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Proporcionalidade e Razoabilidade: Critérios de Intelecção e Aplicação do Direito
por ACS — publicado em 17/11/2011 00:00
Oriana Piske
O critério da proporcionalidade é tópico, e, tal qual a eqüidade,
volve-se para a justiça do caso concreto ou particular. No dizer de
Paulo Bonavides "é um eficaz instrumento de apoio às decisões judiciais
que, após submeterem o caso a reflexões prós e contras (abwägung), a fim
de averiguar se na relação entre meios e fins não houve excesso
(Übermassverbot), concretizam assim a necessidade do ato decisório de
correção."
A doutrina constatou a existência de três elementos ou subprincípios
que compõem o princípio da proporcionalidade. O primeiro é a
pertinência. Analisa-se aí a adequação, a conformidade ou a validade do
fim. Portanto se verifica que esse princípio se confunde com o da
vedação do arbítrio. O segundo é o da necessidade, pelo qual a medida
não há de exceder os limites indispensáveis à conservação do fim
legítimo que se almeja. O terceiro consiste na proporcionalidade mesma,
tomada "stricto sensu", segundo a qual a escolha deve recair sobre o
meio que considere o conjunto de interesses em jogo.
A aplicação do princípio da proporcionalidade demanda dois enfoques.
Há simultaneamente a obrigação de fazer uso de meios adequados e
interdição quanto ao uso de meios desproporcionais. Desta forma, a
proporção adequada torna-se condição de legalidade. Portanto, a
inconstitucionalidade ocorre quando a medida é excessiva,
injustificável, ou seja, não cabe na moldura da proporcionalidade. Esta,
enquanto princípio constitucional,
"somente se compreende em seu conteúdo e alcance se considerarmos o
advento histórico de duas concepções de Estado de Direito: uma, em
declínio, ou de todo ultrapassada, que se vincula doutrinariamente ao
princípio da legalidade, com apogeu no direito positivo da Constituição
de Weimar; outra, em ascensão, atada ao princípio da
constitucionalidade, que deslocou para o respeito dos direitos
fundamentais o centro de gravidade da ordem jurídica."
A adoção do princípio da proporcionalidade representa talvez a nota
mais distintiva do segundo Estado de Direito, o qual, com a aplicação
desse princípio, saiu admiravelmente fortalecido. Converteu-se em
princípio constitucional, por obra da doutrina e da jurisprudência,
sobretudo na Alemanha e Suíça. Contribui notavelmente para conciliar o
direito formal com o direito material em ordem a prover exigências de
transformações sociais extremamente velozes, e doutra parte
juridicamente incontroláveis caso faltasse a presteza do novo princípio
constitucional.
A regra de proporcionalidade produz uma controvertida ascendência do
juiz (executor da justiça material) sobre o legislador, sem chegar
entretanto a abalar o princípio da separação de poderes, visto que a
limitação aos poderes do legislador não vulnera o princípio da
separação, porque o raio de autonomia, a faculdade política decisória e a
liberdade do legislador para eleger, conformar e determinar fins e
meios se mantém de certo modo plenamente resguardada, sob a regência dos
princípios estabelecidos pela Constituição.
No segundo Estado de Direito, o legislador já não é, porém, o
soberano das épocas em que o princípio da legalidade se sobrepunha, por
ausência efetiva de controle, ao princípio de constitucionalidade. De
conseguinte, o legislador, em razão do aperfeiçoamento dos mecanismos
jurisdicionais de controle de seus atos, deixou de mover-se com a
inteira liberdade do passado, típica da idade do primeiro Estado de
Direito.
Com a instauração doutrinária do segundo Estado de Direito, o juiz
ao contrário do legislador, atua por um certo prisma num espaço mais
livre, fazendo, como lhe cumpre, o exame e controle de aplicação das
normas; espaço aberto em grande parte também - sobretudo em matéria de
justiça constitucional - pelo uso das noções de conformidade e
compatibilidade. A Justiça Constitucional está mais apta a inserir, no
ordenamento jurídico, o princípio da proporcionalidade enquanto método
de apoio interpretativo.
