Postagem 07/out/2016...
Tereza Cruvinel: As feridas no legado de Ulysses Guimarães
Postagem 07/out/2016...
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A memória de Ulysses Guimarães merece as
honrosas lembranças do centenário de seu nascimento, neste 6 de
outubro. Devemos lembra-lo agora e sempre, por sua integridade, por seu
destemor diante da ditadura, por seu papel na transição e pelo empenho
na produção de uma Constituição comprometida com a transformação do
Brasil, que lhe custou o sacrifício da própria saúde, a presidência da
Constituinte o exauriu fisicamente, seu vigor balançou mas logo ele
soergueu-se para novas batalhas. Faltam porém duas perguntas nos
depoimentos, artigos e reflexões sobre o legado de Ulysses. A primeira:
28 anos depois da promulgação, por um Ulysses trêmulo de emoção, mas
com a voz firme trovejante de sempre, o que restou da Constituição
Cidadã? A segunda: se vivo estivesse, o que diria Ulysses das feridas
que vêm sendo abertas na democracia pela qual se bateu com energia e
coragem, enfrentando até mesmo os cães da ditadura? O que diria ele
sobre os ensaios em curso para um novo Estado de exceção, em que
parcelas do Judiciário, do Ministério Público, da Polícia Federal e da
mídia substituem as baionetas e os tanques da ditadura para impor suas
convicções?
Da Constituição de 1988, que
não é obra individual de Ulysses mas é fruto de sua liderança e de seu
compromisso nas praças, durante as lutas pela redemocratização, muito já
foi descartado nestes 28 anos. Sem Ulysses, a Carta teria sido outra, e
o processo Constituinte talvez não tivesse sido o que foi: um pacto
entre de todos os brasileiros, que através de corporações, sindicatos,
associações, movimentos sociais, capital e trabalho, índios, brancos e
negros, minorias e maiorias, acorreram ao Congresso para apresentar
demandas e negociar os termos dos artigos que inscreveriam direitos,
garantias e deveres na Carta estava sendo escrita. Vivi
profissionalmente aqueles quase dois anos singulares e posso assegurar
que nunca o Congresso mereceu tanto, como naquele período, ser chamado
de “a casa do povo”. E tudo acontecia porque o presidente permitia. Mais
que isso, fazia questão que houvesse participação popular no processo, e
que de tudo a população fosse informada através do “Diário da
Constituinte”, que ia ao ar todos os dias e era também impresso. “A
participação foi também pela presença, pois diariamente cerca de 10 mil
postulantes franquearam livremente as 11 entradas do enorme complexo
arquitetônico do Parlamento, à procura dos gabinetes, comissões,
galeria e salões”, lembrou ele no discurso da promulgação.
Mas o que restou da
“Constituição Cidadã”, que no dizer dele era a “constituição peregrina”,
destinada a unir e incluir? A última proposta de emenda constitucional
proposta pelo Governo Temer tem o número 241. É a PEC que limita o
gasto público ao índice da inflação do ano anterior, sacrificando
políticas de educação e saúde, que a Constituição entronizou como
direitos de todos e dever do Estado. Salvo algum erro em minhas
atualizações, a Constituição já sofreu 93 emendas. Muitas foram
necessárias, muitos foram desconstruções do espírito da Constituinte que
surgiu da urnas de 1986. Urnas que, por sinal, deram maioria absoluta
ao PMDB de Ulysses. Outro PMDB o sucedeu, e este contribuiu para muitas
alterações e agora patrocina uma que ofenderia Ulysses: a PEC 241 não
apenas engessa o gasto público, comprometendo direitos constitucionais,
como também legisla para o futuro, invadindo competências de futuros
presidentes, que terão de obedecer aos limites que agora serão impostos.
Logo, a emenda alcança a vontade dos eleitores do futuro. Continuamos
tendo uma Constituição admirável em sua preocupação com o cidadão mas é
exatamente este o ponto que vem sendo mutilado por sucessivas emendas.
Tenho certeza de que Ulysses discordaria de muitas destas alterações dos
anos recentes.
Antes de passar ao segundo
ponto, os danos ao legado da democracia, transcrevo para os mais jovens
a parte que, para mim, é a mais relevante de seu discurso na
promulgação da Constituição, em 5 de outubro de 1988.
“A Nação nos mandou executar um serviço. Nós o fizemos com amor, aplicação e sem medo.
A Constituição certamente não é
perfeita. Ela própria o confessa ao admitir a reforma. Quanto a ela,
discordar, sim. Divergir, sim. Descumprir, jamais. Afrontá-la, nunca.
Traidor da Constituição é traidor da
Pátria. Conhecemos o caminho maldito. Rasgar a Constituição, trancar as
portas do Parlamento, garrotear a liberdade, mandar os patriotas para a
cadeia, o exílio e o cemitério.
Quando, após tantos anos de lutas e
sacrifícios, promulgamos o Estatuto do Homem, da Liberdade e da
Democracia, bradamos por imposição de sua honra.
Temos ódio à ditadura. Ódio e nojo.”
Quem conheceu seu sincero
compromisso com a democracia liberal e o Estado de Direito sabe que ele
não aprovaria muito do que vem sendo feito pelas instituições que a
Constituinte empoderou para que fizessem justiça e não justiçamentos.
Para defenderem o interesse público e vigiarem os governantes, não para
legitimarem conspirações. Ulysses demorou a se convencer de que era
preciso fazer o impeachment de Collor. Não temia retrocesso, a volta do
“caminho maldito”. Temia rasgar a Constituição, associar-se a um
processo que poderia fugir a seus regramentos. Acabou se rendendo
porque os crimes eram evidentes, o povo estava unido pedindo afastamento
do presidente e o rito era legalmente inatacável. Mas a torsão na
interpretação do artigo sobre o impeachment para afastar Dilma Rousseff
por pedaladas fiscais e decretos orçamentários, forçando um crime de
responsabilidade inconvincente, ele não aprovaria.
