, Rel. Ministro Herman Benjamin, 2ª Turma, DJe 28.02.2012; AgRg no REsp 1.251.529/PR, Rel. Min. Benedito Gonçalves, 1ª Turma, DJe 01.07.2011” (STJ, AgRg no REsp 1.4981.67/RJ, Rel. Min. Humberto Martins, 2ª Turma, julgado em 18/08/2015, DJe 25/08/2015). Com tom suplementar de ilustração, entre os primeiros precedentes: "o dano noticiado, caso seja provado, atinge o mais consagrado direito da cidadania: o de respeito pelo Estado à vida e de respeito à dignidade humana. O delito de tortura é hediondo. A imprescritibilidade deve ser a regra quando se busca indenização por danos morais consequentes da sua prática" (STJ, REsp 379.414/PR, Rel. Min. José Delgado, DJ 17/02/2003).

Em reforço, parece-nos equivocado afirmar que o prazo prescricional, pela feição subjetiva da actio nata, terá início a partir da maioridade do filho postulante. Pela citada teoria, desenvolvida entre nós por Câmara Leal e José Fernando Simão, o prazo prescricional tem início não da lesão ao direito subjetivo, mas do conhecimento da lesão. Diante dessa feição subjetiva da actio nata que não se pode dizer qual o termo a quo para o início do prazo. Os danos são continuados, não cessam, não saem da memória do ofendido, mesmo em se tratando de pessoa com idade avançada. Em outras palavras, o prejuízo é de trato sucessivo, atinge a honra do filho a cada dia, a cada hora, a cada minuto e a cada segundo. Ninguém esquece o desprezo de um pai. Entre os colegas consultados, essa é a opinião de Pablo Malheiros da Cunha Frota, Marcos Jorge Catalan e Cesar Calo Peghini.

A respeito do início do prazo, também é preciso fazer uma objeção, adotando-se a posição majoritária pelo prazo prescricional específico. Ora, nem sempre o lapso temporal de três anos será contado da maioridade do filho. Em casos de reconhecimento posterior da paternidade, mais uma vez por aplicação da teoria da actio nata subjetiva, o prazo deve ser contado do trânsito em julgado da decisão que a reconhece, momento em que não há mais dúvida quanto ao vínculo dos envolvidos. Nesse sentido, conforme se retira de recente julgamento do Tribunal Paulista, "no caso dos autos, contudo, a autora apenas soube o nome do pai em 2013, ano em que completou 30 (trinta) anos, quando o réu dela se aproximou pela rede social Facebook. Propositura de ação de reconhecimento da paternidade pela autora embasada em exame de DNA positivo realizado em laboratório particular pelas partes. Início da contagem do prazo prescricional a partir da data do trânsito em julgado da ação de paternidade. Precedente deste Egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo" (TJSP, Apelação 1008272-98.2015.8.26.0564, Acórdão n. 9428000, São Bernardo do Campo, Oitava Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Pedro de Alcântara, julgado em 11/05/2016, DJESP 19/05/2016). Como se nota, o julgado admite a possibilidade de indenização por abandono afetivo após a maioridade, o que conta com o meu apoio.

Por derradeiro, sendo adotada a corrente pelo prazo de três anos, não se pode ignorar, ainda, a aplicação da regra de Direito Intertemporal do art. 2.028 do CC, in verbis: "serão os da lei anterior os prazos, quando reduzidos por este Código, e se, na data de sua entrada em vigor, já houver transcorrido mais da metade do tempo estabelecido na lei revogada". Desse modo, tendo sido o prazo reduzido de vinte para três anos, transcorrido menos da metade do prazo, deve-se aplicar o novo lapso de três anos, a partir de 11 de janeiro de 2003, data da entrada em vigor do Código Civil de 2002. Sendo assim, várias pretensões reparatórias prescreveram no mesmo dia: 11 de janeiro de 2006, com exceção dos casos dos filhos que ainda não tinham atingido a maioridade nesse período ou cuja maioridade ainda não tenha sido reconhecida. Nesse sentido, transcreve-se: "se a ação de indenização por dano moral decorrente de abandono afetivo foi proposta após o decurso do prazo de três anos de vigência do Código Civil de 2002, é imperioso reconhecer a prescrição da ação. Inteligência do art. 206, § 3º, inc. V, do CCB/2002. O novo Código Civil estabeleceu a redução do prazo prescricional para as ações de reparação civil, tendo incidência a regra de transição posta no art. 2.028 do CCB/2002" (TJRS, Apelação cível n. 283426-62.2013.8.21.7000, Farroupilha, Sétima Câmara Cível, Rel. Des. Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves, julgado em 28/08/2013, DJERS 05/09/2013).

