Postagem no Abertura Mundo Jurídico em 19/jan/2020...
Do prazo de prescrição aplicável aos casos de abandono afetivo
quarta-feira, 30 de agosto de 2017
Como demonstrado em texto anterior,
publicado neste canal, muitos acórdãos da recente jurisprudência
brasileira têm afastado a indenização por abandono afetivo, não obstante
o seu reconhecimento quando do acórdão prolatado pela Terceira Turma do
Superior Tribunal de Justiça no Recurso Especial 1.159.242/SP, do ano
de 2012.
Diante desse panorama recente, recomendamos naquele artigo que
os pedidos de indenização por abandono afetivo sejam bem formulados,
inclusive com a instrução ou realização de prova psicossocial do dano
suportado pelo filho. Notamos, também em nossa pesquisa, que muitos dos
arestos estão orientados pela afirmação de que não basta a prova da
simples ausência de convivência para que caiba a indenização por
abandono afetivo.
A nossa impressão, conforme as palavras finais do texto, foi no sentido de que a doutrina contemporânea foi bem festiva
em relação à admissão da reparação imaterial por abandono afetivo pelo
Tribunal da Cidadania. Porém, no âmbito das Cortes Estaduais há certo
ceticismo, com numerosos julgados que afastam a indenização. E muitos
deles o fazem com base no prazo prescricional a ser aplicado à espécie, o
que aqui pretendemos abordar.
De
início, esclareça-se que, por se tratar de demanda reparatória de
danos, o prazo eventualmente aplicado é de prescrição, e não de
decadência. Como é cediço, o Código Civil de 2002 acabou por adotar os
critérios desenvolvidos por Agnelo Amorim Filho, em clássico estudo
sobre os prazos, publicado na Revista dos Tribunais n. 300. Isso foi feito em prol da operabilidade,
em um sentido de facilitação dos institutos privados, um dos baluartes
principiológicos da codificação em vigor. Seguindo tal orientação, os
prazos de prescrição são associados às ações condenatórias, caso das
demandas relativas à responsabilidade civil, seja ela contratual ou
extracontratual. Já os prazos de decadência associam-se às ações
constitutivas positivas ou negativas, como ocorre no reconhecimento de
nulidade relativa de um ato ou negócio jurídico, nos termos dos arts.
178 e 179 do Código Civil, sem prejuízo de outras normas que tratam da
anulabilidade.
Pois
bem, a corrente amplamente majoritária entende que o prazo
prescricional, em casos tais, é de três anos, afirmando-se a subsunção
do prazo especial para a reparação civil, previsto no art. 206, § 3º,
inc. V, do Código Civil. No âmbito estadual, numerosos julgados seguem
essa vertente, do prazo exíguo, diante de uma suposta subsunção perfeita
ao caso concreto. Vejamos cinco deles, dos últimos dois anos e de cada
uma das regiões do país.
De
início, do Tribunal de Justiça do Paraná: "Ação reparatória de danos
morais e materiais em razão do homicídio da mãe dos autores e do
abandono afetivo em tese praticado pelo requerido. Prescrição. Aplicação
do prazo trienal previsto no art. 206, § 3º, V, CCB. Autores
absolutamente incapazes à época dos fatos. Início do prazo prescricional
com o alcance da maioridade" (TJPR, Apelação cível n. 1601201-4,
Ipiranga, Décima Câmara Cível, Relª Desª Ângela Khury Munhoz da Rocha,
julgado em 08/06/2017, DJPR 21/07/2017, pág. 130). Do Tribunal de
São Paulo: "Incidência do prazo de três anos previsto no artigo 206, §
3º, inciso V, do Código Civil de 2002, em consonância com o artigo 2.028
do mesmo diploma legal" (TJSP, Apelação n. 0013103-59.2012.8.26.0453,
Acórdão n. 9425346, Pirajuí, Quinta Câmara de Direito Privado, Rel. Des.
A. C. Mathias Coltro, julgado em 04/05/2016, DJESP 17/05/2016).
Da
região Centro-Oeste, posicionou-se o Tribunal do Distrito Federal no
sentido de que "a pretensão indenizatória da autora/recorrente prescreve
em três anos, na esteira do art. 206, § 3º, inciso V, do Código Civil.