As limitações que atualmente pacede o legislador constituinte de
segundo grau - titular do poder de reforma constitucional - configuram, a
grande realidade da supremacia da Constituição sobre a lei, a saber, a
preponderância sólida do princípio da constitucionalidade, hegemônico e
moderno sobre o vetusto princípio da legalidade ora em declínio nos
termos de sua versão clássica, de inspiração liberal.
Mas essa supremacia, introduzida de maneira definitiva pelo novo
Estado de Direito, somente tem sentido e explicação uma vez vinculada à
liberdade, à contenção dos poderes do Estado e à guarda eficaz dos
direitos fundamentais. Aqui o princípio da proporcionalidade ocupa o seu
lugar. Não é sem fundamento, pois, que ele foi consagrado por princípio
ou máxima constitucional.
O princípio da proporcionalidade e da razoabilidade são princípios
não escritos, cuja observância independe de explicitação em texto
constitucional, porquanto pertencem à natureza e essência do Estado de
Direito. Portanto, são direito positivo em nosso ordenamento
constitucional. Embora não hajam sido ainda formulados como "normas
jurídicas globais", fluem do espírito que anima em todo sua extensão e
profundidade o § 2o do artigo 5o, o qual abrange a parte não expressa
dos direitos e garantias da Constituição, a saber, aqueles direitos e
garantias cujo fundamento decorre da natureza do regime, da essência
impostergável do Estado de Direito e dos princípios que esta consagra e
que fazem inviolável a unidade da Constituição.
Os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade são cânones do
Estado de Direito, bem como regras que tolhem toda ação ilimitada do
poder do Estado no quadro de juridicidade de cada sistema legítimo de
autoridade. A eles não poderia ficar estranho o Direito Constitucional
brasileiro. Sendo, como são, princípios que embargam "o próprio
alargamento dos limites do Estado ao legislar sobre matéria que abrange
direta ou indiretamente o exercício da liberdade e dos direitos
fundamentais, mister se faz proclamar a força cogente de sua
normatividade."
Os princípios da proporcionalidade e razoabilidade, a despeito de
suas eventuais diferenças, afiguram-se em princípios fundamentais à
noção de Estado Social e Democrático de Direito. Inúmeros fatores
impedem a efetivação dos ideais democráticos albergados na maioria das
cartas constitucionais dos Estados denominados formalmente democráticos e
dos Estados em transição para a democracia. Dentre eles, exerce papel
de relevo a desatenção aos princípios da razoabilidade e da
proporcionalidade. O Brasil, muito embora esteja consignado no artigo 1o
da Lei Maior tão-só que a "República Federativa do Brasil, formada pela
união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal,
constitui-se em Estado democrático de direito", deve primar para ser um
Estado Social Democrático de Direito, em virtude do que dispõem, entre
outras, as normas contidas nos artigos: 1o, III, 3o, I, III, e IV, 5o,
LV, LXIX,LXXII, LXXIV, LXXVI; 6o, 7o, I, II, III, IV, VI, X, XI, XII;
23; 170, II, III, VII e VIII.