Como se pode perceber, muitas peculiaridades técnicas devem ser percebidas, mesmo no caso de adoção do prazo de três anos. O tema do abandono afetivo, assim, apresenta dificuldades jurídicas não só no seu conteúdo, mas também na verificação da existência ou não da suposta pretensão. Em suma, limitações existentes a respeito da prova do dano e do prazo prescricional têm feito que os pedidos de reparação imaterial sejam afastados na grande maioria dos casos levados ao Poder Judiciário. 

Flávio Tartuce
Flávio Tartuce é doutor e pós-doutorando em Direito Civil pela USP. Mestre em Direito Civil Comparado pela PUC/SP. Professor titular permanente do programa de mestrado e doutorado da Faculdade Autônoma de Direito de São Paulo. Professor e coordenador dos cursos de pós-graduação lato sensu da Escola Paulista de Direito. Professor do G7 Jurídico. Diretor do IBDFAM – Nacional e vice-presidente do IBDFAM/SP. Advogado em São Paulo, parecerista e consultor jurídico.

Em decisão, juiz diz que país vive "merdocracia liberal neofacista" (Conjur: Rafa Santos)


Postagem no Abertura Mundo Jurídico em 19/jan/2020...

Em decisão, juiz diz que país vive "merdocracia liberal neofacista"


Em decisão, juiz diz que país vive "merdocracia liberal neofacista" 3:54

Juiz definiu realidade brasileira como "merdocracia" ao condenar empregador
123RF

“O ser humano Weintraub no cargo de Ministro da Educação escreve "imprecionante". O ser humano Moro no cargo de Ministro da Justiça foi chamado de "juizeco fascista" e abominável pela neta do coronel Alexandrino. O ser humano Guedes no cargo de Ministro da Economia ameaça com AI-5 (perseguição, desaparecimentos, torturas, assassinatos) e disse que "gostaria de vender tudo". O ser humano Damares no cargo de Ministro da Família defende "abstinência sexual como política pública". O ser humano Bolsonaro no cargo de presidente da República é acusado de "incitação ao genocídio indígena" no Tribunal Penal Internacional.”
Assim começa a fundamentação de decisão do juiz do trabalho substituto Jerônimo Azambuja Franco Neto, da 18ª Vara do Trabalho do TRT da 2ª Região, que julgou procedente a ação do Sindicato dos Empregados no Comércio Hoteleiro e Similares de São Paulo e condenou um restaurante à observância de cláusulas normativas referentes ao piso salarial normal, ao seguro de vida e acidentes em grupo com cobertura mais elevada, à obrigatoriedade da homologação das rescisões contratuais junto ao sindicato-autor, à concessão e manutenção de assistência funerária. O juiz também condenou a parte reclamada a pagar indenização por danos morais coletivos e honorários advocatícios.
Ao analisar o caso, o magistrado define a realidade brasileira como “merdocracia”. “O sufixo "cracia" significa poder e domínio. Já o substantivo "merda" pode significar excrementos orgânicos, alguém pejorativamente ou interjeição de sorte no meio cultural (a ser vítima de diversas censuras, como no caso do filme Marighella, censurado no Brasil, ou na censura judicial ao Especial de Natal do Porta dos Fundos). A acepção aqui privilegiada é aquela quando referida a uma merda feita, uma cagada, ou seja, fez algo errado. Em suma, merdocracia vem a sintetizar o poder que se atribui aos seres humanos que fazem merdas e/ou perpetuam as merdas feitas. E tudo isso em nome de uma pauta que se convencionou chamar neoliberal, ou seja, libertinar a economia para que as merdas sejam feitas. Mas há a merda fundamental por trás dessa pauta. A existência do Estado nos marcos da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) e da Constituição do Brasil (1988) é voltada à promoção da igualdade e dos direitos humanos fundamentais, elementos de inteligência odiados pela ignorância merdocrata”, argumenta.
O texto da sentença também afirma que as pessoas são “bombardeadas pelas merdas (como no caso das fake news) de modo a se construir uma identidade fascista. Cada um se torna seu próprio algoz e/ou algoz dos demais movido pelo ódio ao indesejado”.
Ele também critica o procurador da República Deltan Dallagnol que, segundo ele, “imbuído da lucratividade com suas palestras e holofotes (como revela The Intercept Brasil), propagou fazer jejum para o aprisionamento de Lula em um sistema penal, como já dito, fracassado e racista no Brasil. Cabe lembrar que Jesus Cristo vivia como mendigo nômade a perambular na pobreza, amava os odiados, como leprosos e prostitutas, e foi crucificado pelo sistema penal da época”.
O magistrado argumenta que a “merdocracia neoliberal neofascista está aí para quem quiser ou puder ver". "A ela esta decisão não serve, pelo contrário, visa a contribuir para sua derrocada." Por fim, o juiz afirma o lugar de fala de sua decisão não é voltado ao mercado e nem ao lucro, mas “ao trabalho humano digno voltado à igualdade e aos direitos humanos fundamentais”.

