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Franklin: foi a música que inventou o Brasil

Ex-ministro de Lula, o jornalista Franklin Martins
lança, nesta segunda-feira, um trabalho antológico: a trilogia "Quem
foi que inventou o Brasil", sobre os pontos de conexão entre a música
popular e a história política brasileira; na entrevista concedida à
colunista Tereza Cruvinel, Franklin conclui que a política, na música
brasileira, não é fruto de engajamentos nos momentos cruciais; é uma
constante que confere à canção popular a característica de uma crônica
da histórica política enquanto está sendo vivida, passando por Getúlio
Vargas, pelo apogeu dos festivais, no regime militar, e mesmo pelo rock
nacional; hoje, o caráter político persiste; "o samba-reggae, o axé e o
mangue-beat fazem músicas de confrontação direta com um regime de
injustiça social, de falta de oportunidades e que falam da violência
policial contra os chamados três pês: prostitutas, pobres e pretos";
leia a íntegra
21 de Junho de 2015 às 13:37
Por Tereza Cruvinel
Nos últimos 18 anos, o
jornalista Franklin Martins acumulou variadas tarefas – colunista e
comentarista político, diretor regional da TV Globo em Brasília e
ministro-chefe da Secom no segundo governo Lula – com uma exaustiva e
singular pesquisa histórica: a das músicas que, desde o início das
gravações fonográficas no Brasil, em 1902, refletiram os fatos políticos
mais importantes do momento em que foram compostas. O resultado deste
trabalho, que seria um livro, acabou sendo a trilogia “Quem foi que
inventou o Brasil”, que sai pela editora Nova Fronteira.
O lançamento
será nesta segunda-feira, 22 de junho, em São Paulo, na Livraria Cultura
do Conjunto Nacional, a partir das 19 horas, com a presença do autor.
Nesta entrevista ao 247 Franklin fala da pesquisa e de seus achados para
chegar a uma conclusão: a política, na música brasileira, não é fruto
de engajamentos nos momentos cruciais, como em outros países. É uma
constante que confere à canção popular a característica de uma crônica
da histórica política enquanto está sendo vivida. E nesta narrativa, em
cada momento um gênero se destacou. O teatro de revista e as músicas de
carnaval, nos primeiros anos da República, a MPB durante a ditadura, o
rock nos anos 1980 e a partir dos anos 1990 as sonoridades que expressam
uma “bronca social”, como o rap, o funk, o afro-reggae e outros.
Confira.
247 – Qual foi a sua
motivação para mergulhar nesta pesquisa sobre a relação entre música e
política que deu origem à trilogia? O gosto pelas duas?
Franklin Martins –
Não houve uma motivação especial, começou meio por acaso. Não houve
nenhuma estratégia inicial. Eu comecei a mexer com a Internet muito
cedo. Em 1997 criei um site – os blogs nem existiam como hoje – onde eu
postava artigos, textos e colunas.
Criei uma aba chamada Estação
História, na qual postava textos importantes da Historia do Brasil.
Digitava este material de forma muito braçal pois o programa disponível
era deficiente no reconhecimento de caracteres, cometia muitos erros
que depois eu precisava corrigir. A seguir criei outra aba em que passei
a postar trechos de gravações de discursos de personalidades
históricas, como Getúlio, Lacerda, Arinos e outros.
Achava que era
importante que as pessoas conhecessem a voz destas figuras. E por fim
passei a postar algumas músicas relacionadas com fatos políticos e fui
descobrindo que havia uma grande quantidade de musicas com esta
inspiração, desde os primórdios das gravações fonográficas, que
começaram no Brasil em 1902. Um dia o Marcio Moreira Alves me disse: “
Franklin, Fala Meu Louro (samba de Francisco Alves de 1919) é
uma gozação em cima do Rui Barbosa.”
Com esta dica fui conferir e
fazia todo sentido. E assim, aos poucos, de forma diletante no início,
fui entrando na pesquisa. Comecei a travar conhecimento com muitas
pessoas na Internet que tinham sites sobre música e começamos a trocar
informações.
Estas pessoas me ajudaram, foram me indicando outras, e
acabei construindo uma rede que me trazia informações.
E, ao mesmo
tempo, fui tocando minha pesquisa de forma independente.
Só fiz este
trabalho por causa da Internet que, mais uma vez, me ajudou muito.
Por
exemplo: existe uma base de dados fundamental, que é a discografia de
78 rotações, onde estão catalogadas, eu diria, 85% de todas as gravações
brasileiras neste padrão.
