Postagem no Abertura Mundo Jurídico em 04/jan/2020...
Abuso de Autoridade e o reencontro com o Estado de Direito

Em
2 de outubro de 2017, o país foi surpreendido com a chocante notícia da
morte do então reitor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC),
Luiz Carlos Cancellier, que se suicidara em um shopping de
Florianópolis. Dezessete dias antes, Cancellier havia sido afastado da
função pública que exercia e preso preventivamente por 30 horas no
âmbito de uma operação da Polícia Federal que investigava supostos
desvios em cursos de Educação à Distância oferecidos pela universidade.
No
dia de sua prisão, a PF veiculou a notícia de que a operação
desbaratara um suposto esquema de desvios de mais de R$ 80 milhões. A
repercussão foi determinante para a decisão de Cancellier de tirar sua
própria vida. Tempos depois, a própria Polícia Federal desmentiu a
informação, já que tal valor se referia ao total dos repasses para o
programa. Não havia qualquer elemento indiciário que envolvesse
Cancellier no inquérito.
Os equívocos só foram admitidos
extemporaneamente. Em um bilhete encontrado no bolso do suicida, um
recado: "minha morte foi decretada no dia do meu afastamento da
universidade"[1].
A
família do reitor apresentou representação junto ao Ministério da
Justiça para que a divulgação errônea dos fatos fosse apurada. O irmão
da vítima narra que, dois meses depois, a Polícia Federal respondeu que a
publicação da notícia falsa seria indiferente já que “ninguém lê”[2]. A sindicância aberta contra a delegada responsável pelo caso foi estranhamente arquivada sem qualquer punição[3].
A
emblemática história de Cancellier deve ser rememorada na data de hoje
(3/1), que marca o início da vigência da nova Lei de Abuso de Autoridade
(Lei 13.869/2019). A legislação representa um avanço civilizatório
ímpar para o Direito Penal brasileiro, não apenas por ter conferido
aprimoramento técnico significativo em relação ao diploma anterior (Lei
4.898/65), mas sobretudo por sacralizar o compromisso de autorreflexão
de uma sociedade democrática sobre os limites do sistema punitivo.
A
concepção de um regime de responsabilização dos representantes do
Estado por excessos funcionais remota à Constituição Republicana de
1891[4].
Textos constitucionais subsequentes conservaram como garantia
individual o direito de petição voltado à denúncia de práticas abusivas
de agentes públicos[5].
A despeito dessa longa tradição, os atos de abusos de autoridade só
vieram a ser criminalizados, curiosamente, durante a Ditadura Militar,
com o advento da Lei 4.898 de 9 de dezembro 1995, cuja vigência também
vem a termo na presente data.
A legislação revogada deriva do
Projeto de Lei 952 de 1956, de autoria do então deputado Bilac Pinto, da
União Democrática Nacional de Minas Gerais (UDN-MG), apresentado
durante o governo de Juscelino Kubitschek. A justificativa da
propositura legislativa não escondia sua intenção de firmar um
contraponto à escalada de violência policial ainda no período
democrático.
Nas palavras de Bilac Pinto, o objetivo da norma seria “o
de complementar a Constituição para que os direitos e garantias nela
assegurados deixem de constituir letra morta em numerosíssimos
municípios brasileiros”[6].
O texto aprovado no Congresso Nacional foi sancionado pelo presidente
Castello Branco com um único veto parcial (modalidade admitida à época)
aposto ao artigo 10 da lei, o qual estabelecia a independência entre as
ações penais e as ações cíveis reparatórias.
Em muitos pontos,
porém, o caráter atécnico da Lei 4.898/65 comprometeu a sua efetividade.
As tentativas de definição dos excessos na ação dos agentes públicos
insculpidas no diploma careciam de uma taxatividade que conferisse
segurança mínima à aplicação da norma penal. A conceituação dos atos de
abuso foi remetida a um rol demasiadamente amplo de condutas
atentatórias à liberdade de locomoção e a outros direitos individuais
descritos nos artigos 3º e 4º. Para além da deficiência legística, as
manchas históricas do autoritarismo do regime militar deixaram claro que
a lei em questão “não pegou”.
Após o restabelecimento da ordem
democrática em 1988, as discussões sobre o regime criminal de abuso de
autoridade só vieram a ser reanimadas no final dos anos 2000. Por
ocasião do 2º Pacto Republicano firmado entre os representantes dos
Poderes da República em 2009, foi posta como meta prioritária da agenda
de proteção de direitos humanos “a revisão da legislação relativa ao
abuso de autoridade, a fim de incorporar os atuais preceitos
constitucionais de proteção e responsabilização administrativa e penal
dos agentes e servidores públicos em eventuais violações aos direitos
fundamentais”[7].
No
âmbito do Comitê Gestor do Pacto Republicano, instituiu-se uma comissão
de notáveis dedicada a aprimorar a antiga legislação de abuso de
autoridade. O grupo era composto por juristas que foram e são
verdadeiros símbolos do comprometimento do Poder Judiciário com os
princípios estruturantes do Estado de Direito. A comissão era liderada
por ninguém menos que Teori Zavascki, à época ministro do Superior
Tribunal de Justiça, figura ímpar da história recente da magistratura
brasileira. Integravam ainda o grupo nomes ilustres como Rui Stocco,
Vladmir de Passos Freitas, Antônio Umberto de Souza Júnior, Everardo
Maciel e Luciano Fuck.