Clique aqui para ler a decisão
1001132-78.2019.5.02.0018


 é repórter da revista Consultor Jurídico.

Revista Consultor Jurídico, 18 de janeiro de 2020, 16h59

sábado, 4 de janeiro de 2020

Abuso de Autoridade e o reencontro com o Estado de Direito (Gilmar Ferreira Mendes e Victor Oliveira Fernandes)


Postagem no Abertura Mundo Jurídico em 04/jan/2020...

Abuso de Autoridade e o reencontro com o Estado de Direito




Em 2 de outubro de 2017, o país foi surpreendido com a chocante notícia da morte do então reitor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Luiz Carlos Cancellier, que se suicidara em um shopping de Florianópolis. Dezessete dias antes, Cancellier havia sido afastado da função pública que exercia e preso preventivamente por 30 horas no âmbito de uma operação da Polícia Federal que investigava supostos desvios em cursos de Educação à Distância oferecidos pela universidade.

No dia de sua prisão, a PF veiculou a notícia de que a operação desbaratara um suposto esquema de desvios de mais de R$ 80 milhões. A repercussão foi determinante para a decisão de Cancellier de tirar sua própria vida. Tempos depois, a própria Polícia Federal desmentiu a informação, já que tal valor se referia ao total dos repasses para o programa. Não havia qualquer elemento indiciário que envolvesse Cancellier no inquérito.

Os equívocos só foram admitidos extemporaneamente. Em um bilhete encontrado no bolso do suicida, um recado: "minha morte foi decretada no dia do meu afastamento da universidade"[1].

A família do reitor apresentou representação junto ao Ministério da Justiça para que a divulgação errônea dos fatos fosse apurada. O irmão da vítima narra que, dois meses depois, a Polícia Federal respondeu que a publicação da notícia falsa seria indiferente já que “ninguém lê”[2]. A sindicância aberta contra a delegada responsável pelo caso foi estranhamente arquivada sem qualquer punição[3].

A emblemática história de Cancellier deve ser rememorada na data de hoje (3/1), que marca o início da vigência da nova Lei de Abuso de Autoridade (Lei 13.869/2019). A legislação representa um avanço civilizatório ímpar para o Direito Penal brasileiro, não apenas por ter conferido aprimoramento técnico significativo em relação ao diploma anterior (Lei 4.898/65), mas sobretudo por sacralizar o compromisso de autorreflexão de uma sociedade democrática sobre os limites do sistema punitivo.

