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Os assassinos estavam no Comitê Central
30/maio/2016, 7h07minPor Tarso Genro
Enquanto o articulista da Folha, Contardo Calligaris, diz que “a
política brasileira está muito difícil para a ficção” (UOL 25.05), o
líder do “Movimento Brasil Livre” declara (Clic-RBS 25.05) que a máquina
dos partidos “foi utilizada” para financiar os “movimentos
pró-impeachment”, informação tratada pela Folha como uma grande
novidade. Vou argumentar em sentido contrário. Ficção e realidade se
entrecruzam de forma permanente, na nossa esfera política e esta -por
sua vez- é facilmente acessada pela ficção. Assim como a ficção se
expressa, por maneirismos jornalísticos muito específicos, quase todos
os dias na mídia tradicional, a ficção propriamente literária, com o
tempo, acessa e inspira-se em situações iguais ou análogas às que
vivemos hoje e ilumina o passado através da grade literatura. Lembro-me
de “Doctor Faustus” de Thomas Mann, “Os Thibault” de Roger Martin-dGard”
ou “As Vinhas da Ira”, de Steinbeck. Quando Faulkner, por exemplo,
publicou “Enquanto agonizo”, em 1930, ele já tinha acúmulo suficiente,
para dar voz aos pobres do Sul dos Estados Unidos e dizer , na voz de
Cash: “…é melhor construir um galinheiro bem-feito do que construir um
tribunal malfeito, e se forem bem ou mal construídos não importa, porque
não é um ou outro, que vai fazer um homem se sentir bem ou mal”. Um dia
os nossos grandes escritores levarão para o plano da arte os nossos
atuais galinheiros e Tribunais, com as suas grandezas e misérias.
A imagem da política nacional passada pela grande imprensa, no que
refere ao processo de impedimento da Presidenta Dilma - com as exceções
de praxe- foi um péssimo jornalismo. Ele ainda vai inspirar uma grande
ficção literária, quem sabe para um Raduan Nassar, um Luis Antonio Assis
Brasil ou um Antonio Callado redivivo . Esta inspiração poderá partir
do comportamento desta imprensa que, insistindo na “espontaneidade”,
“despartidarização” e “autenticidade” - tanto das jornadas de 2013, como
dos atuais movimentos pró-impeachment- promoveu um vasto painel de
ficções. Seus relatos dos movimentos de rua, como se eles fossem
sinceramente dirigidos por líderes avessos à corrupção, foi um feito
ficcional extraordinário.
Neste processo, a maior parte da grande mídia “fazia de conta” que
não sabia, que o que estava sendo armado era a vitória do capitalismo
rentista, com a radicalização do “ajuste”. Ela estava consciente,
contudo, que quem poderia fazer isso, sob pressão, seria uma
Confederação de Investigados e Denunciados: a redução dos gastos
públicos com a educação e com o Sistema Único de Saúde, bem como o
gradativo sumiço dos demais “gastos supérfluos” -relacionados com as
políticas de coesão social em andamento- era o objetivo maldito. E ele
só poderia ser cumprido por desesperados ou ameaçados. É o que estava e
está em jogo, na cena política brasileira, o que indica que não está
difícil para a ficção literária, pois esta vem sempre mais tarde e o
presente retratado pela mídia, já é a ficção ao vivo e também matéria
bruta da ficção como literatura, que certamente os grandes escritores
construirão mais tarde.
Em 1981, Manuel Vàsquez Montalban publicou uma grande novela
-“Asesinato en el Comite Central”- apenas seis anos depois da morte do
general Francisco Franco. Ali, Montalban abriu um debate, em parte sobre
a transição espanhola, mas sobretudo a respeito da falência da esquerda
comunista em dirigir aquele processo, pela sua escassa compreensão do
problema da integração europeia. Na sua ficção literária, o comunista
Montalban relata o assassinato – numa reunião do Comitê Central – do
Secretário Geral do Partido, Santiago Carrillo, que se fizera defensor
do “eurocomunismo”, teoria que apontava a falência da União Soviética,
como experiência socialista universal. A crítica de Carrillo
centrava-se, tanto na questão democrática, como na questão da
organização da produção. Mas pairou, no livro de Montalban, uma dívida
atroz: o assassinato de Carrillo (que no livro tem o nome de Fernando
Garrido), teria sido encomendado pela CIA, interessada em fazer
fracassar uma transição democrática mais “pela esquerda”, ou pela KGB,
interessada em não permitir prosperar um “dissenso comunista” renovador?
