Postagem no Abertura Mundo Jurídico em 02/dez/2019...
"Se o Direito é a primeira vítima, a segunda é a democracia. É nessa ordem"

Lenio Streck está cansado. Exausto de tanto escrever e falar defendendo a constitucionalidade da decisão do Supremo Tribunal Federal de que o cumprimento de pena só deve ser obrigatório após o esgotamento dos recursos.
O suor e rouquidão valeram. O jurista sustentou diante dos ministros no dia 17 de outubro como representante da
Abracrim. Lenio foi um dos redatores da ADC 44, da OAB, e auxiliou na
ADC 54, que tratam da presunção de inocência. "Tem de assumir qual a
autoridade impera no direito brasileiro: se é a dos julgadores ou se é a
do Direito" , disse à corte na ocasião.
Lenio Streck está preocupado. Como se esperava, boa parte da sociedade se revoltou contra a decisão do STF. O que ele não previa era o início
de uma crise entre os Poderes da República. O Congresso já indicou que
não aceitou a decisão do STF e irá fazer lei ou emenda á Constituição. A
questão pode voltar ao Supremo, e os ministros terão que reforçar a
validade de cláusula pétrea da Constituição.
"Vai se abrir um precedente sem volta de que no Brasil a divisão de Poderes não funciona. O
Parlamento não se deu conta ainda da gravidade disso, essa parte
absurdamente sensível da democracia brasileira está andando no fio da
navalha", afirma Lenio. Conforme fala, a energia vai voltando, o motor
vai aquecendo. Já são dezenas de artigos só aqui na ConJur sobre o tema.
O
jurista tem atuado como um dos principais pareceristas do país. Voltou a
advogar, após 28 anos de carreira no Ministério Público. Ultimamente,
vê um ataque sem igual às garantias do Direito e uma revolta das massas
poucas vezes vista. Vê risco de o Estado Democrático de Direito chegar
ao fim no Brasil. "Se o Direito é a primeira vítima, a segunda é a
democracia. É nessa ordem."
Lenio Streck está sentimental. Cita Rei Lear, a peça de Skakespeare: "'É triste envelhecer sem ser sábio'. Envelhecer não é bom, mas se você se torna um néscio, você perdeu toda sua vida".
Leia abaixo a entrevista:
ConJur — A
Constituição parece ser clara em determinar que a presunção de
inocência termina com o fim das possibilidades de recursos. Mas, em um
mundo ideal, a decisão de um juiz e a de um colegiado de desembargadores
já não seria o suficiente para a sociedade ter confiança de que houve
julgamento justo? E os tribunais superiores ficariam livres para apenas
estabelecer precedentes.
Lenio Streck — Não
dá para comparar ovos com caixas de ovos. Por exemplo, a Alemanha
decide em duas instâncias, mas na primeira a decisão já é feita com
colegiado. E, quando vai para a segunda, você pode refazer a prova. Isso
não tem nada a ver com o Brasil. Comparar a Alemanha com o Brasil é
absolutamente fora de propósito. Aqui temos uma fragmentação de juízes,
onde cada um decide como quer. Essa falta de critério acaba
transformando o Direito em uma loteria, e esse é o problema.
Então,
por óbvio que nós precisaríamos de um STJ e um STF que firmassem a
jurisprudência e tribunais que respeitassem o que eles estabeleceram. O
Direito não pode depender das visões particulares dos juízes, ou dos
desembargadores, ou dos ministros.
ConJur — Como superar isso?
Lenio Streck — Precisamos
construir uma criteriologia nas decisões para que se dê condições
iguais para que os réus não dependam de idiossincrasias e de dureza ou
de bondade dos juízes. O Brasil é um país fantástico, que consegue já
ter hoje uma epistemologia do Carnaval, na qual se decide o campeão por
0,001. Mas não temos critérios para uma legítima defesa ou princípio da
insignificância. Às vezes o Supremo dá Habeas Corpus por um par de
chinelo, e às vezes condena por dois sabonetes. Está sem uma
epistemologia, uma construção de critérios pelos quais se alcança um
resultado científico, e o Direito ficou para trás nisso. Brincando um
pouco, o carnaval talvez seja muito mais objetivo.
ConJur — E como fica a gloriosa expressão “cada caso é um caso”?
Lenio Streck — Tenho
uma metáfora que responde. Eu estou na Itália e uma uma professora
comenta: "Professor, nós dois vemos um barco, mas cada um vê um barco
diferente". Perfeito. Mas de cara concordamos que é um barco, e não um
avião. Segundo momento: "Quantos metros tem o barco? Nós dois sabemos
quanto é um metro. Qual é a cor do barco? Se não formos daltônicos,
identificaremos. Dez minutos depois nós temos o mesmo barco." Direito
não é igual o barco, cada caso é um caso concreto, é verdade, mas não é
qualquer caso. Os juristas têm que entender que Direito é um fenômeno
complexo e que o Direito não é moral. Ele é feito pela moral, pela
política e economia, ele é posto e depois nós temos que levá-lo a sério.
