Postagem no Abertura Mundo Jurídico em 29/dez/2019...
O juiz das garantias e o dever de fundamentação das decisões de recebimento da denúncia
1 - Introdução
No dia 24 de dezembro de 2019, foi sancionada a
lei nº 13.964 de 2019 — mais conhecida como lei do "pacote anticrime" do
ministro Sérgio Moro. Segundo a própria lei, trata-se de
aperfeiçoamento da legislação penal e processual penal brasileira.

Com
a alteração legislativa, deverão ocorrer diversas mudanças
paradigmáticas na prática forense pátria em matéria penal. Como muito já
foi veiculado, o juiz das garantias, muito possivelmente, será a maior,
mas não a única, das mudanças.
Diversos
questionamentos surgem dos muitos pontos polêmicos que apenas
principiam. De forma meramente ilustrativa, como funcionará o juiz de
garantias em comarcas com um único juiz, ou melhor, como funcionará o
sistema de rodízio de magistrados previsto no parágrafo único do
artigo 3º-D da lei?
Fica,
aqui, o convite para o aprofundamento desse e diversos outros temas
oriundos do pacote anticrime, que merece a devida crítica como já feito
pelo maestro Lenio Streck. A presente coluna, diante das múltiplas
questões que exsurgem da mencionada lei, abordará a alteração referente
ao recebimento da denúncia.
Explica-se.
Parcela da jurisprudência pátria, de forma controversa,posicionava-se
pelo entendimento que o despacho de recebimento da denúncia não possuía
caráter decisório. Outra parcela posicionava-se pelo entendimento que a
decisão de recebimento de denúncia, por ser decisão, possuía nítido
caráter decisório, devendo, portanto, ser fundamentada. A hipótese desta
coluna é de que a nova lei encerra a discussão, trazendo a definição de
que se trata de uma decisão com obrigatoriedade de fundamentação.
2 – O estado da arte:
Tocante ao recebimento da denúncia, Renato
Brasileiro de Lima, de forma ilustrativa, escreve que “o magistrado não
está obrigado a fundamentar a decisão de recebimento da peça acusatória,
até mesmo para se evitar que eventual excesso de fundamentação acarrete
indevida antecipação da análise do mérito”, uma vez que não se trata
“de ato de caráter decisório, daí por que não se exige que seja
fundamentado”.
Apesar
de certo descuido na formulação da frase, afinal, como uma “decisão de
recebimento da peça acusatória” não teria “caráter decisório”? Melhor
seria, como já fez o Supremo Tribunal Federal, chamar de ato de
recebimento da denúncia, uma vez que o ato judicial (e não a decisão)
“não se qualifica nem se equipara, para os fins a que se refere o inciso
IX do artigo 93 da CF, a ato de caráter decisório” (HC nº 93.065/SP,
DJE de 14/05/2009; HC nº 95.354, DJE de 14/06/2010). O Superior Tribunal
de Justiça tem entendimento no mesmo sentido (RHC Nº 76864/RJ, dje
22/09/2017).
Não
se desconhece a existência de diversas decisões que anulam atos de
recebimento da denúncia que se prestem a fundamentar qualquer
recebimento da exordial acusatória, uma vez que classificam o referido
ato como de natureza de decisão interlocutória, e não de mero despacho.
Como exemplo, pode-se citar o RHC nº 90.509/PR (DJE 29/05/2018) e o RHC
nº 59.790/SP (DJE 25/02/2016) — ambos julgados pelo Superior Tribunal de
Justiça.
Da
análise desses e diversos outros julgados, percebe-se que há um ponto
controverso na jurisprudência e na doutrina sobre o que configura
fundamentação exauriente, fundamentação concisa e ausência de
fundamentação, uma vez que há diversos exemplos de julgados que
confundem de forma sistemática os três casos. Desse contexto, entende-se
que a jurisprudência dos tribunais superiores alinha-se no sentido de
que o ato de recebimento da inicial acusatória possui natureza de
decisão interlocutória.