A concepção de um regime de responsabilização dos representantes do Estado por excessos funcionais remota à Constituição Republicana de 1891[4]. Textos constitucionais subsequentes conservaram como garantia individual o direito de petição voltado à denúncia de práticas abusivas de agentes públicos[5]. A despeito dessa longa tradição, os atos de abusos de autoridade só vieram a ser criminalizados, curiosamente, durante a Ditadura Militar, com o advento da Lei 4.898 de 9 de dezembro 1995, cuja vigência também vem a termo na presente data.

A legislação revogada deriva do Projeto de Lei 952 de 1956, de autoria do então deputado Bilac Pinto, da União Democrática Nacional de Minas Gerais (UDN-MG), apresentado durante o governo de Juscelino Kubitschek. A justificativa da propositura legislativa não escondia sua intenção de firmar um contraponto à escalada de violência policial ainda no período democrático.

Nas palavras de Bilac Pinto, o objetivo da norma seria “o de complementar a Constituição para que os direitos e garantias nela assegurados deixem de constituir letra morta em numerosíssimos municípios brasileiros”[6]. O texto aprovado no Congresso Nacional foi sancionado pelo presidente Castello Branco com um único veto parcial (modalidade admitida à época) aposto ao artigo 10 da lei, o qual estabelecia a independência entre as ações penais e as ações cíveis reparatórias.

Em muitos pontos, porém, o caráter atécnico da Lei 4.898/65 comprometeu a sua efetividade. As tentativas de definição dos excessos na ação dos agentes públicos insculpidas no diploma careciam de uma taxatividade que conferisse segurança mínima à aplicação da norma penal. A conceituação dos atos de abuso foi remetida a um rol demasiadamente amplo de condutas atentatórias à liberdade de locomoção e a outros direitos individuais descritos nos artigos 3º e 4º. Para além da deficiência legística, as manchas históricas do autoritarismo do regime militar deixaram claro que a lei em questão “não pegou”.

Após o restabelecimento da ordem democrática em 1988, as discussões sobre o regime criminal de abuso de autoridade só vieram a ser reanimadas no final dos anos 2000. Por ocasião do 2º Pacto Republicano firmado entre os representantes dos Poderes da República em 2009, foi posta como meta prioritária da agenda de proteção de direitos humanos “a revisão da legislação relativa ao abuso de autoridade, a fim de incorporar os atuais preceitos constitucionais de proteção e responsabilização administrativa e penal dos agentes e servidores públicos em eventuais violações aos direitos fundamentais”[7].

No âmbito do Comitê Gestor do Pacto Republicano, instituiu-se uma comissão de notáveis dedicada a aprimorar a antiga legislação de abuso de autoridade. O grupo era composto por juristas que foram e são verdadeiros símbolos do comprometimento do Poder Judiciário com os princípios estruturantes do Estado de Direito. A comissão era liderada por ninguém menos que Teori Zavascki, à época ministro do Superior Tribunal de Justiça, figura ímpar da história recente da magistratura brasileira. Integravam ainda o grupo nomes ilustres como Rui Stocco, Vladmir de Passos Freitas, Antônio Umberto de Souza Júnior, Everardo Maciel e Luciano Fuck.

Os resultados dos trabalhos do grupo corporificaram o Projeto de Lei 6.418, de autoria do então Deputado Raul Jungmann, apresentado ao Plenário da Câmara dos Deputados em 11 de novembro de 2009 [8]. A propositura legislativa foi intensamente discutida com integrantes do Ministério da Justiça, juízes, parlamentares, representantes do Ministério Público, auditores fiscais e membros das forças policiais. Trata-se, em essência, de uma fórmula de compromisso institucional que já chegou madura à deliberação do Parlamento.

