Postagem no Abertura Mundo Jurídico em 09/jan/2019...
A inauguração do passado

Boaventura de Sousa Santos
Os começos do ano são propícios a augúrios de tempo novo, tanto no
plano individual como no coletivo. De tempos a tempos, esses augúrios
traduzem-se em atos concretos de transformação social que rompem de modo
dramático com o status quo. Entre muitas outras, destaco três
ações inaugurais que ocorreram em 1 de Janeiro e tiveram um impacto
transcendente no mundo moderno. Em 1 de Janeiro de 1804, os escravos do
Haiti declararam a independência da que era ao tempo uma das mais
lucrativas colônias da França, responsável pela produção de cerca de 40%
do açúcar então consumido no mundo. Da única revolta de escravos bem
sucedida nascia a primeira nação negra independente do mundo, o primeiro
país independente da América Latina. Com a independência do Haiti o
movimento para a abolição da escravatura ganhou um novo e decisivo
ímpeto e o seu impacto no pensamento político europeu foi importante,
nomeadamente na filosofia política de Hegel. Mas, como se tratava de uma
nação negra e de ex-escravos, a importância deste feito tem sido negada
pela história eurocêntrica das grandes revoluções modernas. Os
haitianos pagaram um preço altíssimo pela ousadia: foram asfixiados por
uma dívida injusta, que só viria a ser liquidada em 1947. O Haiti foi o
primeiro país a conhecer as consequências fatais da austeridade imposta
pelo capital financeiro global de que ainda hoje é vítima.
No dia 1 de Janeiro de 1959, o ditador Fulgêncio Batista era deposto
em Havana. Nascia a revolução cubana liderada por Fidel Castro. A
escassos quilômetros do país capitalista mais poderoso do mundo emergia
um governo revolucionário que se propunha levar a cabo um projeto de
país nos antípodas do big brother do norte, um projeto
socialista muito consciente da sua novidade e especificidade históricas,
inicialmente tão distante do capitalismo norte-americano como do
comunismo soviético. Tal como Lenine quarenta anos antes, os
revolucionários cubanos tinham a consciência de que o pleno êxito da
revolução dependia da capacidade de o impulso revolucionário se alastrar
a outros países. No caso de Cuba, os países latino-americanos eram os
mais próximos. Pouco tempo depois da revolução, Fidel Castro enviou o
jovem revolucionário francês, Regis Debray, a vários países do
continente para auscultar o modo como a revolução cubana estava a ser
recebida. O relatório elaborado por Debray é um documento de
extraordinária relevância para os tempos de hoje. Mostra que os partidos
de esquerda latino-americanos continuavam muito divididos a respeito do
que se passara em Cuba e que os partidos comunistas, em especial,
mantinham uma enorme distância e mesmo suspeita em relação ao
“populismo” de Fidel.
Pelo contrário, as forças de direita do continente, bem conscientes
do perigo que a revolução cubana representava, estavam a organizar o
contra-ataque; fortaleciam os aparelhos militares e tentavam promover
políticas sociais compensatórias com o apoio ativo dos EUA. Em Março de
1961, John Kennedy anunciava um plano de cooperação com a América
Latina, a se realizar em dez anos, cuja retórica visava neutralizar a
atração que a revolução cubana estava a gerar entre as classes populares
do continente: “Transformemos de novo o continente americano num amplo
cadinho de ideias e esforços revolucionários, uma homenagem ao poder das
energias criadoras de homens e mulheres livres e um exemplo para todo o
mundo de como a liberdade e o progresso caminham de mãos dadas”.
A expansão da revolução cubana não ocorreu como se previa e
sacrificou, no processo, um dos seus mais brilhantes líderes: Che
Guevara. Mas a solidariedade internacional de Cuba com as causas dos
oprimidos ainda está por contar. Desde o papel que teve na consolidação
da independência de Angola, na independência da Namíbia e no fim do apartheid
na África do Sul até aos milhares de médicos cubanos espalhados pelas
mais remotas regiões do mundo (mais recentemente no Brasil), onde nunca
antes tinham chegado os cuidados médicos. Sessenta anos depois, Cuba
continua a afirmar-se num contexto internacional hostil, orgulha-se de
alguns dos melhores indicadores sociais do mundo (saúde, educação,
esperança de vida, mortalidade infantil), mas falhou até agora na
acomodação do dissenso e na implantação de um sistema democrático de
tipo novo. No plano econômico ousa, mais uma vez, o que parece
impossível: consolidar um modelo de desenvolvimento que combine a
desestatização da economia com o não agravamento da desigualdade social.
