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segunda-feira, 4 de novembro de 2013

A cervejaria dos nazistas (Moisés Mendes)


Artigo| A cervejaria dos nazistas

29 de setembro de 20131
Uma brasileira
resgata a
a história dos
repórteres que
avisaram:
este é Hitler
moisesMOISÉS MENDES*
moises.mendes@zerohora.com.br
Bebe-se e come-se na cervejaria Hofbräuhaus, em Munique, como num salão paroquial. Bancos e mesas são enormes, e todos sentam-se misturados, moradores e turistas. É como se a Alemanha subvertesse, naquela fuzarca, com brancos, pretos, amarelos, gente de todo jeito, sem separações, a ideia de um país à parte do resto do mundo _ como muitos pensaram que seria possível nos anos 30 e 40 do século 20. Tomei cerveja quente num caneco da Hofbräuhaus há 15 anos. Lembro bem do ambiente barulhento da cervejaria de quatro séculos, da fachada de arcos medievais.

Mas eu queria mesmo ter bebido em outra cervejaria, a Bürgerbräukeller, que não existe mais. Era a cervejaria de Hitler, onde ele discursava, onde se tornou líder do partido trabalhista, voltava todos os anos para comemorar uma tentativa de golpe contra o governo da Baviera e onde escapou de um atentado a bomba em 1939. Hoje há um hotel na área da cervejaria que alegrava os nazistas.

Hitler gostava de discursar em cervejarias, por onde andavam também os repórteres do Münchener Post. Os alemães devem o resgate da memória desses jornalistas a uma brasileira. A jornalista Sílvia Bittencourt, que mora desde 1991 em Heidelberg, escreveu A Cozinha Venenosa _ Um jornal contra Hitler (Editora Três Estrelas, Grupo Folha). Ainda não li o livro, mas já li tantas resenhas e entrevistas e conversei pela internet com Sílvia, que tenho a sensação de que estive muitas vezes na Bürgerbräukeller.

É um livro para comover a todos, mas para mexer mesmo com jornalistas jovens e veteranos em dúvida sobre a relevância do que se faz hoje, nessa feira de informações em que notícias sobre a espionagem de Obama disputam o mesmo espaço com notas sobre o casamento da mulher melancia ou o porco de duas cabeças.

Os repórteres do Münchener foram os primeiros a noticiar, em 1920, que um certo senhor Hitler andava impressionando os frequentadores dos fundos de uma cervejaria envolvidos na criação de um partido. Hitler tinha 30 anos, era cabo do Exército, pintava paisagens terríveis e estava ali, como infiltrado das forças armadas, para saber o que aqueles homens articulavam. O Münchener avisou que o partido e o militar que virou pregador defendiam ideias racistas. Hitler ainda era um militante miúdo.

Em 1923, o jornal publicou uma nota sobre o projeto de Hitler para o que seria, menos de 10 anos depois, o início da eliminação dos inimigos da pureza ariana _ judeus, ciganos, negros, pessoas com deficiência, homossexuais.

Num erro de avaliação, os repórteres comemoraram a prisão de Hitler, ainda em 1923, depois do fracasso da tentativa de golpe. Hitler saiu da cadeia, nove meses depois, e passou a perseguir o jornal. O Münchener _ uma cozinha de venenos, na definição do ditador _ foi destruído pelos nazistas. Alguns jornalistas fugiram e outros foram mortos, quando o cabo finalmente chegou ao poder.

O livro de Sílvia não foi feito só para jornalistas. Mas todo repórter deveria ler histórias edificantes com algum fundamento, para não confundir qualquer outra coisa parecida com jornalismo, com cara de jornalismo, que não é jornalismo.

A mais nobre missão do jornalista ainda é a mesma dos rapazes de Munique: remexer no que se camufla e se esconde e informar o que gente miúda ou graúda, como Hitler, Médici, Pinochet, Bolsonaro e Feliciano, tramavam ou tramam em cervejarias, quartéis, saunas e bordéis.

*Jornalista
(http://wp.clicrbs.com.br/opiniaozh/2013/09/29/artigo-a-cervejaria-dos-nazistas/).

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