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Nova configuração da pensão por morte (Lei 13.135/15): inconstitucionalidade, ilegalidade e inaplicabilidade à realidade social brasileira do prazo de 2 anos de casamento e união estável
27/01/2016
Autores:
SERAU JUNIOR, Marco Aurélio
FAZIO, Luisa Helena Marques de
Resumo: O artigo analisa, com a perspectiva dos direitos previdenciários como direitos fundamentais, uma das profundas alterações legislativas operadas no benefício da pensão por morte pela Lei nº 13.135/2015, fruto da conversão da Medida Provisória nº 664/2014. Questiona-se a introdução da exigência de tempo mínimo de casamento e união estável (dois anos) especialmente a partir da ideia de que o ordenamento jurídico é um sistema que deve ser coeso e coerente, sem apresentar inconsistências internas, em particular com as regras do Direito de Família, que impõe outras regras. Examina-se a incompatibilidade vertical e horizontal da nova regra face o conjunto do ordenamento jurídico brasileiro.
Introdução.
Este trabalho é dedicado ao estudo das alterações impostas ao benefício da pensão por morte, em particular a exigência de dois anos de casamento ou união estável como requisito para concessão da pensão, fruto da conversão da Medida Provisória nº 664/14 na Lei nº 13.135, de 17.06.2015.
O artigo utiliza, para analisar tão profundas alterações legislativas, a perspectiva dos direitos previdenciários como direitos fundamentais (SERAU JR., 2011).
O que defenderemos aqui é a tese de que a exigência de tempo mínimo para o casamento ou união estável como requisito obrigatório para a obtenção de pensão por morte é regra incompatível com o conjunto do ordenamento jurídico brasileiro, sobretudo por afrontar a proteção constitucional conferida à família e diversas regras de Direito Civil que definem as balizas legais para o casamento e a união estável, além de sua inaplicabilidade à realidade social nacional.
1. Alterações na Pensão Por Morte: Introdução da Exigência de Dois Anos de Casamento e/ou União Estável.
O benefício previdenciário da pensão por morte foi, sem dúvida, o que mais sofreu transformações com a minirreforma previdenciária perpetrada pela Medida Provisória 664/2014, ora convertida na Lei nº 13.135/15.
Introduziram-se diversas novas regras para a obtenção desse benefício, como a exigência de tempo de contribuição de 18 meses, inexistente até então; extinguiu-se a vitaliciedade desse benefício para os cônjuges e companheiros(as), mediante a aplicação de uma tabela de expectativa de vida, revista ademais a cada três anos(1).
Neste trabalho analisaremos especificamente outro requisito novo, consiste na introdução da exigência de tempo mínimo de dois anos de casamento ou de união estável para a concessão da pensão por morte no caso dos cônjuges e companheiros(as), matéria tratada no art. 77, § 2º, inciso V, da Lei 8.213/91, conforme redação dada pela Lei 13.135/15, adiante transcrito:
"§ 2º - O direito à percepção de cada cota individual cessará:
(...)
V - para cônjuge ou companheiro:
(...)
b) em 4 (quatro) meses, se o óbito ocorrer sem que o segurado tenha vertido 18 (dezoito) contribuições mensais ou se o casamento ou a união estável tiverem sido iniciados em menos de 2 (dois) anos antes do óbito do segurado;"
Regra similar é instituída no âmbito do regime próprio destinado aos servidores públicos federais civis, com alteração do art. 222, inciso VII, a, da Lei 8.112/90, que estabelece a cessação da pensão por morte após:
"a) o decurso de 4 (quatro) meses, se o óbito ocorrer sem que o servidor tenha vertido 18 (dezoito) contribuições mensais ou se o casamento ou a união estável tiverem sido iniciados em menos de 2 (dois) anos antes do óbito do servidor;"
Para melhor compreender a introdução da exigência de tempo mínimo de dois anos de casamento ou de união estável para a concessão da pensão por morte no caso dos cônjuges e companheiros, deve-se analisar certos trechos da Exposição de Motivos da Medida Provisória 664/14, da qual resulta a Lei nº 13.135/2015:
7. De igual maneira, é possível a formalização de relações afetivas, seja pelo casamento ou pela união estável, de pessoas mais idosas ou mesmo acometidas de doenças terminais, com o objetivo exclusivo de que o benefício previdenciário recebido pelo segurado em vida seja transferido a outra pessoa. Ocorre que a pensão por morte não tem a natureza de verba transmissível por herança e tais uniões desvirtuam a natureza da previdência social e a cobertura dos riscos determinados pela Constituição Federal, uma vez que a sua única finalidade é de garantir a perpetuação do benefício recebido em vida para outra pessoa, ainda que os laços afetivos não existissem em vida com intensidade de, se não fosse a questão previdenciária, justificar a formação de tal relação. Para corrigir tais distorções se propõe que formalização de casamento ou união estável só gerem o direito a pensão caso tais eventos tenham ocorrido 2 anos antes da morte do segurado, ressalvados o caso de invalidez do cônjuge, companheiro ou companheira após o início do casamento ou união estável, e a morte do segurado decorrente de acidente.