Além disso, fundamenta-se no descumprimento, pelo réu/recorrido, das
obrigações inerentes ao poder familiar, incluindo o amparo moral e
econômico. Os deveres relativos ao poder familiar cessam com a
maioridade plena, ainda que o genitor não os exerça. De fato, a simples
alegação de que o requerido/apelado não cumpriria as obrigações
relativas ao poder familiar não tem o condão de afastar a incidência da
causa suspensiva prevista no art. 197, inciso II, do Código Civil. Sendo
assim, resta claro que qualquer pretensão relacionada ao inadimplemento
dos deveres inerentes ao poder familiar somente pode ser demandada
quando encerrada a causa suspensiva acima mencionada, ou seja, com a
maioridade plena do filho ou com a emancipação deste" (TJDF, Apelação
cível n. 2015.01.1.064396-6, Acórdão n. 101.8971, Quarta Turma Cível,
Rel. Des. Rômulo de Araújo Mendes, julgado em 11/05/2017, DJDFTE 30/05/2017).
Seguindo,
do Estado da Paraíba, no mesmo sentido: "a pretensão de reparação civil
por abandono afetivo nasce quando cessa a menoridade civil do autor,
caso a suposta paternidade seja de seu conhecimento desde a infância,
estando sujeita ao prazo prescricional de três anos" (TJPB, Recurso n.
0028806-67.2013.815.0011, Quarta Câmara Especializada Cível, Rel. Des.
Romero Marcelo da Fonseca Oliveira, DJPB 11/04/2016).
Por derradeiro, chegando-se ao Amazonas, tem-se que "a pretensão de
indenização por abandono afetivo prescreve em três anos, conforme o
prazo estabelecido no art. 206, § 3º, V, do Código Civil, e começa a
contar a partir da maioridade do alimentando. No caso concreto deve ser
reconhecida a prescrição, porquanto a presente ação foi ajuizada quase
sete anos após o autor atingir a maioridade" (TJAM, Apelação n.
0622496-32.2013.8.04.0001, Primeira Câmara Cível, Relª Desª Maria das
Graças Pessoa Figueiredo, DJAM 17/08/2017, p. 12).
Como
se pode perceber, todos os julgados transcritos acabam por concluir que
o prazo prescricional de três anos tem início com a maioridade do
filho, pois, nos termos do art. 197, inc. II, do Código Civil, não corre
a prescrição entre ascendentes e descendentes durante o poder familiar,
o que é cessado quando o filho completa dezoito anos, em regra. Esse
dispositivo, segundo tal interpretação, deve prevalecer sobre outra,
enunciada pelo art. 198, inc. I, da mesma codificação, segundo a qual
não corre a prescrição contra os absolutamente incapazes, os menores de
dezesseis anos. Sendo assim, o prazo prescricional para o abandono
afetivo acaba por vencer quando o filho completa vinte e um anos de
idade (18 anos + 3 da prescrição).
Entre
colegas professores consultados, assim se posicionam Ricardo Calderón,
Rodrigo Toscano de Brito, João Ricardo Brandão Aguirre, Maurício
Bunazar, Marcelo Truzzi Otero, Eduardo Busatta, Fábio Azevedo, Alexandre
Gomide, Maurício Andere Von Bruck Lacerda, Roberto Lima Figueiredo,
Marcelo Junqueira Calixto, Marco Aurélio Bezerra de Melo, Fernando
Carlos de Andrade Sartori e Marcos Ehrhardt Júnior. No âmbito do STJ
existe acórdão da Terceira Turma concluindo exatamente dessa forma:
"Indenização por danos morais decorrentes do abandono afetivo.
Prescrição. Aplicação do prazo prescricional trienal previsto no artigo
206 § 3º, inciso V, do CC/2002. Precedentes deste Tribunal" (STJ, AREsp
842.666/SP, Terceira Turma, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, DJE 29/06/2017).