Trata-se de uma ficha técnica completa, com
título, nome do autor, dos intérpretes, ano de lançamento, gênero etc. E
tudo isso está disponível na Internet, através da Fundação Joaquim
Nabuco.
E um trabalho fabuloso feito pelo Jaime Severiano, pelo
Nirez, pelo Glauco. Então eu ia lá e consultava, e isso foi me dando
segurança.
Descobri também que o Instituto Moreira Sales tem uma base
de dados extraordinária, com cerca de 11 mil músicas desta época, com
áudios que eu podia ouvir. Ouvi lá, por exemplo, uma música do Eduardo
das Neves, o Crioulo Dudu, do início do século, e acabei descobrindo
que ele fez muitas músicas sobre política. Encontrei logo umas quatro ou
cinco sem fazer grande pesquisa. Resolvi ouvir todas as musicas de
Eduardo das Neves e acabei descobrindo uma sobre a Revolta da Chibata,
composta na época do fato. Pelo nome da música eu não descobriria seu
tema nunca, e jamais alguém havia me falado dela. Chama-se Reclamantes.
247 – Isso foi quando?
Franklin Martins –
Eu comecei em 1997. Mas a partir do ano 2000 intensifiquei a pesquisa e
comecei a ler muito sobre o assunto e hoje em dia tenho uma biblioteca
consistente sobre o assunto, toda lida. Conversei com muita gente,
muitos musicólogos e pesquisadores. Tive a ajuda inestimável de muita
gente mas destacaria o Roberto de Azevedo, que me ajudou muito no
primeiro volume. Ele tem um conhecimento extraordinário de música
brasileira. Entrei em contato com o pessoal da Fundação Joaquim Nabuco,
que tem um trabalho importante, como o Renato Faelante e outros, e eles
indicaram músicas e apontaram caminhos.
Falaram de músicas que não
ganharam uma repercussão nacional tão forte mas que regionalmente eram
conhecidas, tiveram impacto. Então as fontes são estas: uma rede que
consegui formar, algumas pessoas que me ajudaram muito e a pesquisa
direta mesma, nos acervos, livros de História e bases de dados. E muita
conversa.
247 – Mas os livros de História quase sempre ignoram repercussões paralelas, como músicas e obras de arte relacionadas…
Franklin Martins –
Sim, mas eu precisava contextualizar cada música para o leitor. Então li
muito sobre a Revolta da Vacina, a Revolta do Contestado e outras
passagens históricas. E principalmente sobre fatos anteriores digamos, à
minha vida pessoal. O que vem de 1960 para cá, mal ou bem eu conhecia.
Com algumas exceções. Descobri por exemplo uma música sobre o Massacre
de Jaíba, um fato que precisei estudar pois nunca havia ouvido falar
dele.
Ou a música relacionada à morte da líder camponesa Margarida,
que deu origem à Marcha das Margaridas. Não foi um processo de
simplesmente coletar as músicas. A pesquisa foi pelos dois lados.
247 – Então como você definiria a natureza deste trabalho tão singular?
Franklin Martins –
Eu o definiria como uma grande reportagem. Eu não sou um musicólogo, eu
não sou um historiador, não sou um especialista em música, não toco
nenhum instrumento, embora goste muito de música. Fui criado num
ambiente com forte presença da música. Sou filho da luta contra a
ditadura militar e a resistência cultural fez parte desta luta. Na minha
adolescência eu estava ouvindo samba, MPB, indo a shows… A motivação
principal, então, veio da política, não da música. Tanto que comecei a
fazer isso num site sobre política mas a música tem uma dimensão
própria, que eu procurei mostrar. Ela não é mero reflexo da política, é
fruto também da dinâmica da produção cultural.
Não se trata de música
engajada. A música brasileira geralmente não é engajada, no sentido de
ser uma atividade militante, embora em alguns momentos tenha assumido
esta natureza.
Ela é muito mais a expressão de algo interessantíssimo:
desde o início a música popular no Brasil vai se embicando no sentido de
produzir uma crônica da vida brasileira. Uma crônica em todos os
sentidos: cultural, comportamental, econômico e também político.
247 – Você se deparou com
algum período ou fato da História do Brasil que foi objeto de maior
interesse destes, digamos, cronistas musicais?
Franklin Martins –
Evidentemente que, quando mais a gente se distancia dos dias de hoje em
direção a 1902, que é quando começam as gravações no Brasil,
encontraremos menos músicas políticas. Mas também menos música sobre
tudo, pois o número de gravações foi muito menor.
