O “republicanismo”, o punitivismo rastaquera e as
derrotas ideológicas
Márcio
Medeiros Félix[i]
1.
O STF e os ecos do “mensalão”
A
derrota sofrida pela maioria dos réus da Ação Penal 470 no Supremo Tribunal
Federal traz para o debate uma série de avaliações (nem sempre apropriadas)
sobre as razões para o resultado, quase sempre fantasiosas.
O
que se percebe em parte do discurso do petismo é uma natural e legítima
inconformidade com o resultado. No entanto, em geral elaborando um discurso que
não aponta a verdadeira gravidade dos fatos ocorridos, ficando na periferia do
problema. De outro lado, o discurso que ecoa na imprensa empresarial é de uma
exaltação idealizada ao punitivismo, que transforma Joaquim Barbosa num Herói
da Pátria, enquanto rotula Lewandowsky como leniente com a corrupção, num
execramento gravíssimo de um Ministro da Suprema Corte que, daqui a dois anos,
será chefe de um dos poderes da República.
Do
ponto de vista do PT, a crítica me parece legítima, mas insuficiente. Centra
fogo na condenação sem provas de alguns dos réus e na alteração da orientação
jurisprudencial como um sinal de que se trataria de um “julgamento de exceção”.
Nesse ponto, a maioria de ministros do STF estaria participando de um movimento
para derrotar o PT. E só isso. Ao final, em geral essa crítica cobra o mesmo
rigor para casos futuros e uma certa promessa de que estarão de olho quando
tucanos forem réus.
Do
ponto de vista da oposição, um discurso articulado a partir da imprensa exalta
a punição dos “corruptos” como “um novo momento”, uma verdadeira redenção
nacional. Os ministros do STF são elevados a heróis nacionais, em especial
Joaquim Barbosa. As análises desse ponto de vista, no entanto, além de
permeadas por um ufanismo um tanto boboca, são permeadas por uma raiva
incontida: o objetivo maior não é exatamente o combate à corrupção, mas
desmoralizar o “petismo”, propriamente dito. Em nome disso, nenhuma vírgula de
crítica às opções do STF podem ser apontadas.
Tais
análises, no entanto, empobrecem o debate. O PT, especialmente, precisaria
refletir melhor diante desse processo político e do processo judicial para
amadurecer um projeto de relação com as instituições do país.
Considerando
que tem a Presidência da República há dez anos e, ao que tudo indica, a terá no
mínimo pelos próximos seis – e que mesmo o dia em que deixar a Presidência,
será a alternativa imediata a qualquer governo – falta ao PT, incrivelmente,
reflexão mais clara sobre alguns aspectos da disputa política e a intervenção
mais efetiva no jogo democrático.
A
crítica que o discurso médio petista faz aos ministros do Supremo, por exemplo,
é risível, em especial quando tenta ignorar que, da composição atual da Corte,
apenas três ministros são remanescentes dos governos anteriores: Celso de Melo
(Sarney), Marco Aurélio (Collor) e Gilmar Mendes (FHC).
2 –
As indicações de Lula para o STF
Lula
foi o presidente sob o qual recaiu mais vezes a prerrogativa de indicar
ministros da Suprema Corte em toda a história. Nem sempre acertou. Se por um
lado, acertou quando indicou Ayres Brito (cuja passagem pelo STF não pode ser
julgada apenas pelo “mensalão” que presidiu, o que seria um erro), Carmen Lúcia
ou Lewandowski, ministros de posições corretas, progressistas e de esquerda,
errou feio ao indicar César Peluso (que dentre outras marcas, foi pupilo de
Alfredo Buzaid, Ministro da Justiça de Médici e “racionalidade jurídica” do
arbítrio) e Menezes Direito (ligado à direita católica), dois dos mais
conservadores ministros da história recente da casa.
