Postagem 10/fev/2016...
O que Sanders tem a dizer ao PT e à classe
média brasileira?
Um
desequilíbrio estrutural empareda agora a vida dos filhos das camadas médias no
mesmo torniquete de impossibilidades que espreme os jovens nas periferias
08/02/2016 00:00 - Copyleft
por: Saul
Leblon

Nada é mais central na luta
política brasileira nesse momento do que posicionar-se em relação ao massacre
do qual Lula é o alvo explícito.
Está longe de ser o único, porém.
Enganam-se tragicamente os que
pensarem assim.
Lula é uma ponte simbólica
-- e estratégica.
Sua densidade histórica deriva do
último grande ciclo de ascensão de massas no Brasil, iniciado com os levantes
operários do ABC paulista, no final dos anos 70, seguido da campanha das
Diretas, da Constituinte Cidadã e de quatro vitórias presidenciais progressistas
na sétima maior economia do mundo.
Nas quatro letras que formam o
seu nome junta-se o denso caudal da esperança na construção de um Brasil
socialmente convergente e libertário, a erigir uma democracia social no
coração da América Latina, em pleno século 21.
Desnecessário sublinhar a
irradiação contagiante que um marco bem sucedido dessa natureza traria à luta
pelo desenvolvimento nos quatro cantos do planeta.
Desnecessário reiterar a
ferocidade dos interesses contrariados por essa possibilidade.
A singularidade da
trajetória do ex-metalúrgico, o alcance de sua palavra, a credibilidade que
carrega condensam, assim, um potencial transformador inestimável, e ao mesmo
tempo, temido.
No momento em que a mais longa
crise mundial do capitalismo desde 1929 impõe a repactuação das bases do
desenvolvimento, a exigir um novo degrau de democratização da economia e da
sociedade, é preciso lixiviar a possibilidade de que esse potencial, (na
verdade nunca inteiramente exercido), estabeleça um novo estirão
progressista na história brasileira.
Tudo isso que Lula traz grudado
na pele, a irradiar perigosa mistura de precedente, otimismo e encorajamento
social é o alvo efetivo da mira conservadora que o picota diuturnamente.
Vive-se uma contagem regressiva
golpista.
O que se espera agora é que um
personagem do rodapé da história se apresente ao desfrute conservador, de
avental e machado na mão, a fremir nas ventas a disposição de desfechar o gesto
final.
São esses burros de carga das
encomendas superiores que cuidam também das manchetes sulfurosas nesse momento.
Suspeitos canteiros de acelga,
canoas e pedalinhos de cisne em pesqueiro frequentado por Lula, em Atibaia,
compõem o cerne de sua passagem pela história.
Que um jornalista como Clóvis Rossi,
da Folha, tenha dado ao ‘complexo de Atibaia’ o epíteto de ‘um luxo’, evidencia
a cooptação feroz dos espíritos pelo cuore conservador.
Com suas contradições de carne e
osso, Lula é a costela de pirarucu atravessada na garganta conservadora brasileira.
Trata-se da ponte mais extensa a conectar o rico e
diversificado campo progressista às camadas mais amplas e sofridas da
população.
Não é preciso endossar cada passo
e ato do ciclo que elevou em 70% o poder de compra do salário mínimo e retirou
40 milhões de brasileiros da miséria para entender o porquê da convergência que
agora avança inescrupulosamente para desloca-lo do imaginário social para um
prontuário policial.
Consumada a operação, a
restauração neoliberal está contratada para 2018, não importa quem seja o seu
portador. Até um material político da qualidade de um José Serra torna-se
competitivo nessas condições.
Exatamente por estar em disputa
uma nova hegemonia e não uma simples dança das cadeiras dentro de uma mesma
época histórica, a defesa daquilo que Lula representa não pode mais ser apenas
retrospectiva.
É preciso dizer o que
o seu potencial político tem a propor ao passo seguinte do país.
Dize-lo, sobretudo, à base social
que o sustenta.
Mas não só.
Entre outras lacunas políticas na
trajetória recente da esquerda brasileira, há uma que cobra cada vez mais alto
uma resposta desassombrada, que de certa forma condicionará a eficácia das
demais.