(...)
20. Outro ponto a ser destacado e visando contemplar os mesmos requisitos a serem previstos para o RGPS, propõe-se que o cônjuge, companheiro ou companheira somente terá direito ao benefício, se data do casamento ou a união estável contar com pelo menos 2 (dois) anos após a data do falecimento do servidor. Tal proposta visa resguardar a concessão desse benefício aos dependentes do servidor que, de fato, tenham tido convívio familiar que gere a dependência ou relação econômica com o segurado e que afaste eventuais desvirtuamento na concessão desse benefício. Assim, com as propostas de alteração no pagamento da pensão por morte buscou-se adequar o regramento anterior a nova realidade da família brasileira em consonância com as modificações que estão sendo propostas para o RGPS." (grifos nossos)
É claro que em ambos os casos acima tratados há exceções, como quando o óbito do instituidor do benefício da pensão ocorre antes de dois anos de casamento ou união estável por motivo de acidente, ou mesmo quando o cônjuge/companheiro(a) torna-se incapaz para o trabalho antes do mesmo lapso temporal.
Além disso, estabeleceu-se a possibilidade de uma pensão provisória de quatro meses no caso de descumprimento dos requisitos para obtenção da pensão por morte (especialmente prazo carencial e lapso mínimo de casamento ou união estável).
Mas essas ressalvas trazidas como mecanismo de flexibilizar/amenizar o regime mais severo imposto à maioria dos segurados não resolvem totalmente o problema causado e as dificuldades adicionais doravante necessárias à concessão do benefício da pensão por morte.
Trataremos dessa questão, inicialmente, sob o enfoque da coerência interna do ordenamento jurídico brasileiro; posteriormente, abordaremos o impacto sociológico da medida, e sua inadequação à realidade social brasileira.
2. Direito Previdenciário e Direito de Família.
O ordenamento jurídico brasileiro não comporta ambiguidade em relação à definição jurídica - e definição dos efeitos jurídicos - da instituição do casamento e, em certos aspectos, da união estável.
Embora já não esteja mais em disputa a autonomia científica do Direito Previdenciário (SERAU JR., 2014), não se pode esquecer que este segmento do Direito se relaciona com outras áreas do conhecimento jurídico, devendo, por sua vez, respeitar conceitos jurídicos e instituições que já estejam consolidadas nessas outras esferas.
É bastante conhecida a concepção de NORBERTO BOBBIO (1999) a respeito da Teoria do Ordenamento Jurídico: o sistema jurídico não é composto de um mero aglomerado de normas jurídicas, mas, ao revés, é um todo coerente, coeso e sistemático, intolerante às antinomias jurídicas, que devem ser eliminadas.
Nesse sentido, deve-se ter em conta que a definição de casamento e união estável, sobretudo seus efeitos jurídicos, não podem ser diversos no campo do Direito de Família (de onde são originárias) e no campo do Direito Previdenciário (onde serão aproveitados).
Conforme WLADIMIR NOVAES MARTINEZ (2011: 251), em formulação abrangente, "todos os princípios de direito privado com universalidade não privativas do Direito Civil ou Direito Comercial têm aplicação no seguro social".
Para CARLOS ALBERTO PEREIRA DE CASTRO e JOÃO BATISTA LAZZARI (2014: 61), "com o Direito Civil, a relação do Direito Previdenciário se dá a partir de vários aspectos. (...) Também se verifica a necessidade de interação com o Direito Civil na caracterização do estado das pessoas - filiação, casamento e sua dissolução; ainda cabe salientar a aplicação dos conceitos de capacidade e incapacidade civil, emancipação, ausência e morte presumida, todos obtidos das normas do Código Civil".