Porém,
é preciso aqui fazer uma ressalva, pois, se os fatos tiverem ocorrido
na vigência do Código Civil de 1916, há que se aplicar o prazo geral de
vinte anos para as ações pessoais, previsto no art. 177 da codificação
revogada. Nessa linha, importante precedente da Quarta Turma do Superior
Tribunal de Justiça, segundo o qual “os direitos subjetivos estão
sujeitos a violações, e quando verificadas, nasce para o titular do
direito subjetivo a faculdade (poder) de exigir de outrem uma ação ou
omissão (prestação positiva ou negativa), poder este tradicionalmente
nomeado de pretensão. A ação de investigação de paternidade é
imprescritível, tratando-se de direito personalíssimo, e a sentença que
reconhece o vínculo tem caráter declaratório, visando acertar a relação
jurídica da paternidade do filho, sem constituir para o autor nenhum
direito novo, não podendo o seu efeito retro-operante alcançar os
efeitos passados das situações de direito. O autor nasceu no ano de 1957
e, como afirma que desde a infância tinha conhecimento de que o réu era
seu pai, à luz do disposto nos artigos 9º, 168, 177 e 392, III, do
Código Civil de 1916, o prazo prescricional vintenário, previsto no
Código anterior para as ações pessoais, fluiu a partir de quando o autor
atingiu a maioridade e extinguiu-se assim o ‘pátrio poder’. Todavia,
tendo a ação sido ajuizada somente em outubro de 2008, impõe-se
reconhecer operada a prescrição, o que inviabiliza a apreciação da
pretensão quanto a compensação por danos morais” (STJ, REsp
1.298.576/RJ, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, 4ª Turma, julgado em
21/08/2012, DJe 06/09/2012).
Com
o devido respeito às posições expostas, entendo que, em casos de
abandono afetivo, não há que se reconhecer qualquer prazo para a
pretensão, sendo a correspondente demanda imprescritível. Primeiro, pelo
fato de a demanda envolver Direito de Família e estado de pessoas, qual
seja a situação de filho. Segundo, por ter como conteúdo o direito da
personalidade e fundamental à filiação. Terceiro, porque, no abandono
afetivo, os danos são continuados, não sendo possível identificar
concretamente qualquer termo a quo para o início do prazo.
Em
verdade, penso que os casos de abandono afetivo são similares aos casos
de responsabilidade civil por tortura, reconhecendo o Superior Tribunal
de Justiça, em vários arestos, a imprescritibilidade da pretensão em
tais situações. Assim, por exemplo, entre os mais recentes, com citação
de outros acórdãos: “as ações indenizatórias por danos morais
decorrentes de atos de tortura ocorridos durante o Regime Militar de
exceção são imprescritíveis. Inaplicabilidade do prazo prescricional do
art. 1º do Decreto 20.910/1932. Precedentes do STJ: AgRg no Ag
1.339.344/PR, Rel. Ministro Herman Benjamin, 2ª Turma, DJe 28.02.2012; AgRg no REsp 1.251.529/PR, Rel. Min. Benedito Gonçalves, 1ª Turma, DJe 01.07.2011” (STJ, AgRg no REsp 1.4981.67/RJ, Rel. Min. Humberto Martins, 2ª Turma, julgado em 18/08/2015, DJe
25/08/2015). Com tom suplementar de ilustração, entre os primeiros
precedentes: "o dano noticiado, caso seja provado, atinge o mais
consagrado direito da cidadania: o de respeito pelo Estado à vida e de
respeito à dignidade humana. O delito de tortura é hediondo. A
imprescritibilidade deve ser a regra quando se busca indenização por
danos morais consequentes da sua prática" (STJ, REsp 379.414/PR, Rel.
Min. José Delgado, DJ 17/02/2003).
Em reforço, parece-nos equivocado afirmar que o prazo prescricional, pela feição subjetiva da actio nata,
terá início a partir da maioridade do filho postulante. Pela citada
teoria, desenvolvida entre nós por Câmara Leal e José Fernando Simão, o
prazo prescricional tem início não da lesão ao direito subjetivo, mas do
conhecimento da lesão. Diante dessa feição subjetiva da actio nata que não se pode dizer qual o termo a quo para
o início do prazo. Os danos são continuados, não cessam, não saem da
memória do ofendido, mesmo em se tratando de pessoa com idade avançada.
Em outras palavras, o prejuízo é de trato sucessivo, atinge a honra do
filho a cada dia, a cada hora, a cada minuto e a cada segundo. Ninguém
esquece o desprezo de um pai. Entre os colegas consultados, essa é a
opinião de Pablo Malheiros da Cunha Frota, Marcos Jorge Catalan e Cesar
Calo Peghini.
A
respeito do início do prazo, também é preciso fazer uma objeção,
adotando-se a posição majoritária pelo prazo prescricional específico.