O
caso de Joaquim Barbosa merece nota à parte. Joaquim tem uma trajetória pessoal
exemplar. Homem estudioso, passou em concursos, estudou em algumas das instituições
de ensino mais importantes do país e do exterior. Antes do Supremo, tinha uma
produção consistente em temas constitucionais, em especial na questão das
políticas afirmativas. Traz, em sua trajetória, uma rejeição em sua tentativa
de virar diplomata apenas na fase da entrevista (quando a subjetividade entra
em jogo e determina tudo), o que se pode concluir ter sido forte a incidência
do racismo a lhe derrotar. Num momento em que Lula indicaria diversos
ministros, Joaquim representava um enorme gesto, por ser negro e por elaborar
justamente na área de políticas afirmativas. As críticas que tenho lido de
algumas pessoas de que seria de direita são totalmente equivocadas e se amparam
numa divisão esquerda-direita que não respeita um critério sério. Na realidade,
Joaquim é de esquerda, acredita sinceramente numa sociedade mais justa, mas
traz consigo posições “justiceiras” na área penal, em especial na questão do
combate à corrupção, além de demonstrar uma visão distorcida de democracia.
Como alguém com trajetória no Ministério Público, Barbosa reproduz aquilo que a
própria instituição da qual é egresso prega: endurecimento do sistema penal,
punição a qualquer preço, relativização do direito de defesa, com especial
requintes de desprezo pelos advogados, dos quais Barbosa não esconde o tom de
deboche. Assim como boa parte dos membros do Ministério Público, Joaquim se
acredita “o verdadeiro representante dos anseios da sociedade”, o que lhe
permite atropelar direitos individuais em nome dessa verdadeira “missão”.
Sempre repito que Barbosa se parece muito com a ex-senadora Heloísa Helena,
embora ocupe um espaço mais privilegiado, use um linguajar mais empolado e
vista uma toga que lhe deu poder para atacar os “corruptos poderosos” com muito
maior efetividade que a verborragia da hoje vereadora de Maceió, cujos minutos
de relevância duraram dois ou três anos.
No
entanto, todos esses apontamentos em relação aos ministros indicados por Lula
trazem um grave problema: Lula e sua equipe erraram tanto por qual razão? Bem
sabemos que a estrutura da Casa Civil tem plenas condições de apresentar ao
Presidente um perfil completo e detalhado de qualquer cidadão, em especial
alguém pleiteando uma nomeação de tal monta. Todas essas pequenas observações
que fiz não eram dados estranhos ao Presidente quando, ainda assim, optou por
tais indicações. Se eram, temos um grave problema operacional. Se não eram,
realmente, temos um grave problema político, em especial nas nomeações dos
perfis claramente conservadores, como Peluso e Menezes Direito. No caso de
Barbosa, poderia se alegar que depois de nomeado, o “Batman” surpreendeu a
todos e enveredou para caminhos não imaginados. Ainda assim, tal “ingenuidade”
não chega a ser aceitável, já que não estamos falando da indicação de um membro
de um conselho universitário, exatamente.
Claramente
faltou um critério a Lula para as indicações ao Supremo. Ao nomear perfis tão
díspares, alguns deles claramente “do outro lado”, do ponto de vista
ideológico, possivelmente tenha optado por utilizar tais indicações para “pagar
contas” com aliados ou simplesmente “fazer gestos”. Nenhuma das hipóteses é
aceitável em se tratando da composição da Suprema Corte, onde algumas das
decisões mais centrais da democracia ocorrerão e onde um ministro será, por décadas,
as vezes, uma das pessoas mais poderosas da disputa política do país.
3 –
As indicações de Dilma
Já
Dilma teve, até aqui, a iniciativa de indicar três nomes ao STF (estando já
aberta a possibilidade de um quarto, com a aposentadoria de Ayres Brito). Ao
contrário de Lula, ela até agora se utilizou, aparentemente, de um critério
comum nas nomeações de Rosa Weber, Luiz Fux e Teori Zavaschi, já que os três
compunham tribunais superiores (a primeira o TST, os outros dois o STJ). Assim,
haveria no critério de Dilma a opção por nomear ministros de perfil
supostamente mais técnico, evitando a controvérsia gerada, por exemplo, pela
nomeação claramente mais “política” de Toffoli, último da era Lula.
Nessa
toada, Dilma aponta para uma tentativa de nomear “profissionais”, figuras menos
identificadas com qualquer posição política prévia. Embora mais coerente, não
deixa de estar equivocada. Primeiro, porque o Supremo não deve ser considerado
o “último degrau da magistratura”, onde chegariam aqueles ministros dos Tribunais
superiores mais capacitados ou mais “articulados”, como Fux tem procurado
demonstrar que foi em sua corrida para chegar ao Supremo. A Suprema Corte deve
expressar a diversidade das trajetórias no mundo do Direito, alternando
magistrados de carreira com egressos dos MP e da advocacia. Qualquer critério
que restrinja a apenas um setor das carreiras jurídicas a composição do STF lhe
tornará uma corte homogênea demais, perdendo seu sentido.