Segundo MIGUEL HORVATH JR. (2012: 150): "Direito Civil é o ramo do direito que regula os direitos e obrigações de ordem privada concernente às pessoas, aos bens e a suas relações. Exsurgem do direito civil conceitos imprescindíveis para o entendimento e a aplicação do direito previdenciário como o de emancipação, ausência, casamento, união estável, separação, divórcio, etc".
Para TADDEI, MONGIARDINO e NACCARATO (2002: 294), analisando a legislação argentina, "al otorgar derechos a los benefícios pensionários, las leys de la matéria lo hacen com independência de los princípios del régimen civil. Ello no llega hasta el extremo de considerar que las leyes de previsión puedan prescindir totalmente de algunas regulaciones del derecho común, como lo son la calificación del parentesco, la existência del vínculo y su acreditación, entre otros aspectos que deben regirse por las normas comunes".
O magistério de LAURA SOUZA LIMA E BRITTO (2012:71) é bastante incisivo quanto à necessária interrelação entre Direito Previdenciário e Direito de Família:
"O que se pretende é demonstrar que, no âmbito do direito civil, em que se encaixa o direito de família, a noção de entidade familiar está intimamente ligada à ideia de assistência material entre parentes, o que pode dar ensejo à obrigação de sustento ou de prestação alimentícia. De maneira análoga, no direito previdenciário, a delimitação do que é família entrelaça-se ao conceito de dependência, o que, de maneira correlata, pode dar causa à obrigação por parte da previdência social de prestar-lhe pensão por morte ou auxílio-reclusão.
Em outra palavras: percebe-se que, em termos jurídicos, independentemente da autonomia dos diferentes ramos do direito, a construção do conceito de família acontece de forma privilegiada no diálogo entre direito de família e direito previdenciário (...)".
Segundo a mesma autora (BRITTO, 2012: 95), "o diálogo de fontes é essencial para que se encontrem soluções jurídicas que estejam em consonância com os princípios que norteiam tanto o direito de família quanto o direito previdenciário".
Deve ser sublinhado que a história recente do Direito Previdenciário registra movimento inverso daquele impresso pela alteração promovida pela Lei nº 13.135/15 (acréscimo do requisito de tempo mínimo de casamento/união estável para obtenção da pensão por morte). A jurisprudência assinala, ao contrário, a ampliação da cobertura previdenciária, com aumento de hipóteses de concessão da pensão por morte, mesmo para novas figuras familiares distintas do casamento (ROCHA, 2012: 36-37; GAMA, 2012: 81-82), como a família monoparental, a união homoafetiva ou o rateio de pensão entre viúva e concubina (GUMESSON, TOALDO, 2015: 98-119).
A legislação previdenciária vincula-se especialmente ao objetivo constitucional de amparo social - decorrente de seu caráter alimentar e de direito fundamental - ao passo que a legislação civil tem como objetivo primordial a definição das relações entre as pessoas e seu estado (TADDEI, MONGIARDINO, NACCARATO; 2002: 294).
Especialmente à luz do Texto Constitucional e da natureza de direito fundamental das normas previdenciárias, estas só possuem espaço para se afastar das definições oriundas do Direito de Família (e do Direito Civil como um todo), sem incorrer na criação de antinomias jurídicas, à medida que aumentem o nível protetivo da cobertura previdenciária.
Embora Direito de Família e Direito Previdenciário se tratem de ramos autônomos do ordenamento jurídico, também é certo que não podem ser totalmente apartados, principalmente quando cuidam dos mesmos institutos jurídicos, como a definição do núcleo familiar e de seus efeitos jurídicos.
A partir destas considerações metodológicas, analisaremos abaixo a nova regra imposta à pensão por morte, qual seja a exigência de tempo mínimo de casamento e união estável.
3. Incompatibilidade Vertical e Horizontal da Nova Regra Com o Restante do Ordenamento Jurídico Brasileiro.
A introdução da exigência de tempo mínimo de dois anos de casamento ou de união estável para a concessão da pensão por morte, sob o pretexto de restar bem configurada a dependência econômica entre os cônjuges/companheiros(as) (argumento implícito na Exposição de Motivos da Medida Provisória 664/14, de que resulta a Lei nº 13.135/15), é assunto carregado de falso moralismo.
Tarifa-se, através da aposição de uma medida arbitrária de tempo(2), qual é o tipo de relação familiar considerada válida para a concessão de um benefício previdenciário relevantíssimo como a pensão por morte. Nota-se, também, uma indevida intromissão na seara íntima das pessoas, com repercussões drásticas em termos de redução da cobertura previdenciária.