O Estado Social é aquele que, além dos direitos individuais,
salvaguarda os direitos sociais, sendo obrigado a ações positivas para
realizar o desenvolvimento e a justiça social, como assinala Carlos Ari
Sundfeld. A razoabilidade e a proporcionalidade são princípios
fundamentais à concreção do Estado de Direito ou do Estado Social e
Democrático de Direito, entendido este como aprimoramento daquele e não
como categoria distinta. Assumem primordial importância quando da
análise de Estado em concreto e da efetivação do disposto em seu perfil
constitucional, já que, sem o atendimento destes princípios não se
realiza, efetivamente, a concepção teórica informadora deste tipo de
Estado. Weida Zancaner destaca que
"a doutrina, ao se pronunciar sobre o princípio da razoabilidade,
ora enfoca a necessidade de sua observância pelo Poder Legislativo, como
critério para reconhecimento de eventual inconstitucionalidade da lei,
ora o apresenta como condição de legitimidade dos atos administrativos,
ora aponta sua importância para o Judiciário quando da aplicação da
norma ao caso concreto. Isto demonstra de forma cristalina que a
razoabilidade é essencial ao sistema jurídico como um todo e que sua
utilização é essencial à concretização do direito posto."
O cerne do Direito positivo, como leciona Recaséns Siches, não é
permanecer no reino das idéias puras, válidas em si e por si, com
abstração de toda aplicação real e situações concretas da vida, mas a
sua efetivação. Aliás, outra não é a lição de Miguel Reale quando
afirma: "Poder-se-á dizer que o Direito nasce do fato e ao fato se
destina, obedecendo sempre a certas medidas de valor consubstanciadas na
norma".
A importância da "razoabilidade", como delimitação ao exercício
legítimo da atividade legislativa foi sustentada por Carlos Roberto de
Silveira Castro:
"A moderna teoria constitucional tende a exigir que as
diferenciações normativas sejam razoáveis e racionais. Isto quer dizer
que a norma classificatória não deve ser arbitrária, implausível ou
caprichosa, devendo, ao revés, operar como meio idôneo, hábil e
necessário ao atingimento de finalidades constitucionalmente válidas,
Para tanto, há de existir uma indispensável relação de congruência entre
a classificação em si e o fim a que ela se destina. Se tal relação de
identidade entre meio e fim - ?mens-end relationship?, segundo a
nomenclatura norte-americana - da norma classificatória não se fizer
presente, de modo que a distinção jurídica resulte leviana e
injustificada, padecerá ela do vício da arbitrariedade, consistente na
falta de ?razoabilidade? e de ?racionalidade?, vez que nem mesmo ao
legislador legítimo, como mandatário da soberania popular, é dado
discriminar injustificadamente entre pessoas, bens e interesses na
sociedade política."
Vale esclarecer que, para o autor, as expressões "distinguir",
"classificar", "classificação", aplicadas à atividade legislativa, são
equivalentes a "dispor", "estatuir", consoante pode-se depreender quando
diz: "Pode-se mesmo afirmar que legislar significa classificar.
Classificam-se pessoas e bens segundo os mais diversos critérios fáticos
para fins de se atribuir a cada conjunto da realidade efeitos jurídicos
singulares e de toda espécie."
Como bem observa Weida Zancaner, "claro está que os direitos
individuais e coletivos albergados na Constituição, e cerne do Estado
Social e Democrático de Direito, não podem ser postergados pelo
legislador infraconstitucional, nem pode este desnaturá-los editando
leis que com eles conflitem, quer frontalmente, quer por via oblíqua,
sob pena de afronta ao princípio da razoabilidade e, conseqüentemente,
ao princípio da legalidade."
Acrescenta a mencionada autora que a importância do princípio da
razoabilidade no âmbito do Poder Executivo ombreia-se também quando do
exercício das outras duas funções do Estado.
Para Celso Antônio Bandeira de Mello, enuncia-se o princípio da razoabilidade "que a Administração, ao atuar no exercício de discrição, terá de
obedecer a critérios aceitáveis do ponto de vista racional, em sintonia
com o senso normal de pessoas equilibradas e repeitosas das finalidades
que presidiram a outorga da competência exercida. Vale dizer: pretende
se colocar em claro que não serão apenas inconvenientes, mas também
ilegítimas - e, portanto, jurisdicionalmente inválidas -, as condutas
desarrazoadas, bizarras, incoerentes ou praticadas em desconsideração às
situações e circunstâncias que seriam atendidas por quem tivesse
atributos normais de prudência, sensatez e disposição de acatamento às
finalidades da lei atributiva da discrição manejada."