Mas desde o início
existem músicas de fundo político. Eu queria, porém, voltar a esta
questão da crônica, que acho importante. Em outros países também há
música sobre política.
247 – Em alguns, até mais que aqui…
Franklin Martins –
Não, esta é a diferença. Em outros países, nos momentos de grandes
confrontos, crises sociais, guerras, revoluções e similares, você tem
uma produção de música engajada e militante muito forte. No entanto,
passados estes períodos críticos, de um modo geral a produção de viés
político se escasseia. A diferença é que no Brasil ela é permanente. Não
existe fato político relevante da História da República sobre o qual
não tenha sido composta uma música.
Existem algumas exceções. Por
exemplo, o atentado da Rua Toneleros. Não existe música sobre este fato
mas sabe por quê? Porque logo em seguida, 17 dias depois, o Getúlio se
matou. Então o suicídio de Getúlio sobrepôs-se àquele episódio. E você
encontrará 15 músicas sobre o suicídio de Getúlio. Não há também, por
exemplo, uma música composta no Brasil sobre a Aliança Nacional
Libertadora – ANL, de 1935.
Você encontrará apenas uma música composta
na Espanha. Mas há uma explicação. Aquilo durou apenas quatro meses.
Mas na Espanha, quando a mãe do Prestes lá esteve agradecendo à campanha
de solidariedade a ele, que estava preso, foi composta uma música em
homenagem ao Prestes. É esta que aparece no livro em relação àquela
passagem histórica. Mas, tirando casos isolados, todos os fatos geraram
músicas. Sobre a Coluna Prestes encontrei três, todas compostas na
época, embora algumas só tenham sido gravadas mais tarde.
247 – E de onde vem esta tradição da crônica musical no Brasil?
Franklin Martins – É
preciso começar pela poesia, que sempre teve no Brasil uma vertente
cáustica, uma poesia debochada, crítica, irreverente, contestadora da
autoridade. Lembremos-nos de Gregório de Matos e das Cartas Chilenas do
Tomás Antônio Gonzaga.
Quando D. João VI chega ao Brasil, surgem
muitas modinhas gozadoras. Infelizmente não temos as partituras, de
algumas, restaram as letras. Mas a partir de 1850 o Teatro de Revista
chega ao Brasil, com suas cançonetas derivadas das chansonnettes
francesas. Uma música cheia de duplos sentidos, que fala sobre alguma
coisa que pode também significar outra, frequentemente com uma conotação
sexual. Uma coisa meio jocosa e debochada. Isso num primeiro momento
não era muito forte mas a partir da Guerra do Paraguai o Império entra
numa exaustão lenta, gradual e segura, com Pedro II virando Pedro
Banana. O Império continuava existindo, não havia alternativa mas criou
no país um terreno fértil para o florescimento da irreverência
política.
E a partir de então o Teatro de Revista cresce muito e se
torna o desaguadouro de uma porção de músicas de fundo político.
Trata-se de um teatro cantado e passa em revista os acontecimentos dos
meses anteriores, geralmente num tom brincalhão e debochado. Surge no
Rio, nesta época, a tradição dos cafés dançantes. Eles tinham um primo
pobre, os “chopes berrantes”, onde alguns artistas se apresentavam a
convite dos donos dos estabelecimentos para vender mais cerveja.
Nos
dois aconteciam apresentações artísticas mas o ambiente dos “chopes
berrantes” era mais escrachado. Estas apresentações alimentavam o
teatro de revista que. por sua vez, estimulava a vida dos cafés. Com a
indústria fonográfica isso se expande e aí acontece algo que acho
decisivo: Entre 1916 e 1920 o carnaval se transforma de festa bailada,
baseada nos desfiles de corsos, em uma festa cantada. Um marco disso é o
samba Pelo Telefone (Donga, 1916), um samba marchado que faz
um grande sucesso. O carnaval passa então a ser cantado pelas pessoas,
nas ruas.
Logo surge a marchinha, que é uma derivação do cã-cã, uma
marcha puladinha. A partir desta época o carnaval torna-se o grande
desaguadouro da música. A partir daí, 40% das músicas compostas no
Brasil são destinadas ao carnaval. Assim será por um bom tempo. E o que é
o carnaval? Um grande teatro de revista a céu aberto, sem distância
entre os atores e a plateia, com um enredo fragmentado. E o carnaval
começa a passar em revista os acontecimentos do ano anterior.
Claro que
há músicas sobre vários temas mas é muito forte o traço político.