Sempre se poderá alegar a existência de casamentos forjados, com o único intuito de fraudar a autarquia previdenciária (conforme sugerido na Exposição de Motivos da Medida Provisória 664/14, ora convertida na Lei nº 13.135/15), bem como situações popularmente conhecidas como a das "viúvas negras", mas esse tipo de episódio deve ser analisado à luz do caso concreto, sob a hipótese de que as fraudes e a má-fé são excepcionais e devem ser comprovadas e exemplarmente reprimidas, não podendo ser considerados fatores estruturantes do regime previdenciário e do benefício da pensão por morte, que a sociedade brasileira considera como um direito previdenciário mínimo(3).
Nesse sentido é importante salientar que a Lei 13.135/15 avançou em relação à Medida Provisória que lhe deu ensejo, trazendo regra coerente com as premissas lançadas na Exposição de Motivos, pois estabeleceu, alterando a redação do art. 74, da Lei 8.213/91, a perda do benefício de pensão nos casos de simulação ou fraude de casamento e/ou união estável:
"Art. 74 - (...)
§ 2º.Perde - o direito à pensão por morte o cônjuge, o companheiro ou a companheira se comprovada, a qualquer tempo, simulação ou fraude no casamento ou na união estável, ou a formalização desses com o fim exclusivo de constituir benefício previdenciário, apuradas em processo judicial no qual será assegurado o direito ao contraditório e à ampla defesa."(4)
Essa medida salutar, entretanto, foi insuficiente para afastar da legislação previdenciária reformada a exigência dos dois anos de casamento ou união estável como requisito para obtenção da pensão por morte.
Todo modo, entendemos inviável a exigência de tempo mínimo de casamento ou união estável para a concessão da pensão por morte, pois o Direito de Família já estabelece um conjunto sólido de regras que impõe, dentro da vigência do casamento e da união estável, inúmeras obrigações de compartilhamento de responsabilidades e direitos, de sorte que a codependência econômica acaba por ser algo ínsito à instituição familiar(5).
Nestes termos, a norma proposta pela Lei nº 13.135/15 padece de inconstitucionalidade, por violação ao art. 226, da Constituição Federal(6), pois o Texto Constitucional alberga uma especial proteção à família.
Na esteira do que dita o Direito Civil Constitucional, a família recebe dimensão constitucional em sua estrutura fundamental ou fundamentadora da regulação infralegal(7), através das normas constitucionais e dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos, da ONU, de 1948 (FLORES-VALDÉS, 1991: 72-74)(8).
Sofre também de ilegalidade ou incompatibilidade legal com diversos dispositivos importantes do Código Civil, destacadamente os artigos 1.511, 1.513, 1.514, 1.565 a 1.568 e 1.723 e 1.724, conjunto de regras que estabelece ser o casamento uma forma de plena comunhão de vida, com base na igualdade de direitos e deveres dos cônjuges, projeto de vida que é insuscetível de sofrer intromissão por qualquer entidade estatal ou privada, cuja validade, desde que atendidas as formalidades legais, é imediata(9).
Os deveres de assistência mútua e de divisão dos encargos familiares oriundos da instituição do casamento ou da união estável, encontram-se, respectivamente, nos artigos 1.565 a 1.568(10) e 1.723 a 1.724(11), todos do Código Civil.
4. Inaplicabilidade da Regra Nova à Realidade Social Brasileira.
A aplicação das alterações no benefício de pensão por morte promovidas pela Lei nº 13.135/15 à estrutura social brasileira, onde ainda são frequentes a constituição e manutenção de relações conjugais pautadas por grande dependência econômica da mulher para com o homem, vislumbra-se grande prejuízo em maior medida contra as mulheres e, indiretamente, aos filhos menores.
Os dramas concretos vivenciados pelas pensionistas, com o óbito dos seus conviventes, são nítidos: permanecendo com filhos menores, necessitando da pensão previdenciária para prover as necessidades comezinhas da prole, é certo que o amparo social virá em menor medida ou será mesmo neglicenciado pelo órgão estatal, ainda que na vigência de um casamento plenamente válido, embora inferior a dois anos de duração.
Conforme WLADIMIR NOVAES MARTINEZ (2015: 36-37):
"Esse novo modelo afetará os costumes sociais dos brasileiros. Na maioria dos casos, diminuirá a renda mensal de dependentes jovens sem filhos que não contraírem novas uniões ou sem outros meios de subsistência e, por conseguinte, terão de baixar o seu padrão de vida.
