Postagem no Abertura Mundo Jurídico em 18/jan/2018...
“Como o réu é culpado, não é preciso provar a culpa”
Fábio Tofic Simantob
A Lava Jato se tornou conhecida por inovar no exame da
culpabilidade, aumentando a hipótese de incidência do chamado dolo
eventual, até por buscar introduzir no Brasil conceitos estrangeiros
como o da cegueira deliberada, mas é inédito inclusive na operação Lava
Jato uma sentença que simplesmente se desobriga de provar o dolo
(conhecimento e vontade).
terça-feira, 16 de janeiro de 2018
Fui convidado no ano passado a
integrar respeitado grupo de juristas e advogados que escreveria sobre a
condenação do ex-Presidente Lula no caso conhecido como triplex. Li e
analisei detidamente a sentença,
mas na época acabei recusando o honroso convite, por falta de tempo
para me dedicar ao projeto com o esmero que a missão exigia.
Agora, já com mais calma, e
aproveitando o ritmo mais lento que esta época do ano nos proporciona,
procuro, nestas rápidas linhas, compartilhar as conclusões que, penso
eu, interessam – ou deveriam interessar – a qualquer estudioso ou
curioso do direito penal. A intenção deste artigo não é fazer uma defesa
incondicional, muito menos política do ex-Presidente, mas uma análise
técnica da sentença. Tanto é assim que os fatos que serão levados em
consideração são aqueles que a própria sentença adota como verdadeiros, e
não aqueles que constam na versão de interrogatório do ex-Presidente.
Não estudei os autos, tão somente a sentença.
De acordo com a análise aqui feita,
importa menos se o tríplex pertence ou não ao ex-Presidente, e mais a
relação do imóvel com algum ato de corrupção.
O ex-Presidente Lula foi acusado de
corrupção porque, nas palavras da sentença, a empresa OAS lhe teria pago
propina em virtude de contratos ilícitos com a Petrobras. Afirma a
sentença que “os valores teriam sido corporificados com a
DISPONIBILIZAÇÃO ao ex-Presidente do apartamento 164-A, triplex, do
Condomínio Solaris (...) sem que fosse cobrada a diferença de preço
(...)". O imóvel ainda “... teria sofrido reformas e benfeitorias a cargo do Grupo OAS para atender ao ex-Presidente”.
Tomando emprestado feliz expressão de
HASSEMER, o jurista olha o fato criminoso pelas lentes do tipo penal.
Logo, nenhuma outra análise interessa a este caso que não seja pelo
prisma do artigo 317 do Código Penal Brasileiro.
O tipo penal do artigo 317 comina pena de 2 a 12 anos àquele que “solicitar ou
receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que
fora da função, ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem
indevida, ou aceitar promessa de tal vantagem”.
O crime de corrupção passiva contém
duas elementares principais, a vantagem indevida, e uso da função
pública, o que alguns chamam de ato de ofício. Ato de ofício é o ato
próprio da função pública que, por vantagem econômica indevida, o agente
aceita praticar. Alguns julgados, no entanto, têm diminuído a
importância desta circunstância na hora de condenar, contentando-se com o
fato de a vantagem ter sido obtida em razão da função pública, algo bem mais genérico.
Independentemente do entendimento que
se tenha, numa coisa a jurisprudência é unânime: se a corrupção precisa
estar relacionada com a função pública, por uma questão lógica, só é
crime se o agente aceita promessa de vantagem antes ou enquanto ocupa a
função, jamais depois.
A questão crucial do processo, portanto, era saber, primeiro, se o Presidente solicitou, aceitou ou recebeu promessa de vantagem de qualquer natureza da empresa OAS no período em que era Presidente; segundo, se o fato estaria relacionado ao exercício da função pública; terceiro, se o Presidente teria ofertado em contrapartida vantagem a algum agente privado (o chamado ato de ofício), e quarto, se há prova de que sabia dos ilícitos na Petrobras ou dos acertos de contas de Leo Pinheiro e Vaccari.
Ocorre que se extrai da própria
sentença duas premissas que infirmam a possibilidade de crime. Primeiro é
no trecho do depoimento de LEO PINHEIRO onde afirma que quando adquiriu
a BANCOOP, lhe foi dito que o tríplex era de Lula. Ora, se isto for
verdade, como a sentença adota que é, então não foi a OAS que lhe deu o
imóvel de presente, fazendo assim ruir uma das premissas da acusação.