Recaséns Siches, aponta com brilhantismo a necessidade da
observância do princípio da razoabilidade pelo Poder Judiciário. Os
ensinamentos do mestre estão sintetizados de forma lapidar no seguinte
trecho de sua monumental obra intitulada Nueva Filosofía de la
Interpretación del Derecho:
"O juiz, para averiguar qual a norma aplicável ao caso particular
submetido à sua jurisdição, não deve deixar-se levar por meros nomes,
por etiquetas ou conceitos classificatórios, mas pelo contrário, tem que
ver quais são as normas, pertencentes ao ordenamento jurídico positivo a
ser aplicado no caso concreto, que ao dirimir o conflito estejam em
consonância com os valores albergados e priorizados por este mesmo
ordenamento."
O princípio da razoabilidade impõe a coerência do sistema. A falta
de coerência, de racionalidade de qualquer lei, ato administrativo ou
decisão jurisdicional gera vício de legalidade, visto que o Direito é
feito por seres e para seres racionais, para ser aplicado em um
determinado espaço e em uma determinada época.
Através da análise da razoabilidade também se verifica se os vetores
que orientam determinado sistema jurídico foram ou não observados. A
desobediência a esses vetores macula de ilegalidade o ato, quer em sede
administrativa, legislativa ou jurisdicional. Conclui Weida Zancaner que
"princípio da razoabilidade compreende, além da análise da coerência
dos atos jurídicos, a verificação de se esses atos foram ou não editados
com reverência a todos os princípios e normas componentes do sistema
jurídico a que pertencem, isto é, se esses atos obedecem ao esquema de
prioridades adotado pelo próprio sistema."
Além da sua compreensão como critério de aplicação das normas
jurídicas, o princípio da razoabilidade deve ser alçado a critério de
intelecção de todo e qualquer sistema jurídico que pretenda se
perenizar. Ele dá substância à lógica do sistema, isto é, torna uma
massa imensa de normas jurídicas um todo coerente, com prioridades e
finalidades definidas e passíveis de serem compreendidas e ordenadas.
Finalmente, o princípio da razoabilidade deve ser usado em dois
momentos distintos: na estática do Direito, para a compreensão do
sistema jurídico a ser objeto de análise, hipótese na qual se constitui
em um critério de intelecção do Direito; e na dinâmica do Direito, isto
é, quando de sua aplicação, para assegurar que o perfil constitucional
do Estado Social e Democrático de Direito esteja devidamente
concretizado.
REFERÊNCIAS
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 10. ed. São Paulo: Malheiros, 1988.
CASTRO, Carlos Roberto de Silveira. O devido processo legal e a
razoabilidade das leis na nova Constituição do Brasil. São Paulo:
Forense, 1989.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 9 ed. São Paulo: Malheiros, 1997.
REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. 4 ed. São Paulo: Saraiva, 1977.
RECASENS SICHES, Luis. Nueva Filosofia de la Interpretactión del Derecho. 2 ed. México: Editorial Porrúa. 1973.
SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de Direito Público. 3. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 1992.
ZANCANER, Weida. Razoabilidade e moralidade: princípios
concretizadores do perfil constitucional do Estado Social e Democrático
de Direito. In: MELLO, Celso Antônio Bandeira de (Org.). Estudos em
homenagem a Geraldo Ataliba: Direito Administrativo e Constitucional.
São Paulo: Malheiros, 1997. v. 2.
Oriana Piske é juíza de direito.
Original disponível em: (http://www.tjdft.jus.br/institucional/imprensa/artigos/2011/proporcionalidade-e-razoabilidade-criterios-de-inteleccao-e-aplicacao-do-direito-juiza-oriana-piske). Acesso
em: 07/jun/2015.
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