Lamentavelmente, a proposta em andamento não levou em conta o nível de escolaridade ou aptidão profissional das pessoas nem a renda dos envolvidos. Não parece correto ter disciplinado a situação dos pensionistas cujo segurado ganhava R$ 788,00, do mesmo modo como em relação aquele que percebia R$ 78.800,00 ou mais."
Tomando-se em conta a condição social das mulheres que vivem e trabalham no campo, não se pode esquecer da precariedade de sua trajetória profissional, bem como que o foco das políticas assistenciais-previdenciárias ainda permanece na figura dos chefes de família e provedores, condicionando as mulheres ao estatuto de dependentes e, portanto, impossibilitadas de terem direitos previdenciários próprios(12) (BERWANGER, VERONESE, 2015: 81-83).
Ademais, a nova regra caminha na contramão de todas as conquistas sociais e do movimento feminista da última década, sobremaneira com a política estatal de igualdade de gênero e empoderamento das mulheres. Pode-se afirmar que a atual política governamental de Direitos Humanos busca ampliar a proteção às mulheres (v.g. o recém-aprovado Feminicídio, Lei 13.104/2015), dando condições político-econômicas para que elas possam se emancipar.
Deve-se ter em mente que grande parte dos pensionistas por morte é do sexo feminino(13), e que as viúvas, juntamente com a prole, necessitam destes parcos valores para sua sobrevivência. Desta forma, excluindo a renda dessas mulheres e famílias, haverá retrocesso social e desequilíbrio na igualdade do tratamento entre os relacionamentos: apenas uma relação mais longa será considerada justa e merecedora da proteção legislativa.
Ora, não se pode medir o amor ou a qualidade de uma relação afetiva pelo tempo. Não se trata aqui de requerer que ordenamento jurídico acoberte relações efêmeras e sem o intuito de constituir família. Entretanto, o requisito temporal não nos parece o mais adequado para determinar a seriedade de um relacionamento.
A Exposição de Motivos da MP 664/2014 e o posicionamento do Ministério da Previdência Social tentam amenizar o impacto da nova normatização: "Os benefícios estão garantidos, mas há necessidade de atualização das regras de acesso para acompanhar as transformações da sociedade"(14).
A norma em tela parece contribuir para o ajuste fiscal pretendido pelo Governo Federal à custa de uma "modernização forçosa" das relações sociais brasileiras, algo que ainda não encontra pleno eco nos arranjos sociais. As normas jurídicas contribuem para a garantia dos direitos fundamentais, mas as transformações de ordem mais profunda dependem de alteração cultural(15).
Sob o pretexto de evitar fraudes, a inovação normativa em tela contraria todos os recentes avanços legislativos, como por exemplo a Emenda Constitucional nº 66/2010, que retirou a exigência mínima de 1 ano de casamento para o divórcio. Hoje, a qualquer tempo, pode-se requerer a dissolução do casamento.
Idêntico raciocínio segue o reconhecimento da união estável, para o qual não há exigência do decurso de um mínimo temporal.
O Direito de Família contemporâneo, sucedâneo do fenômeno da constitucionalização do Direito Civil, não mais tolera o enrijecimento de direitos em meros critérios temporais. Os relacionamentos afetivos hodiernos são diversos daqueles de anos atrás, pois, na Modernidade Líquida (BAUMAN, 2004), as relações se transformam com muita rapidez, diante da fragilidade dos laços humanos.
Destarte, se desnecessária a comprovação de lapsos temporais para a constituição e para a extinção de relacionamentos afetivos no Direito de Família, também é descabida tal exigência para o Direito Previdenciário, haja vista o ordenamento jurídico ser um todo coeso, não admitindo antinomias para sujeitos em iguais situações.
De outra parte, não se pode desconsiderar, especialmente quanto à união estável, o aspecto probatório e sua intensa dificuldade no contexto social brasileiro, permeado por grande informalidade na constituição das relações familiares. Segundo MARTINEZ (2015: 39-40), "a prova da união estável, sempre onerosa e com ênfase para demonstrar o seu começo, assume grande importância. De regra, é consabido que esse tipo de união entre homem e mulher, de regra, se caracteriza pela informalidade. Mais ainda se for uma união homoafetiava".
Com a conversão da regra em Lei, cristalino está o prejuízo para inúmeras famílias, sobremaneira àquelas monoparentais chefiadas por mulheres, trazendo atraso no desenvolvimento econômico-social do país e na busca pela igualdade de gênero.
Conclusões.
