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domingo, 24 de novembro de 2013

AP 470. Os réus do Mensalão têm alguma razão ao pedir um outro julgamento (J. J. Canotilho. Entrevista a Ricardo Mendonça)

Domingo, 24 de novembro de 2013
ENTREVISTA JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO
MENSALÃO AS PRISÕES
Os réus têm alguma razão ao pedir um outro julgamento
Constitucionalista que virou referência para ministros do supremo diz que condenados têm direito de recorrer a um segundo tribunal
(RICARDO MENDONÇA)DE SÃO PAULO

Sérgio Lima-21.nov.13/Folhapress
O jurista português José Joaquim Gomes Canotilho, no Brasil para lançamento de um livro
O jurista português José Joaquim Gomes Canotilho, no Brasil para lançamento de um livro
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Para o constitucionalista português José Joaquim Gomes Canotilho, os réus do mensalão, julgados exclusivamente pelo STF (Supremo Tribunal Federal), têm "alguma razão" em reclamar pela análise de um segundo tribunal.
Mesmo sem ter acompanhado o caso em detalhes, ele também acha "razoável" a queixa quanto ao papel do ministro Joaquim Barbosa, presente em todas as fases do processo, do recebimento da denúncia ao julgamento.
J. J. Canotilho, como é conhecido, é tido como um dos constitucionalistas estrangeiros mais influentes no Brasil. Na seção de jurisprudência do site do STF, seu nome aparece como referência em 593 documentos. Nas 8.405 páginas do acórdão do mensalão,ele é citado sete vezes.
Canotilho veio ao país lançar "Comentários à Constituição do Brasil", livro de 2.384 páginas (R$ 280), cuja produção envolveu 130 autores em cinco anos. Na coordenação, ele contou com a ajuda do ministro Gilmar Mendes, do juiz Ingo Wolfgang Sarlet e do procurador Lenio Luiz Streck.
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Folha - Acompanhou o caso do mensalão? Que balanço faz?

J. J. Canotilho - Eu estava aqui quando ocorreu a primeira audiência. Fiquei com a ideia de que a política é a arte mais nobre dos homens, desde que colocada a serviço das pessoas e da humanidade. Mas a política também tem mãos sujas, dizia Albert Camus. É uma atividade que tanto pode ser criadora de confiança, quanto de desconfiança. Aqui, o que se cimentava era a desconfiança. Então, o tribunal tinha ali uma obrigação de julgar bem. [O STF] Não é só um tribunal constitucional, é de recursos, o que o torna mais visível. Uma publicidade multiplicada, não só pelo estatuto das pessoas, mas porque há uma certa opinião pública que pretende, em muitos momentos da vida coletiva, uma catarse. São esses os fatos: o Brasil tem necessidade da catarse, da purificação, da honradez, da legitimação do próprio poder político. Mas não acompanhei sistematicamente [o caso].

Uma corte constitucional num um caso penal. Que tal?

Tenho dúvidas, um tribunal com tanto poder. O tribunal brasileiro é dos tribunais com mais poderes no mundo.

O senhor compara com quais?

Primeiro, é mais poderoso que o dos Estados Unidos. Tem um conjunto de fiscalizações que não existe nos EUA. Depois, articula as dimensões de tribunal de revisão com as funções constitucionais. E daí vai criando o direito constitucional e, ao mesmo tempo, julgando casos. Tenho dito: o Brasil tem uma outra Constituição feita pela jurisprudência sobretudo do STF. Os tribunais constitucionais [de outros países] não têm essas funções, de serem tribunais penais. E por isso é que eu digo que [o STF] é o tribunal com mais força.

E em relação aos da Europa?

É muito mais poderoso, muito mais. Não há nenhum tribunal por lá parecido com o STF. Acumula competências e poderes que a maior parte dos tribunais não tem, pois só são constitucionais. Ou, por outro lado, são só supremos tribunais que não têm as funções que tem o tribunal constitucional.

Os réus reclamam que não têm um segundo tribunal para recorrer. É uma violação?

Há um pouco de verdade nisso. Quando a gente diz que tem de ter sempre direito a recurso por uma segunda instância, para estar mais informado, é, em geral, nas questões penais. Ou seja, o duplo grau de jurisdição. Nós consideramos isso como um dado constitucional em questões penais. Isso é verdade.

E qual seria a solução?

Não tem muita solução. Por um lado, exigimos que pessoas com estatuto de deputado não sejam julgadas por juiz de primeira instância. E acabamos por dizer: não têm de ser julgados [só] por juízes de última instância, pois afronta a dignidade. Não há recursos sobre todas as coisas. Agora, na questão penal, é também dado como certo que o duplo grau de jurisdição é quase uma dimensão material do direito ao direito de ir aos tribunais. Há alguma razão [dos réus] aí.