Mas
o maior dos equívocos de Dilma repete o de Lula.
4 –
O erro comum nas indicações ao STF: o burocratismo sob o nome de
“republicanismo”
Um
dos debates mais distorcidos que sempre se repete a cada novo ministro do
Supremo a ser sabatinado pelo Congresso é aquele que tenta criticar a nomeação
quando ela é de alguém muito identificado com o Presidente da República,
pessoal ou ideologicamente.
Evidente
que a Suprema Corte de um país não deve ser apenas o espaço para acomodar seus
operadores jurídicos mais brilhantes, como já fizeram Collor com Francisco
Rezek, FHC com Gilmar Mendes e Lula com Dias Toffoli (embora, nos três casos,
se deva reconhecer a grande capacidade intelectual). Ainda assim, não há
qualquer crime em um Presidente da República indicar alguém que lá defenda
ideias próximas às suas. Ele deve buscar exatamente isso, a ideia é essa! Nos
Estados Unidos, o sistema é exatamente igual ao nosso, sendo que lá os juízes
membros são claramente identificados como liberais ou conservadores: isso faz
parte do jogo democrático estadunidense, sem qualquer hipocrisia. Aqui parece
que estamos sempre permeados por essa acusação de “partidarização”.
Infelizmente, Lula e Dilma parecem, muitas vezes, ficarem reféns desse
discurso, ecoado especialmente pela “grande” imprensa. Parecem preocupados, a
cada nomeação (exceto na de Toffoli, claramente) provar que não estão nomeando
um “companheiro”, mas um jurista “isento”, como se isso pudesse existir.
A
ideia de que um ministro do Supremo ideal seria algo próximo do “burocrata
judicial eficiente” é não apenas de uma ingenuidade grave, mas uma posição
superada por séculos de debate (o juiz que deveria apenas ser “a boca da lei” é
um tipo ideal criado por Montesquieu em 1748). Curioso, aliás, que alguns
tentem justificar essa busca da isenção como sendo “republicanismo”, já que a ideia
do juiz boca-da-lei é algo derrotado exatamente pelo debate político
contemporâneo, pelas mais notórias repúblicas, como a dos EUA.
Lula
teve a rara chance de terminar seus oito anos de governo nomeando a maioria dos
ministros do STF. Como dito, abriu mão de conformar uma maioria claramente
progressista, garantindo, inclusive, a manutenção de tal composição para além
de sua passagem pela Presidência. Manter uma maioria progressista no STF mesmo
por longos anos após uma eventual saída do PT do Governo é algo importantíssimo
para a disputa de longo prazo na sociedade brasileira, uma oportunidade que não
deveria ser desprezada.
Após
a saída do PT (e um dia isso ocorrerá), boa parte de seu legado poderá ser
mantido (ou não) a partir da maioria da Suprema Corte. Algumas votações
importantes para a democracia brasileira ocorreram no STF nos últimos anos
(Raposa do Sol, União Homoafetiva), assim como algumas derrotas, também (como a
manutenção da impunidade prevista na Lei da Anistia). Logo, a “maioria progressista”
ocorre apenas em alguns temas. Falta uma maioria clara no STF, comprometida com
um projeto de esquerda numa perspectiva mais complexa e de longo prazo.
No
entanto, o problema está longe de se resumir às condenações da referida ação
penal 470. Elas se concentram, principalmente, na incapacidade de fazer um
balanço consistente do que aconteceu até aqui e do que virá pela frente.
5 –
Os outros erros do PT na forma de “jogar o jogo”
Um
dos pontos já mencionados por algumas vozes importantes do debate próximo ao PT
como sendo um grande equívoco das análises “oficiais” diante do julgamento do
“mensalão” é a incapacidade de produzir uma autocrítica diante dos episódios,
por mínima e simbólica que seja. Uma das defesas, aliás, é totalmente
equivocada, a de que não teria ocorrido compra de votos de congressistas, mas
“apenas caixa dois”, como se isso também não fosse uma prática a ser merecedora
de punição.
Mas
o problema segue: o petismo está contaminado, de uns anos para cá, por uma
postura de total adesão ao que podemos chamar, grosso modo, por “punitivismo”.
Isso se expressa nos discursos da maioria de seus dirigentes relevantes.
