Postagem no Abertura Mundo Jurídico em 12/jul/2018...
Nenhum ser humano é estrangeiro. Bauman e o difícil desafio das migrações
Publicado originalmente no Instituto Humanitas da Unisinos

Quando foi embora, em 2017, aos 91 anos, Zygmunt Bauman nos privou de uma voz corajosa, de um olhar atento a cada sobressalto da história e pronto para acolher a contradição, para depois desmontá-la a partir de dentro. Nos seus escritos, o trabalho de uma vida inteira, dedicado a separar o núcleo das verdades inconfessáveis do falar anônimo, dos enganos da propaganda, do preconceito.
A reportagem é de Maria Serena Natale, publicada em Corriere della Sera, 09-07-2018. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
No livro de 2016 que o jornal Corriere della Sera repropõe hoje com um prefácio de Donatella Di Cesare, Stranieri alle porte [Estrangeiros às portas], Bauman analisava a reação das sociedades europeias à crise migratória que acabara de tocar o ápice, enquadrando com clareza a inquietação do Ocidente e o novo verbo do securitarismo em um horizonte mais amplo, definido pelos dois polos da responsabilidade e da indiferença moral.
Estranheza e exílio: Bauman os conhecia bem. Judeu polonês que fugiu do nazismo, abrigado na União Soviética, que retornou e ainda foi perseguido no seu país, que emigrou para Israel e que, por fim, desembarcou no Reino Unido, pátria do liberalismo e do racionalismo. Militar na guerra com os soviéticos, marxista ortodoxo, depois crítico (influenciado por Antonio Gramsci), um dos maiores sociólogos e filósofos do século XX, investigou as ambivalências de uma modernidade observada através da lente que o tornou conhecido no mundo, a “liquidez”. Categoria fundamental de seu pensamento, na qual, porém, nunca quis esgotar um percurso sempre voltado para a frente, para estudar as transformações das interações humanas, a linguagem da política, os fenômenos de massa.
Nos migrantes, “portadores de más notícias” brechtianos, dos quais o capitalismo também precisa para reduzir os custos de trabalho e aumentar os lucros, Bauman identifica a encarnação perfeita do medo do “grande desconhecido”, em um mundo cuja ordem é subtraída do controle dos cidadãos, humilhados pela sua própria impotência.
Desumanizados, transformados pelo discurso público em uma força obscura que avança ameaçadoramente, os estrangeiros deixam de ser titulares de direitos – como os direitos de hospitalidade e de visita, evocados por Immanuel Kant em “Paz perpétua: um projeto filosófico”: “O direito de um estrangeiro de não ser tratado de maneira hostil quando chega ao solo de outro” e “o direito que cabe a todos os homens de se proporem como membros da sociedade”.
Cria-se, assim, um dispositivo através do qual uma comunidade já fragmentada e dispersa pode, sem graves conflitos de consciência, excluir o hóspede do perímetro da responsabilidade social, removê-lo da condição humana comum, relegá-lo à realidade paralela dos hotspots, dos centros de identificação e das cotas.
Uma estratégia ainda mais viável na “sociedade da performance” como a atual, em que as relações são avaliadas pela capacidade de produzir resultados, e o indivíduo, não mais garantido e dirigido por uma política incapaz de resolver problemas complexos, é chamado a um contínuo esforço de autoafirmação, até mesmo às custas do outro, percebido como rival na luta de todos contra todos por um posicionamento no mercado.
Assim, o debate sobre a imigração gradualmente deslizou do plano da ética para o da segurança, da prevenção da criminalidade e da defesa da ordem pública, no quadro de um estado de alerta e de emergência permanente.
A essa distorção, Bauman contrapõe uma visão aparentemente utópica: somos um único planeta, uma única humanidade. O único caminho para superar uma crise que é de identidade e de sentido está no encontro, no conhecimento, na compreensão entendida no significado gadameriano da fusão de horizontes.
Para a Europa das fronteiras fechadas e das rotas controladas, o intelectual marxista dirige a exortação retomada da homilia do Papa Francisco em Lampedusa, no dia 8 de julho de 2013: perguntemo-nos quem chorou, quem chorou hoje no mundo?
Original disponível em: (https://www.diariodocentrodomundo.com.br/nenhum-ser-humano-e-estrangeiro-bauman-e-o-dificil-desafio-das-migracoes/). Acesso em 12/jul/2018.
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