E
assim será até mais ou menos 1960, quando o carnaval se torna uma festa
assistida, não mais bailada nem cantada. Neste período o carnaval faz
uma crônica social. Com algumas exceções, sua música não é adulatória. É
muito mais crítica e irreverente, brincalhona, debochada.
247 – Isso permite dizer que o samba foi o gênero que mais produziu músicas com narrativas políticas em suas letras?
Franklin Martins –
Não. Até porque carnaval tem mais marchinha do que samba. Mas é uma
coisa geral. A música caipira, por exemplo, que nada tem a ver com o
carnaval, produziu muita música política. Mas por outra vertente. A
música caipira e o repente sempre contam uma história e por isso têm
letras imensas. E ao contá-la se referem ao contexto em que os fatos se
passam, inclusive ao contexto político.
A primeira música caipira sobre
política que foi gravada é de 1929. Quando o gênero aparece, as
gravadoras não acreditam que venderá discos mas o Cornélio Pires foi lá e
disse: “eu banco”. Ele era dono de uma companhia humorística que
circulava pelo interior de São Paulo e mesmo de outros estados. Ele
mandou gravar seis discos, com tiragem de cinco mil copias cada um, o
que era espetacular para a época, e passou a vendê-los em seus shows.
Vendeu tudo. As gravadoras perceberam que havia ali um filão e dois anos
depois muitas duplas caipiras estavam gravando discos. O Cornélio Pires
compôs uma música sobre a revolução de 1924, que vai desembocar na
Coluna Prestes. Ela foi gravada mais tarde. Sobre a Revolução de 30
apareceram uma dez ou 15 músicas caipiras. Então, todos os gêneros
produziram canções de fundo político: o samba, o repente, o xote, o
baião, as toadas gaúchas, todos eles. Depois virá a MPB. E com isso
teremos uma cultura musical que tem o pendor para a crônica social e
para a crônica politica.
247 – O Getúlio é o presidente que inspirou o maior numero de músicas?
Franklin Martins –
Eu diria que sim. Mas há dois Getúlio. Eu diria até que há três. Tem o
Getúlio da Revolução de 30, sobre a qual, como disse, foram feitas
muitas musicas. A partir de 1937 temos outro Getúlio, o do Estado Novo,
que inspira muita música de adulação. E depois de 1950 temos o Getúlio
líder nacionalista e dos trabalhadores. Ele tinha uma percepção da
importância da música, tanto que na fase da ditadura algumas foram
encomendadas ou estimuladas. Na campanha eleitoral de 1950 há uma enorme
produção musical relacionada com a figura do Getúlio. Não eram gingles,
como os de hoje, eram músicas de três minutos, quase sempre autorais.
A música João Paulino, que fala do velhinho gorduchinho que
anda de lá para cá, não foi encomendada.
E depois do suicídio dele
houve também uma profusão de músicas. Vale recordar que só entram na
pesquisa as músicas compostas no calor dos fatos. As que foram compostas
muito tempo depois, evocando fatos passados, não entram.
247 – E nos momentos de censura e repressão, a produção de músicas políticas diminuiu?
Franklin Martins –
Não. Ela vai encontrar caminhos. No Estado Novo há um período em que
realmente ocorre uma estagnação, com exceção da produção laudatória.
Vai basicamente de 1937 a 1942. Mas vem a Segunda Guerra, a música
começa a falar disso, estimulando a entrada do Brasil na Guerra, batendo
de frente com o fascismo e o núcleo pró-nazista que havia dentro do
governo. E isso desemboca na luta pela redemocratização.
Repare só: no
início as músicas louvam o Getúlio como grande timoneiro, aplaudem o
envio de tropas para a guerra mas logo isso evolui para a defesa da
democracia. Já no período da ditadura militar nós temos uma música mais
política na primeira fase, quando ainda não existe o terror de Estado,
embora haja censura, prisões, cerceamento, cassações etc. Nesta primeira
fase a música ainda resiste de forma mais frontal. Mas a partir da
edição do AI-5, ou temos músicas com letra duplex, como se dizia na
época, muito metafórica, permitindo duas ou mais leituras, ou aquele
artifício de registrar uma letra para gravação mas cantá-la de modo
diferente em apresentações ao vivo. Surgem também algumas músicas de
apoio ao regime, sobretudo na fase de 1970 a 1973, como“Este é um país que vai pra frente” e “Eu te amo, meu Brasil”,
louvores a grandes obras como a ponte Rio-Niterói e a Transamazônica e
coisas do gênero.
