Postagem 27/jun/2015...
A utilidade da delação de Pessoa
Ao envolver tucanos e socialistas no recebimento de
recursos da UTC, empreiteiro mostra -- mais uma vez -- a presença de
todos partidos do universo cinzento das campanhas financeiras
O fato mais surpreendente na lista de políticos e
autoridades beneficiadas pelas doações da empreiteira UTC, reveladas
neste fim de semana, consiste na linha de defesa da oposição.
Como nós sabemos, a denúncia inclui vários políticos, de vários
partidos e até mesmo o advogado Tiago Cedraz, filho de Aroldo Cedraz,
presidente do Tribunal de Contas da União, o TCU. Tiago é acusado de
receber R$ 50 000 mensais em troca de informações privilegiadas. Ricardo
Pessoa também disse que ele negociou a compra uma sentença favorável em
Angra 3 por R$ 1 milhão. Segundo a denúncia, o relator Raimundo
Carreiro recebeu o dinheiro, intermediado pelo filho do presidente do
tribunal.
Sim: estamos falando da mesma corte que ameaça questionar as contas
de Dilma Rousseff por causa de operações contábeis conhecidas como
pedaladas. Quanta credibilidade, não é mesmo? Gente séria, rigorosa. E
agora?
O caso é que há beneficiados — em contribuições de campanha. Um
deles é o senador paulista Aloysio Nunes Ferreira, do PSDB. Sua
campanha levou R$ 200 000 em 2010. Já a campanha do deputado mineiro
Julio Delgado, do PSB, um dos mais ativos campeões da moralidade no
Congresso — foi relator da cassação de José Dirceu em 2005 — recebeu R$
150 000 em 2014.
Tanto Aloisio como Delgado esclarecem que foram doações legais,
registradas na Justiça Eleitoral. Não há razão para duvidar. Até que se
prove o contrário, essa explicação deve ser vista como verdadeira e
não deve ser questionada.
O problema é que as campanhas do PT também possuem documentos que
permitem sustentar a legalidade das doações que o partido recebeu. As
cifras, CPFs e todos os dados necessários estão lá.
A dificuldade política da oposição consiste numa questão essencial:
manter o discurso da moralidade, que implica em rejeitar como mentira
toda explicação apresentada pelos adversários e, ao mesmo tempo, tentar
nos convencer que, no caso de seus aliados, a história é outra, ainda
que os argumentos sejam os mesmos e a situação real seja igual.
“Estão querendo misturar o joio e o trigo,” reagiu Delgado. Aloysio
foi defendido por Aécio Neves, de quem foi companheiro de chapa em 2014.
Aécio declarou que a situação de Aloyzio é totalmente diferente daquela
dos petistas investigados na Lava Jato.
A tese da oposição é que nossa turma é gente de bem e a outra
parte não presta. Será possível? Talvez seja melhor acreditar na
professora Maria Silvia de Carvalho Franco, autora de Homens Livres na
Sociedade Escravocrata, colega de turma de Fernando Henrique, aluna de
Florestan Fernandes. No livro, a mestra descreve um país onde ” o
Estado é visto e usado como ‘propriedade’ do grupo social que o
controla.”Para a professora, o “aparelho governamental nada mais é do
que parte do sistema de poder desse grupo, imediatamente submetido à sua
influência, um elemento para o qual se volta e utiliza sempre que as
circunstâncias o indiquem como o meio adequado. Só nesta qualidade se
legitima a ação do Estado.”
Deu para entender a base real de quem procura estabelecer
diferenças de natureza moral em política, certo? Ela explica mistérios
de nossos paladinos da ética — a começar pelo mensalão PSDB-MG, que até
hoje não foi sequer julgado.
Vivemos num país onde o dinheiro de empresas privadas tornou-se o
principal combustível das campanhas eleitorais — de todos os partidos. É
natural, portanto, que os recursos de empresas com interesses no Estado
— como empreiteiras, por exemplo — sejam destinados a políticos e
partidos que possam prestar serviços úteis.
E se você acreditou na lorota de que só o PT tem condições de
retribuir pelos recursos que recebe, porque possui o cofre federal, é
bom saber que a Constran, empresa do grupo UTC, é uma das rainhas de
obras no Estado de São Paulo. Participou de quatro linhas do metrô —
azul, vermelha, verde e lilás — obra lendária por denuncias eternamente
paralisadas.
Em 2013, o governador Geraldo Alckmin inaugurou uma penitenciária em Cerqueira Cezar, interior do Estado. Obra da Constran.
Nada disso torna Aloysio Nunes Ferreira nem Julio Delgado culpados
de qualquer coisa. Da mesma forma que a revelação de que Aloizio
Mercadante, que recebeu doações eleitorais da UTC em 2010, não pode ser
vista como prova de mau comportamento.
Não custa lembrar que, entre 2007 e 2013, petistas e tucanos
receberam a maior parte das contribuições financeiras das empresas
denunciadas na Lava Jato.
Isso porque ambos atuam no mesmo jogo, com as mesmas regras.
Só é complicado querer aplicar uma espécie de seletividade moral entre uns e outros.
Quando a Câmara de Deputados teve a chance de modificar a legislação
de financiamento de campanha, proibindo o pagamento de empresas
privadas, a bancada inteira do PSDB apoiou o projeto de Eduardo Cunha
que constitucionalizava doações de pessoas jurídicas. Numa primeira
votação, a maior resistência foi exibida por dois parlamentares que se
abstiveram. Na segunda votação, eles foram enquadrados e votaram com a
maioria. (O mineiro Julio Delgado votou contra o financiamento de
empresas).
Enquanto isso, ao lado do PSOL e do PC do B, bancada do PT liderou
o esforço para tentar proibir contribuições privadas. Chegou a bater as
portas do Supremo para tentar anular a segunda votação, favorável as
empresas, mas que feria uma cláusula constitucional.
O episódio, ocorrido há exatamente um mês, mostra que, em vez de
julgamentos morais, é mais produtivo perguntar: quem se colocou do lado
certo quando surgiu uma oportunidade única para fechar a principal porta
de entrada da corrupção em nosso sistema político?
Paulo Moreira Leite.
Original disponível em: (http://paulomoreiraleite.com/2015/06/27/delacao-de-pessoa-pode-mudar-o-jogo/). Acesso
em: 27/jun/2015.
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