Contudo,
ainda há diversos exemplos de julgados que entendem o ato como de
natureza de mero despacho, prescindindo, assim, de fundamentação. Na
prática forense, é rotineira a ocorrência de atos de recebimento de
denúncia com fundamentação genérica que não leva em conta as
particularidades dos caso concretos. Diante desse contexto, examina-se a
alteração legislativa.
3 – A alteração
O artigo 3º da Lei determina que o Código de
Processo Penal passa a vigorar com algumas alteração, entre elas, os
artigos 3-A e 3-B referentes ao juiz de garantias. No artigo 3º-B, fica
estipulado que o juiz de garantias é responsável pela salvaguarda dos
direitos individuais cuja franquia tenha sido reservada à autorização
prévia do Poder Judiciário, competindo-lhe especificamente: decidir
sobre o recebimento da denúncia ou queixa nos termos do art. 399 doCPP.
Ressalta-se
o verbo utilizado pelo legislador pátrio, qual seja: decidir. O juiz de
garantias decide sobre o recebimento da denúncia, queixa ou aditamento,
porque se trata, agora de forma incontroversa, de decisão de
recebimento, e não de mero despacho. O juiz de garantias, responsável
pela legalidade e pela salvaguarda dos direitos fundamentais, será,
também, responsável pela concretização de um dos princípios mais
basilares de um Estado Democrático de Direito, previsto no artigo 93,
IX, da nossa Constituição pátria, o do dever de fundamentação das
decisões judiciais.
Destarte,
não é por acaso que o mencionado artigo constitucional define que todas
as decisões judiciais serão fundamentadas. O dever de fundamentação é
condição de possibilidade para um Estado que proponha cumprir o ruleoflaw, porque possibilita transparência, evita abusos de poder, impede autoritarismos e garante o controle das decisões judiciais.
A
reforma legislativa traz, ademais, um dispositivo que, apesar de
ilustrar a modernidade tardia da República brasileira, tem notável
importância para o dia-a-dia prático dos juristas — o novel parágrafo 2º
do artigo 315 do Código de Processo Penal. Com ele, fica assentado que
não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela
interlocutória, sentença ou acórdão, que não explicar a relação entre
ato normativo e a causa decidida, que empregar conceitos indeterminados
sem explicar o motivo concreto de sua incidência e que invocar motivos
que se prestem a fundamentar qualquer outra.
Se,
antes da reforma legislativa, uma leitura democrática do ato judicial
em análise já direcionava, conforme o melhor entendimento
jurisprudencial, para o dever de fundamentação ante a natureza
interlocutória do recebimento da denúncia, agora, depois da atualização,
trata-se não apenas de “desvelar a melhor luz” para utilizarmos
Dworkin, mas de “uma interpretação discursivamente necessária”,agora com
Alexy. Não há espaço, ante a própria construção textual do artigo 3º-B e
do parágrafo 2º do artigo 315, para outra interpretação.
Nesse
sentido, os limites hermeneuticamente construídos à atividade
interpretativa impossibilitam que se diga qualquer coisa sobre qualquer
coisa, conforme sempre relembra Streck. O controle democrático das
decisões judiciais, principalmente no específico objeto de estudo dessa
coluna, impõe o dever de fundamentação ante a correlação dada pela
Crítica Hermenêutica do Direito entre limite semântico, a leitura
sistemática da Constituição e do Código de Processo Penal e a coerência
do ordenamento jurídico.
4 – Considerações finais
Por fim, devemos lembrar, com Muller, que o
Estado constitucional foi conquistado no combate contra uma história
marcada pela ausência do Estado de Direito e pela falta de democracia; e
esse combate continua. A democracia e o Estado de Direito legitimam
toda a estrutura estatal pátria contemporânea.