Quais as forças externas que interferiram na transição espanhola, não
se sabe com segurança até hoje. Como não se sabe, nos anos de chumbo da
Itália, quem orientou a mão dos fascistas que fizeram explodir, com
dezenas de mortos, a Estação Férrea de Bolonha.
Um livro do falecido professor Reneé Dreifuss publicado em 1981,
fruto de uma extensa pesquisa documental e bibliográfica (“1964 a
Conquista do Estado”), mostrou que naquele ano não ocorreu no Brasil uma
simples quartelada , mas uma profunda mudança no padrão de acumulação,
obedecendo a uma lógica de dominação imperial, por parte dos EEUU. A
obra do grande professor Dreifuss mostrou, ainda, que o golpe militar
teve uma expressiva participação de setores da sociedade civil
anticomunista, com seus interesses empresariais associados a este novo
padrão de desenvolvimento, integrado e submisso à geopolítica americana.
Diferentemente do que ocorreu naquela época, cujo revestimento central
da política golpista era se opor comunismo soviético, as mobilizações
contra o Governo eleito da Presidenta Dilma, trouxeram às ruas um
contingentes de pessoas, cujas motivações tem diversas origens. Seja
porque ela manejou mal a economia, porque o Governo não correspondeu as
suas expectativas eleitorais, ou por puro ódio colonial-escravista,
contra as políticas sociais dos Governos do PT.
Ficou claro, porém, nesta última semana, que a central do golpismo
institucional passou longe dos militares e foi formado pelo oligopólio
da mídia, articulado com setores do Ministério Público, dos Juízes e das
lideranças políticas do rentismo “liberal”, que unificaram esta
diversidade. E o fizeram -pautados pela mídia- a partir da raiva contra
tudo que foge aos seus padrões de civilidade elitista, ao mesmo tempo
permissiva e fascista, “liberal” e reacionária, amoral e fisiológica: de
Alexandre Frota a Bolsonaro, de Fernando Henrique a Aécio, de Pauderney
a Jucá. Mas não pensemos que as instituições do Estado Democrático de
Direito estão falidas e que a nossa democracia não tem saída, pois isso é
o que nos querem fazer crer a grande mídia e o nosso percentual de
fascistas de turno. A questão é mais complexa, não é somente nacional,
nem é fruto de uma crise contingente do capitalismo global, mas de um
novo ciclo em que ele pretende se renovar. A crise é o pulmão
capitalismo, dizia um barbudo subversivo, e através dela ele respira e
se renova.
O que se diz aqui, não é que o PT seja uma comunidade de anjos ou que
indivíduos dos nossos Governos não tenham cometido ilegalidades ou
crimes, tanto nos Governos de Lula, como de Dilma, como de resto sempre
ocorreu em todos os Governos que nos precederam, inclusive em maior
grau. Nem se defende que a “lava-jato” tenha sido instituída para
“aniquilar o PT”, como querem fazer crer alguns formuladores do nosso
campo político-partidário, ou que somos vítimas, exclusivamente, dos
nossos “acertos”. O que sustento é que a estratégia política de longo
curso, da direita liberal-rentista, teve sucesso: hegemonizou uma
maioria na sociedade e pôs boa parte dos aparatos institucionais do
Estado a seu serviço. Montou uma Frente Política sem qualquer programa
visível e uniu os corruptos e fisiológicos de todas as origens, bem como
convenceu a maior parte da cidadania – através de um trabalho
meticuloso feito pela grande mídia- que estavam “atacando a corrupção”.
Formaram, assim, aquela grande Federação de Investigados e
Denunciados, boa parte deles originários dos nossos Governos, para se
apropriar do Estado Brasileiro sem votos, o que por si só não revela uma
debilidade estrutural do nosso estatuto democrático, pois o que vem daí
é o “ajuste” mais severo das últimas décadas, não o fim da democracia
política, tal qual a conhecemos. O “ajuste”, todavia, é capaz de
reorganizar estrutura de classes da sociedade, através de uma acomodação
conservadora, pois -vide a Espanha, França e Portugal- os ajustes
também formam, na sociedade civil, as suas próprias bases estáveis, se a
esquerda não tiver condições de ampliar a sua liderança para formar
maiorias eleitorais. As lutas “sociais” podem mitigar as reformas mais
duras, mas um outro ajuste de corte democrático, onde “quem tem mais
paga mais”, só pode ser viabilizado a partir dos movimentos sociais, por
maiorias políticas que tenham reflexos nos resultados eleitorais. Creio
que este deve ser o ponto de partida de uma estratégia de esquerda,
para o período que nos aguarda.