Outra reclamação muito repetida é que o mesmo ministro, Joaquim Barbosa, cuidou de todas as etapas do processo. Do recebimento da denúncia ao julgamento. Foi relator e ainda atuou como presidente da corte ao longo do mesmo julgamento.

Não conheço. De qualquer modo, o que eu tenho defendido sobre a Constituição portuguesa, mesmo contra meus colegas criminalistas, é que, num processo justo em direito penal --essa é uma opinião minoritária-- quem investiga não acusa, quem acusa não julga. São sempre órgãos diferentes. Portanto, se quem investiga é a polícia judiciária ou se é o Ministério Público, este, se investigou, não acusa. O Ministério Público que acusar e o juiz que acusar, não julga. Isso para não transportar as pré-compreensões adquiridas em outros momentos do processo ao momento do julgamento. Eu tenho defendido essa ideia para a Constituição portuguesa. Os meus colegas penais dizem que isso é quase impraticável, porque exigiria um juiz para investigar, depois exigiria o juiz da acusação, e depois um outro juiz para a audiência e julgamento. Mas [defendo] essa coisa simples: quem investiga não acusa, quem acusa não julga. Então é razoável questionarmos.



Nunca um julgamento foi tão divulgado quanto este do mensalão. Além disso, há a TV Justiça, que transmitiu tudo ao vivo. Que avaliação faz dessa novidade?

Eu tenho uma visão conservadora quanto a isso. Os trabalhos do Supremo consagram audiência pública, a não ser quando há questões de reserva, de dignidade e segurança. Mas os tribunais sempre foram locais de publicidade crítica. Me custa mais a aceitar os novos tempos, aquilo ser transmitido para o mundo. Não sou das pessoas mais entusiasmadas com a TV Justiça. Eu não gosto muito.



Por quê? O senhor acha que interfere no comportamento do magistrado?

Pode não interferir. E acho que não podemos pôr assim as questões. Que perturba a espontaneidade do argumento e do contra-argumento, isso parece-me que sim. Por outro lado, as discussões que às vezes temos nos júris, elas ficam menos à vontade, pois estamos ali, não com a câmera escondida, mas com a câmera aberta. Quanto aos resultados em termos de justiça, não tenho argumentos para dizer que processo [transmitido pela TV] não seja justo. Possivelmente é um processo adaptado a um outro esquema, o sistema de publicidade crítica, que não apenas o da publicidade dentro da sala da audiência. Mas não gosto, não.



A Constituição brasileira fez 25 anos. O que a distingue das outras positivamente?

É uma característica que tem sido apontada nas constituições programáticas. As constituições programáticas são aquelas que, pelas suas próprias características, regulam aspectos da vida econômica, da vida social, da vida cultural. A medida que esses domínios da vida se tornam domínios de bastante sensibilidade política, evidentemente que esses ruídos políticos transferem-se também para as normas constitucionais; e a Constituição acaba por sofrer a mesma contestação que sofrem outras leis. Não está, portanto, acima do cotidiano, dos projetos políticos, das políticas públicas. Eu penso que a Constituição respondeu, em termos de contemporaneidade, a alguns desafios: o problema do ambiente, da comunicação social, sobretudo do acesso aos dados. Uma Constituição que foi feita depois de um período autoritário e que se proclamou defensora dos direitos, liberdades e garantias.



E o aspecto negativo?

Teve exageros. Os juros, os salários, ou seja, tão detalhada que acaba ultrapassada. Isso também aconteceu com a Constituição portuguesa. Nesse aspecto, é uma Constituição que pecou pelo excesso. Em outros casos, foi o contexto, estava lá o Centão, os constitucionalismos que existem em qualquer uma. Mas hoje vê-se que não foi uma Constituição que impediu o progresso, apesar das críticas. Muitos entendem que é uma Constituição que tem muitos custos, fui a um congresso sobre isso. O que eu entendo é que uma Constituição que já tem todos esses anos, 25 anos, não aprofundou as divergências, os dissensos no Brasil. Houve muita contestação, mas não podemos dizer que ela dividiu o Brasil. Já teve uma revisão. E ela tem se adaptado, na medida em que surgem os problemas. O grande êxito é que depois de muitas convulsões, acabou por ser um instrumento de pacificação. E já há uma outra Constituição, muito rica em termos de sugestões, o ativismo judiciário, completada pela jurisprudência rica dos tribunais. É uma Constituição que está viva. E está provado que o cidadão gosta do amparo no plano político e social.

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