Aí o papel do juiz é não ser o dono da lei, mas a pessoa que faz o
ajuste. É como uma costura, ele não vai costurar a roupa, a roupa já
está pronta, ele vai ajustar.
ConJur — Como o senhor vê as críticas dos próprios operadores do Direito quanto à recente decisão do STF?
Lenio Streck — Se
fazemos discussões sobre o modo de aplicar processo quando todo mundo
está com a sanha punitivista, o resultado já se sabe de antemão. O
Brasil é um país em que as garantias processuais são criticadas pelos
políticos, embora as usem, e pelos advogados, embora as usem. O Brasil é
um país em que, fazendo a uma alegoria, se a comunidade jurídica fosse a
comunidade médica, haveria passeatas contra vacinas e antibióticos,
porque consta que mais de 60% dos advogados são contra presunção da
inocência. O Direito acaba levando as culpas por proteger, quando ele é
feito exatamente para isso. O ensino jurídico é um dos grandes culpados.
O Direito sofre de uma grande epidemia, em que o paciente zero está lá
nas faculdades.
ConJur — Um dos símbolos máximos da punição é o júri. Como vê essa instituição aqui no Brasil?
Lenio Streck — O
júri tem que ser reformulado. Ninguém pode ser condenado ou absolvido
por íntima convicção. Íntima convicção é: você não precisa justificar, é
sim ou não. E a Constituição exige fundamentações. Na democracia
ninguém pode decidir a vida de alguém, ou a liberdade, ou a propriedade,
ou qualquer coisa sem fundamentação. O Brasil é um dos poucos países
que têm um júri como o nosso, baseado na íntima convicção, em que você
não precisa dizer por que. Os Estados Unidos também, mas lá se exige
unanimidade. Um exemplo de júri interessante para o Brasil seria uma
espécie de mescla da Espanha, França e Portugal, que é o módulo onde os
jurados fundamentam suas decisões e um juiz participa dessas discussões.
ConJur — Esse
problema da íntima convicção que afeta o júri não é também um mal que
assola em grande parte os juízes de primeiro grau? Vemos casos do juiz
Marcelo Bretas, que dá o dobro de tempo de prisão para casos
absolutamente parecidos.
Lenio Streck — O
Brasil, perigosamente, ainda permite a livre apreciação da prova e o
livre convencimento, o que gera tantas discrepâncias. A solução para
isso é uma teoria da decisão. Uma série de critérios que estão acima dos
homens.
ConJur — Este
debate lembra o que se falava após a decisão do então juiz Sergio Moro
no caso do tríplex do Guarujá. Até então, era quase unanimidade que, em
casos de acusação de concessão de vantagem indevida, o juiz deveria
dizer qual vantagem foi dada de forma específica. Moro disse que não,
que era algo geral, que Lula ajudou a OAS em contratos com a Petrobras,
mas nunca disse em qual contrato.
Lenio Streck — O
Moro criou uma "morologia", uma ciência própria, com os criou critérios
dele. Não são critérios públicos. No caso da divulgação das escutas de
Lula e Dilma, qual critério ele utilizou? Poder. Fico impressionado que o
fiscal da lei, que é o Ministério Público, lance nota dizendo que o
Moro estava certo.
No Brasil, o Direito acabou virando uma concepção política, uma concepção do mal, "eu quero que, eu acho que
o sujeito é culpado", aí eu faço um raciocínio em que os fins
justificam os meios. Nesse meio tempo eu troco informações com o
Ministério Público, o Ministério Público me municia, mas eu não aviso a
defesa.
ConJur — Como mudar isso?
Lenio Streck — Na
Alemanha o Artigo 160 do Código Penal diz que o promotor tem que
investigar também a favor da defesa. Nos Estados Unidos, desde 1963, a
Suprema Corte estabelece que a acusação deve pôr na mesa também o que
tem a favor da defesa, senão vira conspiração. Querem soluções, querem
respostas? Eu estou dando aqui respostas e soluções, estou aqui à
disposição.
ConJur — Mas
como fazer isso acontecer na prática? Com uma política que
responsabilize de verdade juízes e promotores por seus atos e os obrigue
a seguir precedentes? Por meio de lei, reforço do CNJ?
Lenio Streck — Primeiro,
o STJ tem que aumentar para 99 ministros. Também precisamos mudar as
leis. Precisa ser obrigatório por lei que o MP investigue também a favor
de defesa. Por lei, o juiz deve ser proibido de decidir por livre
convencimento. As faculdades têm que ensinar Direito e não uma péssima
teoria política do poder, como têm feito. Temos que reforçar a doutrina.
A doutrina tem que fazer esse papel de dizer "ali errou, aqui acertou".