As caracterizações políticas do “centro”, da “esquerda” e da
“direita”, não tem as mesmas propriedades em distintos períodos
históricos. Para dar dois exemplos bem flagrantes, lembremo-nos que o PT
chega ao Governo como partido de “esquerda”, pela via democrática e vai
rapidamente ao “centro”, para poder governar, encontrando ali situado o
PMDB. Este se torna nosso aliado, por um longo período de Governo, para
que pudéssemos avançar em políticas sociais e educacionais que mudaram
as condições sociais e econômicas de mais de 50 milhões de brasileiros.
Hoje, porém, o PMDB é o eixo em torno do qual a direita “liberal” e a
extrema direita, se reorganizam para fazer o “ajuste” exigido pelos
credores da nossa dívida pública, cujos sacrifícios vão recair sobre os
mais pobres e os remediados.
Neste sentido, o PMDB não só não mudou, como é falso dizer que ele
traiu, pois a estratégia de enfrentamento da crise mundial, com um
ajuste que onere internamente os mais ricos, nunca foi um compromisso
deste Partido e nem o PT conseguiu formulá-la claramente. Creio que isso
é suficiente para mostrar que o PT só pode se regenerar, como partido
democrático de esquerda no interior de uma outra Frente Política, que
não vise somente chegar ao Governo, mas, que possa chegar novamente nele
com maioria social e parlamentar, para aplicar um novo programa de
avanços no emprego, na democracia, no crescimento da economia. A falsa
luta contra a corrupção, não o rentismo, foi o que conseguiu dar unidade
à frente política do golpismo, por isso agora o “ajuste” passa ser
motivo de dissenso, tanto no interior do próprio aparato estatal, como
na própria base do Governo Temer, além de sê-lo na sociedade.
Uma estratégia democrática de mudanças sociais e econômicas requer
uma tática política democrática coerente com os fins da estratégia
desenhada. Opino que, hoje, o que é capaz de definir as propriedades dos
campos políticos, tidos como de “esquerda” e “direita”, é a posição dos
sujeitos políticos organizados, sobre quatro questões chaves: o
enfrentamento com o “ajuste” liberal-rentista, que será inócuo se não
apresentarmos qual o nosso “ajuste” e quais a suas consequências
imediatas na vida do nosso povo; a proposta de uma reforma política, que
será inócua se não deixar clara a proibição do financiamento dos
partidos pelas empresas (fonte principal da corrupção) e não barrar os
micro partidos de “negócios”; uma reforma para democratizar os meios de
comunicação e permitir a livre circulação da opinião, que será inócua se
não tiver a possibilidade de resgatar a comunicação para as suas
finalidades, já proclamadas na Constituição de 88; e, finalmente
-independentemente de continuarmos na luta para bloquear o
“impeachment”- um amplo acordo para a relegitimação do Poder Político no
país, seja por um referendo para novas eleições, seja por uma PEC que
convoque eleições gerais, no menor prazo possível. Este “amplo acordo”
será inócuo, se não resgatar, para o nosso lado, inclusive lideranças
que transitaram em apoio ao “impeachment”, mas que se revelam hoje
contra o “ajuste” liberal-rentista e já se sentem enganados pela
cantilena da falsa luta contra a corrupção, promovida pela Rede Globo.
Na novela de Montalban, o tiro que assassinaria Carrillo veio de
dentro do próprio Comitê Central, revelando a existência de um enigma
sobre a transição espanhola, bem como a incompetência do seu Partido
Comunista, para entender o que estava acontecendo na Europa. No golpismo
brasileiro, o tiro que quer assassinar o mandato da Presidenta Dilma,
também vem de dentro do “Comitê Central”: vem do âmago do Governo, do
seu núcleo mais comprometido com todos os seus erros, do seu cerne
político mais forte no Parlamento. Esta é a notável realidade, que a
mídia nacional transformou numa cruzada fictícia contra a corrupção, que
sai da crise, até agora, mais forte. E mais unida, pois quando os
partidos mais influentes do país – sem separação de responsabilidades –
são atingidos sem que se fixem politicamente as responsabilidades
individuais, a tendência é o povo dizer que “se vayan todos”. E ficam,
no fim do túnel, os vampiros do ajuste, com seus dentes afiados,
celebrando o homem abstrato do mercado e levando ao desespero as pessoas
concretas que trabalham.
.oOo.
Tarso Genro foi Governador do Estado do Rio Grande do Sul,
prefeito de Porto Alegre, Ministro da Justiça, Ministro da Educação e
Ministro das Relações Institucionais do Brasil.
Original disponível em: (http://www.sul21.com.br/jornal/os-assassinos-estavam-no-comite-central/). Acesso em 18/jan/2017.
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