A análise que se fez neste trabalho demonstra a gravidade das alterações normativas introduzidas no universo previdenciário pela Lei nº 13.135/15, especialmente a introdução de tempo mínimo de casamento ou união estável (dois anos) para a obtenção do benefício da pensão por morte.
Essa drástica quebra de paradigma no sistema previdenciário brasileiro é incompatível com diversas outras regras do ordenamento jurídico, tanto no plano constitucional como no campo infralegal, em particular as regras destinadas à proteção jurídica conferida à família.
No plano sociológico, também são bastante claras as consequências funestas em termos de redução do nível geral da proteção social, diante da aplicação de regras draconianas e bastante apartadas da nossa realidade.
Referências Bibliográficas:
BAUMAN, Zygmunt. Amor Líquido. São Paulo: Jorge Zahar, 2004.
BERWANGER, Jane Lúcia Wilhelm; VERONESE, Osmar. Constituição - um olhar sobre minorias vinculadas à Seguridade Social. Curitiba: Juruá, 2015.
BRITTO, Laura Souza Lima e. Previdência e família na jurisprudência do STJ in, SERAU JR., Marco Aurélio (coord.). Comentários à jurisprudência previdenciária do STJ. Curitiba: Juruá, 2012.
BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico, 10 ed., Brasília: UnB, 1999.
CAETANO, Marcelo Abi-Ramia. Questões brasileiras: é justo que as mulheres se aposentem mais cedo? Folha de S. Paulo, B6, Mercado, domingo, 21.12.2014.
CASTRO, Carlos Alberto Pereira de; LAZZARI, João Batista. Manual de Direito Previdenciário, 16 ed., rev., atual. e ampl., Rio de Janeiro: Forense, 2014.
FLORES-VALDÉS, Joaquín Arce y. El Derecho Civil Constitucional. Madrid: Cuadernos Civitas, 1991.
GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Direito de Família e Direito Previdenciário: diálogos possíveis, in, SOUZA, Fábio; SAADI, Jean (coord.). Previdência e família - interseções entre o Direito Previdenciário e o Direito de Família. Curitiba: Juruá, 2012.
GUMESSON, Almeri; TOALDO, Adriane Medianeira. A possibilidade jurídica de vínculo previdenciário na relação de concubinato. Revista Síntese Direito de Família, nº 89, abril/maio de 2015. São Paulo: Síntese, 2015.
HORVATH JR., Miguel. Direito Previdenciário, 9ª ed., completa, rev. e ampl., São Paulo: Quartier Latin, 2012.
MARTINEZ, Wladimir Novaes. Princípios de Direito Previdenciário, 5 ed., São Paulo: LTr, 2011.
___________________________ A nova pensão por morte. Revista Síntese Direito de Família, nº 89, abril/maio de 2015. São Paulo: Síntese, 2015.
PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil - introdução ao Direito Civil Constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.
ROCHA, Daniel Machado da. O direito dos cônjuges e dos companheiros ao benefício da pensão por morte no Regime Geral, in, SOUZA, Fábio; SAADI, Jean (coord.). Previdência e família - interseções entre o Direito Previdenciário e o Direito de Família. Curitiba: Juruá, 2012.
SERAU JR., Marco Aurélio. Seguridade Social como direito fundamental material, 2 ed., rev. e atual., Curitiba: Juruá, 2011.
________________________ Paradigmas científicos e o futuro do Direito Previdenciário. Revista Brasileira de Direito Previdenciário, nº 22, ago-set/2014. São Paulo: Magister, 2014.
TADDEI, Pedro J. M., MONGIARDINO, Carlos J., NACCARATO, Reinaldo. Manual de la Seguridad Social. Buenos Aires: Depalma, 2002.
Notas:
(1) Veja-se a redação dada pela Lei 13.135/15 ao art. 77, § 2º, da Lei 8.213/91:
§ 2º - O direito à percepção de cada cota individual cessará:
(...)