Deve-se principalmente ao PT e a
um grupo de juristas, à frente Nelson Jobim, além do relator Bernardo
Cabral, aos artigos que garantiram tanto poder e autonomia ao Ministério
Público e que conferiram à Polícia Federal seus poderes de polícia
judiciária. O mesmo vale para as prerrogativas do Judiciário e o grande
poder conferido ao STF como corte constitucional, que pode não apenas
dirimir questões relacionadas com a Carta, mas também interpretar o que
ela não disse mas estaria implícito em sua alma jurídica. Ulysses tudo
avalizou, empenhando-se também para que fossem bem explícita a
condenação a qualquer forma de censura e limitação à liberdade de
expressão.
São estes setores que hoje, em
nome da moralidade, violentam garantias da Carta, como a presunção da
inocência e o amplo direito de defesa. Limites vêm sendo quebrados para
fazer anda um processo de “assepesia moral” que é necessário, mas não
com o sacrifício das balizas constitucionais. A democracia concebida por
Ulyssses não compactuava com as práticas de trucidar, perseguir,
condenar antes de provar a culpa. Não pressupunha o primado das
convicções sobre a lei e as garantias individuais e coletivas.
Linchamentos morais, massacres midiáticos e outras barbáries dos tempos
correntes fazem parte do “caminho maldito” do autoritarismo, que vem
alargando sua presença no Brasil de hoje.
E, muito menos, Ulysses
compactuaria com o desmonte do Estado de Bem Estar Social, que lhe
inspirou o apelido de “Constituição Cidadã” para a Constituição que
promulgou. Mas desde os primeiros anos da década de 1990, foram sendo
dilapidados os fundamentos da sociedade mais justa e igualitária que a
Constituição projetou. Emendas e mais emendas foram ajustando o texto às
conjunturas, quando o contrário é que teria de ser feito. Se a
Constituição é o legado maior de Ulysses, muito já foi feito contra ele.
Cada um lembra o Ulysses que
lhe interessa. Eu o recordo como o último político liberal-social de
uma escola que se acabou, com a degradação da classe política. Ele, que
idealizava o Parlamento, onde fez toda sua carreira, lamentaria a
pobreza do atual Congresso, reduzido a uma casa de homens de negócios
sem pudor. Mas detestaria mais ainda esta campanha, liderada pelas
mídia, de desqualificação da política como ação primordial na
democracia, apesar dos agentes nefastos que nela sempre ingressarão em
busca de interesses menores. Nos anos 1970, a esquerda pregou o voto
nulo em protesto contra a ditadura. Ulysses bateu-se, em todas as
campanhas, pelo que hoje poderíamos chamar de “voto útil” no MDB.
Acreditava no voto e na vontade popular. Para explicitar a existência de
uma alternativa civil aos militares, foi anti-candidato a presidente
contra Geisel. Em 1874, foi recompensado por uma estrondosa vitória de
seu partido. O PMDB elegeu uma grande safra de senadores, impondo grande
derrota à ditadura, além de ampliar sua bancada na Câmara. O povo
entendia que era preciso fortalecer a oposição para derrotar a ditadura,
o que ainda levou dez anos para acontecer. “Fora da política, não há
salvação”, dizia ele,. E aí estamos, com este oceano de votos nulos e
brancos, decorrência da campanha anti-política e anti-políticos, apesar
dos que não merecem o voto de ninguém.
Eu o recordo com seus olhos
sempre úmidos, seu laconismo cheio de significados que nós, jornalistas,
precisávamos decifrar. Recordo, principalmente, seus discursos
insubstituíveis. Ulysses sabia a hora de falar e a hora de calar. Nem
oradores restaram no Parlamento de hoje.
Pessoalmente, tenho duas
grandes lembranças. Uma, quando meu filho Rodrigo nasceu e ele apareceu,
com meu colega, amigo e depois compadre Jorge Bastos Moreno, para uma
visita inesperada. Eram 7 horas da manhã e eu não tinha sequer um pão
de queijo para servi-lhes. Mas o dia na política seria cheio e ele
queria fazer a visita. Isso foi nos primeiros dias de janeiro de 1992.
Disso restou a foto em que segura uma trouxinha azul, Rodrigo no saco de
bebê.
Meses depois, no curso do
impeachment, eu e Moreno estávamos em seu gabinete, falando dos ataques
que Collor lhe fizera. Ele os responderia à noite no programa de Jô
Soaes, com tiradas espirituosas. Fora chamado de velho que vivia às
custas de remédios. “Sou velho mas não sou velhaco. E meu remédio,
compro em farmácias”. Naquela tarde, aniversário da Constituição e
véspera do aniversário dele, Ulysses puxou da gaveta um exemplar da
primeira edição da Constituição, dedicou-a e disse. “Leve para o menino.
Entregue quando ele crescer”.
Eu o fiz recentemente, quando o
menino ingressou na carreira diplomática. Ele a guarda com muito
orgulho e zelo. Ulysses morreu uma semana depois, no dia 12. Dia das
crianças. Ao contrário de Severo Gomes, Henriqueta e Dona Mora, que
viajavam no mesmo avião, nunca foi encontrado. Devemos sempre procurar
Ulysses, seu legado, seu exemplo.
Original disponível em: (http://www.polemicaparaiba.com.br/polemicas/por-ter-abusado-uma-paraiba-roger-abdelmassih-e-condenado-em-r-1-milhao-para-indenizacao/). Acesso em 07/out/2016.