Diferentemente de períodos mais longínquos, onde o PT tinha uma posição
diferenciada nas temáticas de segurança pública e sistema penal, aos poucos as
opções do PT foram sendo hegemonizadas pela mesma lógica da “lei e da ordem”,
de um punitivismo rastaquera, que despreza e por vezes até ataca os direitos
humanos. Tal deslocamento de posição foi ocorrendo em especial a partir dos
anos 2000, quando o PT ganhou a eleição presidencial e quando passou a buscar
vitórias eleitorais majoritárias a qualquer preço, em cada estado ou cidade.
Atualmente,
qualquer candidato a Prefeito do PT defende que a segurança pública também é
tema de responsabilidade do Prefeito. Boa parte defende guardas municipais
armadas. A barbárie sofisticada das câmeras de vigilância espalhadas pela
cidade (quem ainda não leu “1984”, o faça) é tema também superado dentro do PT,
embora seja, a meu ver, uma das grandes derrotas da civilidade do século XXI.
Muitos são os casos em que segurança pública é a prioridade de candidatos
petistas a prefeito. Nada mais equivocado, diga-se.
Nas
iniciativas legislativas, o PT parece também bastante entrosado com essa
postura de endurecimento de penas, criação de novos tipos penais, mudanças no
sistema processual para facilitar punições. Só nos últimos dias, vimos a
iniciativa da “Nova Lei Seca”, que tenta, especificamente para a questão do
álcool, rasgar a Constituição e o Código de Processo Penal.
A
proposta de Osmar Terra (PMDB-RS), que pode voltar a endurecer a política de
drogas, ameaça passar com apoio quase unânime do Congresso. Para cada problema
difícil de resolver, nossos legisladores e Governo atacam com nova lei penal.
Com o silêncio anuente ou mesmo a operação militante da bancada do PT no
Congresso. Viramos punitivistas, possivelmente por medo de debater francamente
com a opinião pública ou talvez porque tenhamos sido tomados pelo
conservadorismo, simplesmente.
Tudo
isso, no entanto, complica em muito a conjuntura atual. O PT não parece saber
muito bem elaborar respostas ao que acontece no debate político do país. Parece
não saber bem como se relaciona com alguns temas importantes da democracia
brasileira. Como os critérios para indicação de um Ministro do Supremo, por
exemplo. Afinal, estamos falando das “novas estrelas” do jogo político do país.
Então, Dilma seguirá errando nos seus critérios?
O
“novo punitivismo” vai no mesmo sentido. Um dos maiores problemas do julgamento
do “mensalão” está justamente na condenação sem provas, na interpretação
extensiva para condenar os réus, no cerceamento do direito de defesa, na
aplicação de penas elevadas e desproporcionais, no encarceramento de réus por
alguns crimes cuja prioridade não deveria ser essa, mas a restituição dos
desvios aos cofres públicos. Nada disso, no entanto, é debatido em profundidade
pelo discurso petista, que parece mais preocupado em denunciar um golpe de
estado próximo ou um “Supremo a serviço da direita”. Nada mais frágil e nada
mais improdutivo em relação ao futuro. Enquanto isso, o punitivismo parece
tomar conta da Suprema Corte, controla as iniciativas do Legislativo e até
mesmo do Ministério da Justiça, com sua “nova lei seca”, com uma Polícia
Federal que adora espetacularizar suas investigações, sem se preocupar com as
consequências na intimidade dos acusados.
O
que se percebe, portanto, é que o conservadorismo ataca por todos os lados,
mesmo pelas frentes controladas pelo “petismo”. Aspectos importantes da disputa
política de um país, que é a disputa cultural da sociedade, aquela que se dá no
longo prazo, sobre o “legado” de um período, parece que não é compreendida por
parte importante dos dirigentes do PT e do Governo Federal. Que daqui a alguns
anos poderão deixar a Presidência da República com uma Suprema Corte controlada
pelo conservadorismo, leis penais mais duras e um cenário asfaltado para um
longo reinado conservador, legitimado por uma sociedade que não terá sido, ao
longo dos anos de governo petista, disputada para um projeto humanista. Que os
erros de análise sejam meus, assim espero.
[i] Márcio
Medeiros Félix, 33, é advogado, graduado em Direito pela Unisinos, @MarcioMFelix
(http://marciomfelix.wordpress.com/about/).
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