V - para cônjuge ou companheiro:
a) se inválido ou com deficiência, pela cessação da invalidez ou pelo afastamento da deficiência, respeitados os períodos mínimos decorrentes da aplicação das alíneas "b" e "c";
b) em 4 (quatro) meses, se o óbito ocorrer sem que o segurado tenha vertido 18 (dezoito) contribuições mensais ou se o casamento ou a união estável tiverem sido iniciados em menos de 2 (dois) anos antes do óbito do segurado;
c) transcorridos os seguintes períodos, estabelecidos de acordo com a idade do beneficiário na data de óbito do segurado, se o óbito ocorrer depois de vertidas 18 (dezoito) contribuições mensais e pelo menos 2 (dois) anos após o início do casamento ou da união estável:
1) 3 (três) anos, com menos de 21 (vinte e um) anos de idade;
2) 6 (seis) anos, entre 21 (vinte e um) e 26 (vinte e seis) anos de idade;
3) 10 (dez) anos, entre 27 (vinte e sete) e 29 (vinte e nove) anos de idade;
4) 15 (quinze) anos, entre 30 (trinta) e 40 (quarenta) anos de idade;
5) 20 (vinte) anos, entre 41 (quarenta e um) e 43 (quarenta e três) anos de idade;
6) vitalícia, com 44 (quarenta e quatro) ou mais anos de idade.
§ 2ºA. - Serão aplicados, conforme o caso, a regra contida na alínea "a" ou os prazos previstos na alínea "c", ambas do inciso V do § 2º, se o óbito do segurado decorrer de acidente de qualquer natureza ou de doença profissional ou do trabalho, independentemente do recolhimento de 18 (dezoito) contribuições mensais ou da comprovação de 2 (dois) anos de casamento ou de união estável.
§ 2ºB. - Após o transcurso de pelo menos 3 (três) anos e desde que nesse período se verifique o incremento mínimo de um ano inteiro na média nacional única, para ambos os sexos, correspondente à expectativa de sobrevida da população brasileira ao nascer, poderão ser fixadas, em números inteiros, novas idades para os fins previstos na alínea "c" do inciso V do § 2º, em ato do Ministro de Estado da Previdência Social, limitado o acréscimo na comparação com as idades anteriores ao referido incremento."
A interpretação mais adequada a esse novo dispositivo legal dá a entender que a pensão por morte ainda independe de carência, visto que o art. 26, inciso I, da Lei 8.213/91, não foi alterado. Entretanto, o art. 77, § 2º, inciso V, alíneas a e b, da mesma lei, passa a exigir, cumulativamente, dezoito meses de contribuição e vigência de casamento ou união estável por ao menos dois anos, ensejando, assim, a pensão por morte nos termos da escala prevista nos diversos ítens desse dispositivo (de três anos à vitaliciedade, conforme a idade do cônjuge ou companheiro supérstite). Não preenchidos qualquer um destes requisitos, é possível a concessão de uma pensão por morte provisória, de apenas quatro meses. A ideia de que se trata de tempo de contribuição e não tempo de carência é reforçada pela previsão do novo § 5º, acrescentado ao art. 77 pela Lei 13.135/15.
Também é importante frisar que tais requisitos (tempo de contribuição e tempo mínimo de casamento e união estável) se aplicam tão somente a cônjunges e companheiros, e não aos demais dependentes previstos no rol do art. 16 da Lei de Benefícios.
(2) A título de mera argumentação: porque não fixar o período mínimo de casamento ou união estável em cinco anos ou, em caminho oposto, em tão somente um ano? O tempo de namoro ou noivado (curto, longo, etc.) deve ser considerado para a consagração da legitimidade da união afetiva? Como tratar os casos de legítimas uniões familiares que ainda não atingiram esse lapso mínimo e, agora, na vigência do novo regime jurídico, não ensejam a implementação da pensão por morte. Avulta a sensação de exercício totalmente aleatório da criação de normas jurídicas e violação aos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade.
(3) Compreendida esta expressão - direito previdenciário mínimo - como uma expectativa social a respeito dos patamares mínimos de proteção social almejada pela coletividade, na linha do que a doutrina vêm expondo sobre o mínimo vital.
(4) E, no mesmo sentido, a regra introduzida na Lei 8.112/90, com a alteração da redação do art. 220, II, a respeito dos regimes próprios de previdência dos servidores públicos federais:
"II - o cônjuge, o companheiro ou a companheira se comprovada, a qualquer tempo, simulação ou fraude no casamento ou na união estável, ou a formalização desses com o fim exclusivo de constituir benefício previdenciário, apuradas em processo judicial no qual será assegurado o direito ao contraditório e à ampla defesa."
(5) Decorre das próprias normas constitucionais um temperamento das liberdades individuais, dentro do âmbito familiar, por deveres de solidariedade econômica, política e social, compreendido o dever de solidariedade como dever de lealdade e assunção de responsabilidades em relação a todos os familiares, especialmente aos filhos e filhos menores (PERLINGIERI, 2002: 263).
