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sexta-feira, 16 de novembro de 2018

A República do cinismo (Marcia Tiburi. Da Cult)


Postagem no Abertura Mundo Jurídico em 16/nov/2018...

A República do cinismo

A República do cinismo
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(Arte Revista CULT)
O cinismo venceu entre nós.
E quando o cinismo vence em uma sociedade, enquanto durar essa vitória, não há mais esperança para as relações humanas por um simples motivo: o cinismo é o cancelamento de toda a possibilidade de relação com o outro, portanto, a inviabilidade da mais básica relação intersubjetiva que nos levaria a formar algo em comum, como uma sociedade.
Há uma evidente desprezo aos valores civilizatórios e às convenções sociais no contexto do cinismo. Não há espaço para construções coletivas ou consideração pelos sentimentos dos outros.  Não é à toa que as “bolhas” avançam, como caricaturas do que, em uma sociedade, seria o “comum”. As bolhas garantem o individualismo que impera na mentalidade de todos os que jogam com o poder e mantém o cinismo em alta.
Sociedade é uma categoria que nos permite entender um contexto de relações mediadas objetiva e intersubjetivamente, ou seja, um contexto de convivência entre instituições e pessoas sustentadas por leis e valores. No contexto do cinismo é impossível que se coloque em questão algo como “sociedade”, simplesmente porque a intersubjetividade, essa troca de possibilidades, de pensamentos, de ideias e valores, é impossível.
Em termos bem simples, quando vence o cinismo, acabou a sociedade. Em termos discursivos, pois o cinismo é também uma forma linguística, acabou-se o diálogo que era o metabolismo essencial das relações humanas. Por isso, o cinismo é a forma discursiva preferida dos poderosos. Ele cancela o diálogo mesmo quando insiste que sua vítima continue a falar. Muitas vezes, usa a fala do outro para produzir enganações e mentiras em geral. Não é por acaso que as chamadas fake news cheguem tão longe e com tanta profusão. Elas são até mesmo necessárias para a sustentação do sistema cínico e quem acredita nelas é um otário contumaz sempre preparado para recebê-las como um guilhotonado tem que receber a guilhotina. Perder a cabeça é uma boa metáfora para pensar no caso.
O cinismo é a figura de linguagem como forma de dominação. Como performance política é algo imbatível. Diante de um cínico, uma pessoa comum não consegue dizer nada. E mesmo que diga, argumentos racionais não alcançam o cínico, pois o cinismo é um verdadeiro escudo contra perguntas.
Se há motivo para que não se dialogue com alguém, mesmo quando se “conversa” com ele, é por que ele é um cínico. Não vamos perder de vista que entre dialogar e conversar há uma diferença imensa. Não se conversa com um fascista apenas porque ele é paranoico, ou seja, alguém que tem um sistema pronto e totalmente distorcido de pensamento. Mas porque o paranoico é, antes de mais nada, um cínico. Para ele, não importam argumentos lógicos, mas apenas o que ele quer que tenha validade diante da sua vítima. O cinismo é a retórica da paranoia. Aquilo que parece uma mentira, é bem mais do que isso no mundo da pós-verdade. O cinismo é um jogo de poder na forma de uma camisa de força que o cínico coloca no cidadão comum, para usar outra metáfora.
Aliás, os cínicos não gostam de metáforas.
Ele também é contrário à ironia. Ele é a figura de linguagem que não admite a inteligência do opositor. O cínico despreza o pensamento reflexivo, aquele que obriga a duvidar e perguntar. Você sabe que está diante de um cínico quando não há chance de questionamento. O cínico sempre deixa seu interlocutor chocado, paralisado.
É que o cinismo realmente se coloca como uma espécie de amarração. Uma grande enrolação. A vítima do cinismo vive perplexa com a maldade do cínico que o submeteu no seu jogo de linguagem sádico. É impossível para a vítima se mover mentalmente, tomada que está pela perplexidade envenenada que o cínico armou contra ela como uma teia, para usar outra metáfora.
Quando você diz não acreditar nos motivos pelos quais um juiz prende o principal opositor do vencedor e depois se torna ministro de quem venceu; quando você diz não saber como as figuras mais toscas da cena brasileira, do ator pornô à professora maníaco religiosa, se tornaram deputados super votados; quando um jornalista sugere erguer uma estátua de um torturador famoso em praça pública e você não tem o que fazer diante disso; quando um deputado conhecido pela ignorância, que jamais fez nada pelo Brasil além de “mamar na teta do Estado”, se elege presidente e sua família inteira de “mamões” também assume cargos públicos; quando um desses deputados eleitos promete “pacificamente, matar todos vocês” e você só pode assistir boquiaberto; quando as notícias falsas assumem o lugar da verdade apenas porque se odeia os mal falados; quando um governador eleito diz que vai abater pessoas e você se mantém inerte diante dessa promessa de assassinato em massa; então você se tornou vítima do cinismo. À vítima do cinismo costumamos dar o nome de otário.
Faz parte do cinismo dizer: o cinismo sempre existiu. Assim como lavagens cerebrais.
Perguntar pelo que podemos fazer diante do cinismo é só o que parece possível de se fazer nesse momento. É que o cinismo nos coloca em um círculo vicioso. Seria necessário romper esse círculo, mas ele é forte demais, é como uma camisa de força que só pode ser desamarrada por quem está livre dela. O desafio, portanto, é parar para refletir como chegamos até essa sociedade cínica e, sobretudo, quais devem ser os passos para superá-la.


Original disponível em: (https://revistacult.uol.com.br/home/a-republica-do-cinismo/). Acesso em 16/nov/2018.

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