Em 1 de Janeiro de 1994 o Exército Zapatista de Libertação Nacional
(EZLN) insurgiu-se no estado de Chiapas, no sudeste do México, por via
de um levantamento militar que ocupou vários municípios da região. A
luta dos povos indígenas mexicanos contra a opressão, o abandono e a
humilhação irrompia nos noticiários nacionais e internacionais,
precisamente no dia em que o governo do México celebrava a assinatura do
tratado de livre comércio com os EUA e o Canadá (NAFTA, seu acrônimo
inglês) com a proclamada ilusão de, com isso, se ter juntado ao clube
dos países desenvolvidos. Durante um breve período de doze dias houve
vários enfrentamentos entre a guerrilha indígena e o exército mexicano,
findos os quais os zapatistas renunciaram à luta armada e iniciaram um
vasto e inovador processo de luta política, tanto a nível nacional como
internacional. Daí em diante, a narrativa política e as práticas do EZLN
passaram a ser uma referência incontornável no imaginário das lutas
sociais na América Latina e dos jovens progressistas em outras partes do
mundo.
O porta-voz do EZLN, o sub-comandante Marcos, ele próprio não
indígena, afirmou-se rapidamente como um activista-intelectual de tipo
novo, com um discurso que combinava as aspirações revolucionárias da
revolução cubana, entretanto descoloridas, com uma linguagem libertária e
de radicalização dos direitos humanos, uma narrativa de esquerda
extra-institucional que substituía a obsessão da tomada do poder pela
transformação do mundo num mundo libertário, justo e plural “onde
caberiam muitos mundos”. Um dos aspectos mais inovadores dos zapatistas
foi o carácter territorial e performativo das suas iniciativas
políticas, a aposta em transformar os municípios zapatistas da Selva de
Lacandona em exemplos práticos do que hoje podia prefigurar as
sociedades emancipadoras do futuro. Vinte e cinco anos depois, o EZLN
enfrenta o desafio de concitar um amplo apoio para a sua política de
distanciamento e suspeição em relação ao novo presidente do México,
António Lopes Obrador, eleito por uma vasta maioria do povo mexicano com
uma proposta que pretende inaugurar uma política de centro-esquerda sem
precedentes no México pós-revolução de 1910.
Estes três acontecimentos pretenderam inaugurar novos futuros a
partir de rupturas drásticas com o passado. De diferentes formas,
apontavam para um futuro emancipador, mais livre de opressão e de
injustiça. Qualquer que seja o modo como os avaliamos com o benefício da
posterioridade do presente, não restam dúvidas de que eles alimentaram
as aspirações libertadoras das populações empobrecidas e vulneráveis,
vítimas da opressão e da discriminação. Haveria lugar para um
acontecimento deste tipo em 1 de Janeiro deste ano? Especulo que não,
dada a onda reacionária que o mundo atravessa. Pelo contrário, houve
vasta oportunidade para momentos inaugurais de sentido contrário,
re-inaugurações de um passado que se julgava superado.
O mais característico acontecimento deste tipo foi o empossamento do
presidente Jair Bolsonaro do Brasil. A sua chegada ao poder significa o
retrocesso civilizacional a um passado anterior à Revolução Francesa de
1789, ao mundo político e ideológico que se opunha ferozmente aos três
princípios estrelares da revolução: igualdade, liberdade e fraternidade.
Da revolução triunfante nasceram três famílias políticas que passaram a
dominar o ideário da modernidade: os conservadores, os liberais e os
socialistas. Divergiam no ritmo e conteúdo das mudanças, mas nenhum
deles punha em causa os princípios fundadores da nova política. A todos
se opunham os reacionários, que não aceitavam tais princípios e queriam
ressuscitar a sociedade pré-revolucionária, hierárquica, elitista e
desigual por mandato de deus ou da natureza. Eram totalmente hostis à
ideia de democracia, que consideravam um regime perigoso e subversivo.
Dada a cartografia política pós-revolucionária que espacializou as três
famílias democráticas em esquerda, centro e direita, os reacionários
foram relegados para as margens mais remotas do mapa político onde só
crescem ervas daninhas: a extrema-direita.
Apesar de deslegitimada, a extrema-direita nunca desapareceu
totalmente porque os imperativos do capitalismo, do colonialismo e do
hetero-patriarcado, quer diretamente quer através de qualquer religião
ao seu serviço, recorreram à extrema-direita sempre que a vigência dos
três princípios se revelou um empecilho perigoso. Esse recurso nem
sempre foi fácil porque a ele se opuseram com êxito as diferentes
famílias políticas democráticas. Quando esta oposição não teve êxito,
foi a própria democracia que foi posta em causa, encostada à parede da
alternativa entre ser totalmente eliminada ou ser desfigurada até ao
ponto de ser irreconhecível. Bolsonaro, um neo-fascista confesso,
admirador da ditadura e defensor da eliminação física dos dissidentes
políticos, representa, por agora, a segunda opção.
(*) Sociólogo, diretor do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra.
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pensamento editorial do Sul21.
Original disponível em: (https://www.sul21.com.br/opiniaopublica/2019/01/a-inauguracao-do-passado-por-boaventura-de-sousa-santos/). Acesso em 09/jan/2019.
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