(6) Em particular o que se encontra disposto nos §§ 3º e § 5º:
"Art. 226 - A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.
(...)
§ 3º - Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.
(...)
§ 5º - Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher."
(7) O desenho constitucional do conceito de família (e de todos os outros inscritos na esfera do Direito Civil Constitucional) imprime-lhe eficácia interpretativa; eficácia vetora da regulamentação infraconstitucional, inclusive, aí inserida,e eficácia derrogatória e invalidatória da legislação infraconstitucional (FLORES-VALDÉS, 1991: 125-168).
(8) Vale dizer que o Direito Civil Constitucional reconhece que existem pluralidades de formas familiares, todas merecedoras de tutela jurídica (PERLINGIERI, 2002: 244, 257).
(9) Eis o inteiro teor dos dispositivos legais mencionados, todos do Código Civil de 2002:
"Art. 1511 - O casamento estabelece comunhão plena de vida, com base na igualdade de direitos e deveres dos cônjuges.
Art. 1513 - É defeso a qualquer pessoa, de direito público ou privado, interferir na comunhão de vida instituída pela família.
Art. 1514 - O casamento se realiza no momento em que o homem e a mulher manifestam, perante o juiz, a sua vontade de estabelecer vínculo conjugal, e o juiz os declara casados."
(10) Eis o inteiro teor dos dispositivos legais mencionados, todos do Código Civil de 2002:
"Art. 1565 - Pelo casamento, homem e mulher assumem mutuamente a condição de consortes, companheiros e responsáveis pelos encargos da família.
Art. 1566 - São deveres de ambos os cônjuges:
(...)
III - mútua assistência;
IV - sustento, guarda e educação dos filhos;
V - respeito e consideração mútuos.
Art. 1567 - A direção da sociedade conjugal será exercida, em colaboração, pelo marido e pela mulher, sempre no interesse do casal e dos filhos.
Art. 1568 - Os cônjuges são obrigados a concorrer, na proporção de seus bens e dos rendimentos do trabalho, para o sustento da família e a educação dos filhos, qualquer que seja o regime patrimonial."
(11) Eis o inteiro teor dos dispositivos legais mencionados:
"Art. 1723 - É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família.
Art. 1724 - As relações pessoais entre os companheiros obedecerão aos deveres de lealdade, respeito e assistência, e de guarda, sustento e educação dos filhos."
(12) Os autores citados acrescentam que há dificuldade, no contexto rural, das mulheres serem reconhecidas como trabalhadoras, no lugar de mera "ajuda" no regime produtivo, o que afeta, diretamente, sua condição de cidadãs (BERWANGER; VERONESE, 2015: 82-83).
(13) "Os dados do Censo Demogra?fico 2000 apresentam um nu?mero de 6.211.209 de pessoas viu?vas, onde 5.065.474 destas sa?o mulheres, contra 1.145.735 de homens". Fonte: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/revista/revistajuridica/Artigos/PDF/JonabioBarbosa_Rev92.pdf
(14) Comentário do ministro da Previdência Social, Carlos Eduardo Gabas, em 27 de fevereiro de 2015. Disponível em: http://www.previdencia.gov.br/noticias/legislacao-regras-do-auxilio-doenca-e-pensao-por-morte-da-mp-664-passam-a-valer/.
(15) Nesse rumo, CAETANO (2014) defende que seria uma forma muito mais eficiente de enfrentar a situação das mulheres, com menor taxa de participação no mercado de trabalho e remuneração inferior à dos homens, a adoção de políticas culturais e trabalhistas, combatendo os problemas decorrentes da divisão cultural do trabalho por gênero, ao invés de se buscar uma forma de compensação previdenciária futura, através da obtenção de aposentadoria com menor idade. Esse argumento nos leva a pensar na inadequação da alteração promovida no benefício de pensão por morte, onde nenhum dos tipos de políticas foi adotado (trabalhista ou cultural), havendo, ao revés, efetiva redução da política pública previdenciária.
Original disponível em: (http://www.lex.com.br/doutrina_27083948_NOVA_CONFIGURACAO_DA_PENSAO_POR_MORTE_LEI_13135_15__INCONSTITUCIONALIDADE_ILEGALIDADE_E_INAPLICABILIDADE_A_REALIDADE_SOCIAL_BRASILEIRA_DO_PRAZO_DE_2_ANOS_DE_CASAMENTO_E_UNIAO_ESTAVEL.aspx).
Acesso em 28/jan/2016.
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