As academias têm que fazer isso. Você tem um problema estrutural,
funcional, mas também tem um problema individual gravíssimo, que passa
pelo ensino jurídico, pelas academias, e pela reformulação do papel da
doutrina.
ConJur — E
sobre o instituto da delação premiada? Antes, ele era visto como a
salvação. Agora, parece estar sendo evitado pelos acusados.
Lenio Streck — A delação está em crise, fortemente, porque primeiro as delações foram feitas sem accountabilty,
sem transparência. Foram feitas secretamente, muitas vezes forçadas.
Elas só entraram em crise porque isso veio à tona a partir das
divulgações do Intercept.
Um
dos pontos centrais da fragilização das delações é o Supremo ter
decidido que ninguém pode ser condenado e nem processado pela palavra do
delator, então o delator ficou desmoralizado.
Dentro da crise estrutural e individual, nós temos um problema funcional urgente. Precisamos tornar claras as regras da delação, ela não pode ser um instrumento de tortura, de pressão.
ConJur — Ano
que vem o decano do STF, ministro Celso de Mello, terá que se
aposentar. O presidente Jair Bolsonaro sinalizou inicialmente que
indicaria Moro. Depois, falou em alguém “terrivelmente evangélico”. Como
vê esse cenário?
Lenio Streck — O
presidente da República tem a legitimidade para indicar quem quiser e o
Senado deve fazer a aferição. Se a sociedade elege um presidente, essa
consequência será natural. São os custos da democracia. Mas entendo que
os ministros devem ter mandatos, talvez de oito anos, renováveis.
ConJur — Bom,
chegamos ao assunto preferido da nação, que não são mais os onze da
seleção, mas sim os onze do Supremo. Qual o perigo dessa reação do
Congresso de não aceitar a decisão sobre a presunção de inocência e
imediatamente começar a tocar projeto de lei e emenda à Constituição
para superar a decisão do STF?
Lenio Streck — O
Parlamento ainda não se deu conta do que está fazendo. O Direito no
mundo todo é dito por um tribunal. No Brasil não. O Parlamento não
gostou de uma decisão do Supremo e irá mudar no tapetão [expressão popular quando uma decisão administrativa muda o resultado de um jogo de futebol].
ConJur — Mas o senhor mesmo já disse que os Poderes são Legislativo, Executivo e Judiciário, nessa ordem.
Lenio Streck — Sim,
isso é verdade, mas não pode transformar isso num moto contínuo.
Imagine que o Parlamento modifica a decisão, aí o Supremo volta a dizer
que é inconstitucional e ficam nesse jogo. O resultado é uma crise
institucional profunda. Nós, que vencemos as ADCs no Supremo, temos que
lutar para mudar a narrativa, senão perderemos no tapetão. A narrativa
que está ganhando é a de que está proibido prender após condenação de
segunda instância, o que é uma mentira. No Brasil, aceita-se a regra do
jogo até o momento em que ela seja contra você.
A
democracia é um produto muito frágil, e, de todos os seus ingredientes,
o mais forte deles é o Direito. Você pode fazer a democracia como
quiser, mas sem o Direito, que condiciona os demais, não vai ter
democracia. A política depende do Direito, mas o Direito não pode
depender da política. No Brasil fizemos essa inversão. É válida a frase
idiota do conselheiro Acácio, de O Primo Basílio: "As consequências vêm sempre depois".
ConJur — A
democracia, na história brasileira, é uma exceção. O senhor acha que
essa nossa experiência democrática atual está chegando ao fim?
Lenio Streck — Nós
somos especialistas em estado de exceção, e, quando temos democracia,
parece que a própria democracia é uma exceção, e nós não aprendemos nada
com a história, e logo queremos de volta o estado de exceção. Corremos
riscos sim, e o primeiro risco é abrir as portas da caixa de Pandora
com essa decisão do STF. Vai se abrir um precedente sem volta de que no
Brasil a divisão de Poderes não funciona. O
Parlamento ainda não se deu conta da gravidade disso, essa parte
absurdamente sensível da democracia brasileira está andando no fio da
navalha.
ConJur — Como contornar a sanha punitivista sem desagradar de tal forma a população que o sistema todo corra risco?
Lenio Streck — O
grande dilema da democracia é uma frase que não é minha, é de um
psicanalista amigo meu, que diz o seguinte: "Como conter o gozo da
sociedade (ou seja, crimes, corrupção, desejos) sem ser tirânico?" Isso
só se responde com mais garantias e mais Direito. Quer democracia? Tire o
teto, deixe o sol entrar. Não há democracia quando se cobre o sol,
porque logo adiante vai dar errado.
Fernando Martines é repórter da revista Consultor Jurídico.
Carlos de Azevedo Senna é repórter da revista Consultor Jurídico.
Luiza Calegari é editora da revista Consultor Jurídico.
Original disponível em: (https://www.conjur.com.br/2019-dez-01/entrevista-lenio-luiz-streck-jurista-advogado). Acesso em 02/dez/2019.
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