Restaria então questionar as reformas
feitas no imóvel em 2014. Bom, em 2014, Lula já não era mais presidente
fazia alguns anos. O que não impede, é forçoso reconhecer, que durante o
exercício da função pública alguém pudesse lhe ter feito uma promessa
de vantagem que só seria cumprida anos depois. Havendo prova disto,
responde o agente público por corrupção.
Sucede que a sentença não aponta prova
nesta direção. Muito pelo contrário, de acordo com a sentença, a
decisão de dar a reforma de presente ao ex-Presidente foi tomada apenas
em 2014. Em conversa entre LEO PIHEIRO e VACCARI em 2014, citada na
sentença, aquele lhe indaga quem afinal iria arcar com as despesas da
reforma.
Ora, se a reforma, ou o valor
correspondente a ela fizesse parte de algum acerto de propina da época
em que Lula era Presidente, esta pergunta seria totalmente
despropositada.
Mais emblemática ainda é a resposta que, segundo LEO PINHEIRO, VACCARI teria lhe dado na ocasião.
“... eu levei para o Vaccari e isso
fez parte de um encontro de contas com ele, o Vaccari me disse naquela
ocasião que, como se tratava de despesas de compromissos pessoais, ele
iria consultar o presidente, voltou para mim e disse 'Tudo ok, você pode
fazer o encontro de contas', então não tem dúvida se ele sabia ou não,
claro que sabia” (fls. 128).
O relato de LEO PINHEIRO mostra que
seu acerto original com VACCARI não envolvia custeio de despesas
pessoais de Lula, e que o ajuste final sobre bancar as benfeitorias no
tríplex ocorreu apenas em 2014, e não na época em que ocupava função
pública. Revela, ademais, que o acerto foi feito entre LEO PINHEIRO e
VACCARI, não com o ex-Presidente. Premissas que extraio, repito, da
própria sentença.
Mesmo tomando como verdadeiro o
depoimento de LEO PINHEIRO, quando reporta a ocorrência do citado
diálogo com VACCARI, não há prova alguma – não pelo menos apontada na
sentença – de que VACCARI tenha de fato tratado do assunto com o
ex-Presidente. Isto sem dizer que LEO PINHEIRO prestou depoimento na
qualidade de réu, não como testemunha, logo, sem compromisso de dizer a
verdade.
Seja como for, nada na sentença
demonstra que Lula tivesse aceito promessa de coisa alguma antes de
2014. Não estamos dizendo que não aceitou, apenas que a sentença não o
demonstra, o que em um julgamento penal é exigência indeclinável.
Questionável, reprovável, condenável
moralmente um ex-Presidente aceitar de presente um mimo de uma
empreiteira? Se for verdade, nos parece censurável. Mas não crime, não
pelo menos de acordo com a lei brasileira.
Não se conhece, porém, na história da
jurisprudência brasileira um único caso em que o agente público é
condenado por aceitar pequenos favores anos depois de deixar a função
pública.
O método interpretativo da sentença
não é baseado em prova, o que fica claro quando diz no item 850 que como
o ex-Presidente não forneceu nenhuma explicação hábil para a reforma,
então se conclui que é propina, revelando que, no frigir dos ovos, opera
com presunções que, de mais a mais, acabam por gerar uma das mais
odiosas arbitrariedades que um julgamento penal pode cometer, a inversão
do ônus da prova, relegando à defesa o papel de provar a inocência, e
retirando da acusação o ônus de provar a culpa.
De mais a mais, a indagação do porquê
alguém faria esta cortesia ao ex-Presidente em 2014 não parece enfrentar
obstáculos sérios para achar uma resposta. Ora, parece óbvio que
agradar um dos homens mais poderosos e influentes do país, ainda que não
ocupasse função pública, não era algo que se devesse negligenciar de
acordo com a mentalidade vigente no setor na época em que ocorreram os
fatos.