Os resultados dos trabalhos do grupo
corporificaram o Projeto de Lei 6.418, de autoria do então Deputado Raul
Jungmann, apresentado ao Plenário da Câmara dos Deputados em 11 de
novembro de 2009 [8].
A propositura legislativa foi intensamente discutida com integrantes do
Ministério da Justiça, juízes, parlamentares, representantes do
Ministério Público, auditores fiscais e membros das forças policiais.
Trata-se, em essência, de uma fórmula de compromisso institucional que
já chegou madura à deliberação do Parlamento.
A legislação de
abuso de autoridade que entra em vigência na data de hoje é resultado da
aprovação dos Projetos de Lei do Senado 280/2016 e 85/2017. Ambos os
projetos incorporaram o texto original do Projeto de Lei 6.418/2009. Ou
seja, Lei 13.869/2019 é, no seu DNA, um constructo de juristas
como Zavaski, Stocco, Freitas e Maciel. Como cediço, após a aprovação do
texto da lei no Congresso Nacional, houve ainda 36 vetos presidenciais,
dos quais apenas 18 foram mantidos pelo Parlamento, os quais não
desfiguraram o núcleo da proposta pensada no 2º Pacto Republicano.
É
indiscutível que nenhuma legislação nasce perfeita, muito menos as que
amadurecem em um caminho histórico tão labiríntico. É possível, e mesmo
necessário, que alguns dispositivos da lei tenham que ser submetidos a
um teste de batimento à luz do texto constitucional. Todavia, a
qualidade técnica da proposição aprovada é digna de destaque. A latitude
da incidência da norma sujeita qualquer agente público ao seu
escrutínio, do Presidente da República ao guarda de trânsito da esquina.
Para
além, a ampla conquista de uma nova Lei de Abuso de Autoridade
transcende o exame da sua tecnicidade. O ganho democrático da legislação
está em reinserir na pauta institucional um debate que nunca deveria
ter sido relegado a segundo plano.
Longe de ser uma jabuticaba,
diversos países da tradição romano-germânica em democracias consolidadas
conservam leis penais efetivas voltadas à coibição de excessos dos
agentes públicos. Na França, os artigos 332-4 a 332-9 do Código Penal
trazem previsões específicas para o abuso de autoridade, tipificando
como crime “ordenar ou praticar arbitrariamente ato prejudicial à
liberdade pessoal”.
Na Alemanha, a legislação criminaliza a “violação ou torsão do Direito”, a Rechtsbeugung do §339 StGB, e ainda o delito de “persecução de inocente”, a Verfolgung Unschuldiger
do §344 StGB. Na Espanha, o artigo 446 do Código Penal prevê a punição
do "juiz ou magistrado que, intencionalmente, ditar sentença ou
resolução injusta”. Este foi, inclusive, o dispositivo que fundamentou a
condenação do juiz Espanhol Baltasar Garzón, por violação ao direito de
defesa dos réus na ordenação de interceptações telefônicas ilegais.
Se
é inegável que toda norma recebe a incontornável marca da sua
temporalidade, a Lei 13.869/2019 embalsama-se em uma quadra única da
nossa história recente: o momento de reconciliação do sistema punitivo
com os pilares essenciais do constitucionalismo democrático. Seja por
nos advertir dos profundos riscos do autoritarismo, seja por sagrar a
virtude da prudência na realização da justiça, a Lei 13.869/2019 merece
ser cunhada de Lei Cancellier-Zavaski.
1 https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2017/10/1923630-reitor-da-ufsc-encontrado-morto-deixou-um-bilhete-no-bolso-da-calca.shtml
2 https://veja.abril.com.br/brasil/ele-se-sentiu-humilhado-e-impotente-diz-irmao-de-reitor-que-se-suicidou/
3 https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/02/1954885-assessor-produziu-parecer-para-eximir-delegada-da-pf-em-sindicancia.shtml
4
Art.72 - A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros
residentes no paiz a inviolabilidade dos direitos concernentes á
liberdade, á segurança individual e á propriedade, nos termos seguintes:
§ 9º É permittido a quem quer que seja representar, mediante petição,
aos poderes publicos, denunciar abusos das autoridades e promover a
responsabilidade dos culpados.
5
Disposições semelhantes se fazem presentes: no art. 113, inciso 10, da
Constituição de 1934 e no art. 141, § 37, da Constituição de 1946.
6 Discurso de apresentação do Projeto de Lei nº 952 proferido pelo Deputado Bilac Pinto em10 de janeiro de 1956. Disponível em: http://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf/DCD17JAN1956SUP.pdf#page=3.
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Gilmar Ferreira Mendes é
ministro do Supremo Tribunal Federal, Doutor e Mestre em Direito pela
University of Münster (Alemanha). Mestre e Bacharel em Direito (UnB).
Docente permanente nos cursos de Graduação, Pós-graduação lato sensu,
Mestrado e Doutorado em Direito do Instituto Brasiliense de Direito
Público (IDP).
Victor Oliveira Fernandes é assessor
de ministro no Supremo Tribunal Federal. Doutorando pela Faculdade de
Direito da Universidade de São Paulo (USP), Mestre em Direito, Estado e
Constituição pela Universidade de Brasília (UnB). Professor de Direito
Econômico nos cursos de Graduação e Pós-graduação lato sensu do
Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP).
Revista Consultor Jurídico, 3 de janeiro de 2020, 9h06.
Original disponível em: (https://www.conjur.com.br/2020-jan-03/opiniao-lei-cancellier-zavaski-lei-abuso-autoridade). Acesso em 04/jan/2020.
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