Ora, nem sempre o lapso temporal de três anos será contado da maioridade
do filho. Em casos de reconhecimento posterior da paternidade, mais uma
vez por aplicação da teoria da actio nata subjetiva, o prazo
deve ser contado do trânsito em julgado da decisão que a reconhece,
momento em que não há mais dúvida quanto ao vínculo dos envolvidos.
Nesse sentido, conforme se retira de recente julgamento do Tribunal
Paulista, "no caso dos autos, contudo, a autora apenas soube o nome do
pai em 2013, ano em que completou 30 (trinta) anos, quando o réu dela se
aproximou pela rede social Facebook. Propositura de ação de
reconhecimento da paternidade pela autora embasada em exame de DNA
positivo realizado em laboratório particular pelas partes. Início da
contagem do prazo prescricional a partir da data do trânsito em julgado
da ação de paternidade. Precedente deste Egrégio Tribunal de Justiça de
São Paulo" (TJSP, Apelação 1008272-98.2015.8.26.0564, Acórdão n.
9428000, São Bernardo do Campo, Oitava Câmara de Direito Privado, Rel.
Des. Pedro de Alcântara, julgado em 11/05/2016, DJESP
19/05/2016). Como se nota, o julgado admite a possibilidade de
indenização por abandono afetivo após a maioridade, o que conta com o
meu apoio.
Por
derradeiro, sendo adotada a corrente pelo prazo de três anos, não se
pode ignorar, ainda, a aplicação da regra de Direito Intertemporal do
art. 2.028 do CC, in verbis: "serão os da lei anterior os prazos,
quando reduzidos por este Código, e se, na data de sua entrada em
vigor, já houver transcorrido mais da metade do tempo estabelecido na
lei revogada". Desse modo, tendo sido o prazo reduzido de vinte para
três anos, transcorrido menos da metade do prazo, deve-se aplicar o novo
lapso de três anos, a partir de 11 de janeiro de 2003, data da entrada
em vigor do Código Civil de 2002. Sendo assim, várias pretensões
reparatórias prescreveram no mesmo dia: 11 de janeiro de 2006, com
exceção dos casos dos filhos que ainda não tinham atingido a maioridade
nesse período ou cuja maioridade ainda não tenha sido reconhecida. Nesse
sentido, transcreve-se: "se a ação de indenização por dano moral
decorrente de abandono afetivo foi proposta após o decurso do prazo de
três anos de vigência do Código Civil de 2002, é imperioso reconhecer a
prescrição da ação. Inteligência do art. 206, § 3º, inc. V, do CCB/2002.
O novo Código Civil estabeleceu a redução do prazo prescricional para
as ações de reparação civil, tendo incidência a regra de transição posta
no art. 2.028 do CCB/2002" (TJRS, Apelação cível n.
283426-62.2013.8.21.7000, Farroupilha, Sétima Câmara Cível, Rel. Des.
Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves, julgado em 28/08/2013, DJERS 05/09/2013).
Como
se pode perceber, muitas peculiaridades técnicas devem ser percebidas,
mesmo no caso de adoção do prazo de três anos. O tema do abandono
afetivo, assim, apresenta dificuldades jurídicas não só no seu conteúdo,
mas também na verificação da existência ou não da suposta pretensão. Em
suma, limitações existentes a respeito da prova do dano e do prazo
prescricional têm feito que os pedidos de reparação imaterial sejam
afastados na grande maioria dos casos levados ao Poder Judiciário.

Flávio Tartuce é doutor e pós-doutorando em Direito
Civil pela USP. Mestre em Direito Civil Comparado pela PUC/SP. Professor
titular permanente do programa de mestrado e doutorado da Faculdade
Autônoma de Direito de São Paulo. Professor e coordenador dos cursos de
pós-graduação lato sensu da Escola Paulista de Direito. Professor do G7
Jurídico. Diretor do IBDFAM – Nacional e vice-presidente do IBDFAM/SP.
Advogado em São Paulo, parecerista e consultor jurídico.
Original disponível em: (https://www.migalhas.com.br/FamiliaeSucessoes/104,MI264531,71043-Do+prazo+de+prescricao+aplicavel+aos+casos+de+abandono+afetivo). Acesso em 19/jan/2020.
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