Assim,
é imprescindível compreender em quais campos as pretensões
democrático-constitucionais são cumpridas e em quais não são, sendo um
dever, principalmente das decisões dos juristas, operacionalizar e
concretizar, a partir de processos racionalmente controláveis, as
promessas democrático-constitucionais.
Quando
Muller aborda, no livro “Quem é o Povo”, o déficit, ou, melhor dizendo,
o desnível entre as promessas constitucionais e democráticas promovidas
pela CF/88 com a realidade prática calcada numa inautêntica tradição
autoritária e inquisitorial, o que adquire valor maior diante do
processo penal pátrio, ele escreve que “todo e qualquer sistema político
necessita de legitimidade interna bem como externa. Quanto maior a
frequência com que se interprete a Constituição efetivamente ao pé da
letra Lorenzoni —
contrariando certas tradições do passado — e quanto mais frequentemente
isso ocorra publicamente, tanto mais o próprio sistema político deverá a
longo prazo aceitar que ele mesmo seja tomado cada vez mais ao pé da
letra, com base na própria Constituição” (MULLER, 2003, p. 103).
Nesse
sentido, advém a legitimação do Estado não apenas por meio de textos
(formulados de forma simbólica), mas de lográ-la apenas por meio da ação
do Estado conforme determina o texto constitucional, consoante Muller.
Assim, o grande autor alemão alinha-se com Streck, quando este,
referindo-se à applicatio dos textos e à concretização das
promessas constitucionais, ensina que “a consequência lógica disso é nos
“segurarmos” nos limites semânticos, que é um modo de resguardarmos uma
legalidade que, agora, já não é uma simples legalidade, mas, sim, uma legalidade constitucional” (2014, p. 81).
Dito
de outra forma, trata-se do respeito à autoridade do Direito - algo
que já está recorrente nas colunas do diário de classe, mas que não pode
ter sua importância diminuída. Isto é assim, pois o Direito deve
conformar e limitar a atuação do Estado e dos seus agentes de poder. Não
é aquele que depende desses, mas esses que dependem do Direito, uma vez
que apenas o ruleoflaw pode legitimar sua atuação.
Nesse
ponto, a mudança, ou melhor escrito, a adesão ao entendimento
jurisprudencial de que a decisão de recebimento da denúncia precisa de
fundamentação deve imperar. Ainda, afigura-se impossível aceitar
decisões de recebimento da denúncia, queixa ou aditamento que se prestem
a fundamentar qualquer processo ou que tenham nítido caráter genérico.
Parece afirmar o óbvio, entretanto, nem esse é rotineiramente cumprido
no sistema criminal brasileiro.
Afinal,
conforme Streck diversas vezes já advertiu e como Muller escreveu,
deve-se levar a Constituição a sério. “Afinal de contas, não se estatuem
impunemente textos de normas e textos constitucionais, que foram
concebidos com pré-compreensão insincera. Os textos podem revidar”
(2003, p. 105). O trabalho dos juristas nessa direção concretiza passo a
passo a qualidade de Estado de Direito, mas não só. Esse mesmo trabalho
garante, em igual grau, a permanência de um Estado Democrático.
STRECK, Lenio Luiz. HERMENÊUTICA JURÍDICA E(M) CRISE:
Uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 11ª ed. Porto
Alegre: Livraria do advogado, 2014.
MULLER, Friedrich. Quem é o Povo? A questão fundamental da democracia. 3º ed. São Paulo: Max Limonad, 2003.
Pietro
Cardia Lorenzoni é advogado, professor de Direito Público do Centro
Universitário Ritter dos Reis (Uniritter) e da Faculdade Monteiro Lobato
(Fato), doutorando em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos
Sinos (Unisinos) e membro do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos.
Original disponível em: (https://www.conjur.com.br/2019-dez-28/diario-classe-juiz-garantias-dever-fundamentacao-decisoes-recebimento-denuncia#author). Acesso em 29/dez/2019.
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