Por outro lado, o único ato próprio da
função que a sentença atribui ao Presidente é um ato lícito, ter dado a
palavra final na nomeação de diretores para a Petrobras. Ainda assim,
para condená-lo por corrupção a sentença não poderia se desincumbir do
dever de mostrar que, ao nomear este ou aquele diretor, Lula já
arquitetava usá-los para favorecer as empresas, cobrando-lhes propina,
como contrapartida.
Para superar este obstáculo
argumentativo, a sentença recorre a um método retórico que pode passar
despercebido a um leitor desatento, mas não resiste a uma análise mais
acurada. Hipóteses ainda sujeitas a comprovação foram tratadas na
sentença como verdades absolutas, como se já tivessem passado pelo
escrutínio da prova.
Este método foi usado em dois momentos decisivos da sentença. O primeiro foi no item 857, onde afirma que, “como foi provado o crime de corrupção”, é irrelevante discutir se Lula “tinha ou não conhecimento do papel específico dos Diretores da Petrobrás na arrecadação de propinas”.
A sentença, primeiro, parte da premissa de que o réu cometeu o crime de
corrupção para depois concluir que, portanto, sabia dos ilícitos. A
equação está claramente invertida. Com este estratagema a sentença se
desincumbiu, como que em um passe de mágica, de demonstrar o dolo.
É como se o juiz dissesse “como o réu é culpado, não é necessário provar a culpa”. O mesmo método se repetiu no item 890, quando a sentença volta a usar o mesmo sofisma, afirmando que “tendo
sido beneficiado materialmente de parte de propina decorrentes de
acerto de corrupção em contratos com a Petrobrás (...) não tem como
negar conhecimento do esquema criminoso”.
Não existe crime de corrupção, a menos que o agente tenha atuado com dolo (consciência e vontade).
Logo, a sentença jamais poderia ter afirmado que “pelo fato de ter sido beneficiado não tem como negar que sabia”,
porque está dizendo que o elemento subjetivo do tipo se presume, não
precisa ser provado. É como se dissesse que alguém pode ser
responsabilizado criminalmente mesmo sem culpa.
Semelhante forma de proceder não
guarda paralelo nem mesmo com outros julgamentos realizados em Curitiba.
A Lava Jato se tornou conhecida por inovar no exame da culpabilidade,
aumentando a hipótese de incidência do chamado dolo eventual, até por
buscar introduzir no Brasil conceitos estrangeiros como o da cegueira
deliberada, mas é inédito inclusive na Operação Lava Jato uma sentença
que simplesmente se desobriga de provar o dolo (conhecimento e vontade).
Em suma pela atenta leitura da
sentença, se extraem algumas conclusões. Nenhuma prova é citada no
sentido de que Lula tenha aceito promessa de vantagem enquanto era
Presidente da República. E ato ilegal algum lhe é atribuído, a não ser
ato de nomear diretores para a Petrobras sem demonstração de
conhecimento ou ciência dos mal feitos praticados por eles, e muito
menos de algum ato, gesto ou conduta praticado pelo ex-Presidente no
sentido de favorecer ilegalmente alguma empresa.
Eis, pois, nossa pequena contribuição
para este debate em torno deste caso específico (nenhuma análise fizemos
de outros casos envolvendo o ex-Presidente), um caso circundado por
paixões de lado a lado. Como dissemos no início, a preocupação aqui foi
menos entender o fato histórico, fugindo inclusive da controvérsia
colocada na mídia, focada em discutir se o tríplex é ou não é do Lula, e
muito mais analisar os fundamentos jurídicos usados na sentença para
condenar, único interesse que, a juristas e advogados, o caso deve ou
deveria suscitar.
Não custa lembrar que o julgamento
penal exige provas e exige certeza, ou algo próximo disto. A dúvida
gerada pela falta de provas permite no máximo um julgamento moral, e o
julgamento moral não cabe entre as paredes apertadas do tribunal;
pertence às ruas, à política, enfim, às urnas.
Um grande desafio colocado sobre os
ombros dos desembargadores do Tribunal Regional Federal da 4ª região,
juízes experientes, técnicos e cultos, a quem desejo sorte e altivez de
espírito para enfrentarem com destemor a horda das ruas.
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Original
disponível em: (http://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI272512,11049-Como+o+reu+e+culpado+nao+e+preciso+provar+a+culpa). Acesso
em 18/jan/2018.
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