O que o campo progressista tem a
dizer ao segmento mais numeroso da classe média, hoje, como sempre, o
principal substrato do preconceito, da desinformação e da incerteza,
manipulados para servir de base à agenda do golpismo neoliberal?
O sucesso ou o fracasso dessa
resposta condicionará em grande medida o desfecho do braço de ferro que,
inicialmente, o conservadorismo tentou resolver com o impeachment; e
agora admite decidir nas urnas de 2018, desde que consiga trancar Lula
fora da cédula.
Não existe ‘uma classe média
única’.
Sob esse guarda-chuva sociológico
reúne-se uma vasta gama de renda intermediária, da qual faz parte também uma
elite integralmente identificada com os interesses dominantes da sociedade.
Não é desse pedaço do Brasil que
se trata aqui.
Mas dos anseios de um amplo
contingente de assalariados, profissionais liberais e funcionários
públicos, cevados com doses maciças de medo e incerteza pela cooptação
conservadora.
Inclui-se aí um pedaço
significativo da juventude que vivencia na rua e no bolso o estreitamento
do espaço de ascensão que seus pais desfrutaram --ou imaginaram desfrutar um
dia, mas que o capitalismo rentista não mais propiciará.
Não é um gargalo criado pelo
‘lulopetismo’, como diz a propaganda das falanges dentro e fora da mídia.
É um estreitamento estrutural dos
canais de mobilidade no capitalismo globalizado.
Nele, o emprego estável, de
qualidade e bem remunerado sucumbiu, desde a base industrial minguante, até o
setor de serviços expandido, configurando-se um novo normal de vagas
abastardadas pela provisoriedade, a supressão de direitos e o achatamento
real dos salários.
Um dado resume todos os demais: a
modalidade atual de emprego que mais cresce na Inglaterra sob o domínio
conservador é a que reduz o trabalhador a um insumo igual a qualquer
matéria-prima. Só requisitada do ‘depósito’ (o mercado) quando a demanda assim
o exige, ela receberá apenas e somente o equivalente ao tempo durante o qual
seu cérebro e músculos forem diretamente consumidos pela engrenagem produtiva.
Isso não impede, na verdade
guarda estreita funcionalidade com o fastígio da riqueza na ponta financeira do
sistema.
Quase 2,5 milhões de crianças vivendo
na antessala da pobreza absoluta na terceira maior economia europeia, compõe a
síntese desse paradoxo semeado por Pinochet e Thatcher desde os anos 70/80,
cuja essência consiste em libertar o capitalismo de seus contrapesos
regulatórios de natureza econômica, política e social.
Deu-se o que se traduz nesse
momento em um desconcertante avanço da desigualdade em escala global.
Um de seus vórtices foi
exaustivamente documentado por Thomas Piketty: a riqueza financeira não
apenas cresce sempre à frente, mas em contraposição à expansão real da renda
per capita.
Em sua cristalização mais
recente, a gosma inutilizou o sonho sistêmico do way of life na qual a
classe média saboreou waffles com creme de mobilidade social, do
pós-guerra até meados dos anos 70.
O protocolo da meritocracia
perdeu sentido.
Nenhum critério uniforme de
avaliação é justo quando a igualdade de oportunidades inexiste.
Um desequilíbrio estrutural
empareda agora a vida dos filhos das camadas de renda média no mesmo torniquete
de impossibilidades que espreme a existência dos jovens nas periferias
conflagradas.
Questões básicas como o
atendimento à saúde, a qualidade do ensino, a segurança e a moradia, o emprego,
o custo de criar um filho sem sistemas públicos eficientes, o amparo à velhice
dos pais mas também o anseio por dignidade, reconhecimento e convivência
pública, assumem o peso crescente de uma centralidade política carente de
respostas.
Nenhum agrupamento progressista
logrou de fato traduzir esse mal-estar social do capitalismo financeiro em um
projeto capaz de transformar os desfavorecidos de toda a sociedade em um novo
sujeito histórico.