A legislação de abuso de autoridade que entra em vigência na data de hoje é resultado da aprovação dos Projetos de Lei do Senado 280/2016 e 85/2017. Ambos os projetos incorporaram o texto original do Projeto de Lei 6.418/2009. Ou seja, Lei 13.869/2019 é, no seu DNA, um constructo de juristas como Zavaski, Stocco, Freitas e Maciel. Como cediço, após a aprovação do texto da lei no Congresso Nacional, houve ainda 36 vetos presidenciais, dos quais apenas 18 foram mantidos pelo Parlamento, os quais não desfiguraram o núcleo da proposta pensada no 2º Pacto Republicano.

É indiscutível que nenhuma legislação nasce perfeita, muito menos as que amadurecem em um caminho histórico tão labiríntico. É possível, e mesmo necessário, que alguns dispositivos da lei tenham que ser submetidos a um teste de batimento à luz do texto constitucional. Todavia, a qualidade técnica da proposição aprovada é digna de destaque. A latitude da incidência da norma sujeita qualquer agente público ao seu escrutínio, do Presidente da República ao guarda de trânsito da esquina.

Para além, a ampla conquista de uma nova Lei de Abuso de Autoridade transcende o exame da sua tecnicidade. O ganho democrático da legislação está em reinserir na pauta institucional um debate que nunca deveria ter sido relegado a segundo plano.

Longe de ser uma jabuticaba, diversos países da tradição romano-germânica em democracias consolidadas conservam leis penais efetivas voltadas à coibição de excessos dos agentes públicos. Na França, os artigos 332-4 a 332-9 do Código Penal trazem previsões específicas para o abuso de autoridade, tipificando como crime “ordenar ou praticar arbitrariamente ato prejudicial à liberdade pessoal”.

Na Alemanha, a legislação criminaliza a “violação ou torsão do Direito”, a Rechtsbeugung do §339 StGB, e ainda o delito de “persecução de inocente”, a Verfolgung Unschuldiger do §344 StGB. Na Espanha, o artigo 446 do Código Penal prevê a punição do "juiz ou magistrado que, intencionalmente, ditar sentença ou resolução injusta”. Este foi, inclusive, o dispositivo que fundamentou a condenação do juiz Espanhol Baltasar Garzón, por violação ao direito de defesa dos réus na ordenação de interceptações telefônicas ilegais.

Se é inegável que toda norma recebe a incontornável marca da sua temporalidade, a Lei 13.869/2019 embalsama-se em uma quadra única da nossa história recente: o momento de reconciliação do sistema punitivo com os pilares essenciais do constitucionalismo democrático. Seja por nos advertir dos profundos riscos do autoritarismo, seja por sagrar a virtude da prudência na realização da justiça, a Lei 13.869/2019 merece ser cunhada de Lei Cancellier-Zavaski.


4 Art.72 - A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no paiz a inviolabilidade dos direitos concernentes á liberdade, á segurança individual e á propriedade, nos termos seguintes: § 9º É permittido a quem quer que seja representar, mediante petição, aos poderes publicos, denunciar abusos das autoridades e promover a responsabilidade dos culpados.
5 Disposições semelhantes se fazem presentes: no art. 113, inciso 10, da Constituição de 1934 e no art. 141, § 37, da Constituição de 1946.
6 Discurso de apresentação do Projeto de Lei nº 952 proferido pelo Deputado Bilac Pinto em10 de janeiro de 1956. Disponível em: http://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf/DCD17JAN1956SUP.pdf#page=3.

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 é ministro do Supremo Tribunal Federal, Doutor e Mestre em Direito pela University of Münster (Alemanha). Mestre e Bacharel em Direito (UnB). Docente permanente nos cursos de Graduação, Pós-graduação lato sensu, Mestrado e Doutorado em Direito do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP).

Victor Oliveira Fernandes é assessor de ministro no Supremo Tribunal Federal. Doutorando pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), Mestre em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília (UnB). Professor de Direito Econômico nos cursos de Graduação e Pós-graduação lato sensu do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP).

Revista Consultor Jurídico, 3 de janeiro de 2020, 9h06.