A extrema direita navega com
razoável sucesso e competência nesse vácuo, como mostra os Le Pen, na França, o
Tea Party, nos EUA, e uma ampla gama de fascistas em ascensão nos países
nórdicos e do leste europeu.
A radicalização conservadora da
classe média brasileira –localmente temperada pelo fermento golpista— reflete
em certa medida esse mesmo caldo de cultura.
O fantasma da espiral descendente
é o seu leme.
Escola pública de qualidade,
transporte barato e eficiente, moradias sociais, saúde pública de reconhecida
competência formaram no pós-guerra europeu um substrato de estabilidade, capaz
de afastar assalariados e classe média das tentações totalitárias que a
incerteza atual enseja.
O ganho de produtividade
subtraído aos salários em nome da eficiência industrial era compensado pela
rede de proteção coletiva, ancorada em uma tributação mais justa de todo
espectro da riqueza.
A inexistência desse horizonte
empurra o subconsciente da classe média a uma disjuntiva: aderir ao apartheid
explícito ou regredir.
Sem falar a essa encruzilhada dos
setores de renda média, será cada vez mais difícil a uma sigla progressista
romper o cerco ideológico que a impede de ser ouvida pelo conjunto da
sociedade.
O crescimento contagiante da
candidatura do social democrata Bernie Sanders, nos EUA, que disputa com
Hillary Clinton a indicação dos democratas à corrida presidencial, traz um
sopro de esperança a essa equação.
O fenômeno Sanders consiste em
falar aos ‘desiguais’ com uma mesma proposta: uma sociedade de serviços
públicos dignos e eficientes para todos.
Os mais pobres, naturalmente.
Cerca de 47 milhões de pessoas
encontram-se nessa categoria nos EUA -- uma em cada cinco crianças, no país
mais rico da terra.
Mas não só a eles.
A classe média espremida pela
hipoteca, o desemprego, a descrença no futuro, o desamparo diante da velhice, a
humilhação familiar e individual passou também a prestar atenção as suas
palavras.
Sobretudo, os seus filhos.
Nas prévias dos democratas em
Iowa, Sanders teve nada menos que 84% dos votos na faixa dos eleitores entre 17
e 29 anos.
Um ponto fora da curva?
Tudo indica que não.
A juventude ‘apática’,
‘apolítica’, ‘desligada dos partidos’, ‘indiferente aos velhos paradigmas de
direita e esquerda’, como diz a sociologia conveniente de Marina Silva
& FHC, que se atirou agora de corpo e alma na campanha de
Sanders, é irmã histórica daquela que no ano passado, com igual entusiasmo, deu
o comando do trabalhismo britânico a um velho socialista, Jeremy Corbyn
Todo o planeta pulsa a saturação
da mais lenta, errática e incerta recuperação de todas as crises vividas pelo
capitalismo do século XX até agora.
Desafios econômicos, sociais,
ambientais e sanitários – a exemplo do aquecimento global e do zika vírus agora
no Brasil— cobrarão cada vez mais respostas cuja eficácia técnica terá que
repousar na repactuação política das formas de viver e de produzir, e contar
com indispensável mobilização da sociedade.
Nada mais distante disso do que o
fermento de preconceito, ódio de classe e desmonte do aparato público com o
qual a restauração neoliberal pretende pavimentar a sua volta ao poder no
Brasil.
O medo egoísta da classe média é
o seu veículo.
Quem acha que não há nada a fazer
sob o domínio do capitalismo desregulado do século 21, e pretende insistir no
celofane da indiferenciação programática, abraçando reformas que o
mercado exige, deveria atentar para o discurso simples e ao mesmo tempo
empolgante de um sexagenário social-democrata norte-americano.
Bernie Sanders –tema do Especial
de carnaval de Carta Maior-- tem algo a dizer à encruzilhada do PT, de
Lula; e à do Brasil, de Dilma.
Boa Leitura
Original disponível em: (http://cartamaior.com.br/?/Especial/Bernie-Sanders/O-que-Sanders-tem-a-dizer-ao-PT-e-a-classe-media-brasileira-/214/35462). Acesso
em 10/fev/2016.
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