Nem eram músicas encomendadas. Havia clima para isso
porque a grande imprensa ainda era neutra ou simpática à ditadura, os
grandes grupos econômicos apoiavam, havia uma grande asfixia não só da
liberdade de expressão como do pensamento crítico de maneira geral.
247 – Onde entram os festivais?
Franklin Martins –
Os festivais têm um peso importante a partir de 1966 mas aí vem o AI-5,
ocorre uma tentativa de sobrevivência mas logo aquilo acaba.
Mas
começam as denúncias de tortura e de abusos e a partir de 1974 isso vai
ficando mais nítido e se refletindo nas letras. Teremos até músicas que
falam de Marighela e de Lamarca. É impressionante que isso tenha
ocorrido naquelas condições.
Há músicas que falam da morte do Edson do
Luiz e até da guerrilha do Araguaia. Podem ter sido censuradas mas
foram compostas naquele contexto e gravadas depois. A partir de 1976/77
as letras vão se tornando cada vez mais explícitas e cada um se vale de
um recurso contornar as dificuldades. O Chico Buarque registra
músicas com o nome de Julinho da Adelaide, por exemplo.
O Paulo Sergio
Pinheiro coloca uma música política dele na pasta do Agnaldo Timóteo,
pois a censura não costumava implicar com os cantores românticos.
O
livro aborda isso. Alguns, entretanto, não conseguem mais cantar nem
gravar, como é o caso do Taiguara. São calados pela ditadura. Então, há
casos muito diferentes nesta fase, que coincide com o momento em que o
regime entra na defensiva e o movimento democrático avança, a partir de
1976/77. E a partir daí a resistência é cada vez mais frontal, inclusive
na música. Em 1978 a censura prévia termina e aí tudo se acelera em
direção á democracia.
247 – Se na ditadura, apesar
do cerceamento, houve resistência musical, no pré-64, apesar de toda a
ebulição social, não houve muita música política. Teria sido assim
porque a bossa-nova estava no auge e tinha letras de viés mais
intimista?
Franklin Martins – A
bossa nova de fato produziu pouca música política. Seu auge mesmo se
dá entre 1958 e 1961. Em 1963/64, muitas pessoas que haviam passado pela
bossa nova começam a produzir outro tipo de música. Vinicius de Morais,
por exemplo, começa a fazer muitas letras sobre a questão da negritude e
já não fazia bossa nova. Aproximou-se do samba. Sergio Ricardo, Carlos
Lyra e Francis Hime também passaram pela bossa nova e seguiram outros
caminhos.
E houve um fenômeno de enorme importância na fase 62-64, às
vezes subestimado, que foi o CPC da UNE, o Centro Popular de Cultura,
que tem uma produção não tão vasta – produziu um disco, uma peça, o Auto dos 99%,
que é um musical, mas o CPC aglutina uma série de artistas que, logo
depois do golpe, vão fazer o Teatro de Opinião e tomar outras
iniciativas culturais importantes.
É preciso recordar também que muitas
músicas foram feitas no curso da campanha da legalidade para garantir a
posse de Jango, em 1961, e relacionadas com o plebiscito de 1963, para a
restauração o presidencialismo. Encontrei três músicas sobre a campanha
da legalidade.
247 – Quais são?
Franklin Martins –
Tem o Hino da Legalidade, que é do Pereio e era tocado nas transmissões
da cadeia de rádio da legalidade. Há uma música do Zé Kéti e do Carlos
Lyra, e uma outra do Juca Chaves. Não podemos esquecer a importância do
Juca Chaves neste período, compondo músicas políticas em abundância.
“Lugar de café é na mesa, Lacerda em outro lugar”.
Ele é a favor da
legalidade e defenderá o presidencialismo no plebiscito. Talvez ele
tenha sido o compositor que mais produziu músicas políticas naquele
período.
247 – O presidente Lula inspirou mais músicas políticas antes de se tornar presidente do que depois, não?
Franklin Martins –
Não posso afirmar com certeza porque minha pesquisa vai até 2002. Eu
precisava fazer um corte histórico, se não isso não acabava nunca. E
com isso, fixei um período de 100 anos, de 1902 a 2002. Mas tem muita
música sobre o Lula antes de sua chegada à presidência, refletindo sua
vida de sindicalista, a criação do PT e todas as suas campanhas
eleitorais.
247 – Você diria que depois da redemocratização a música se voltou para questões mais cotidianas e se afastou da política?
Franklin Martins –
Não concordo mesmo. De 1964 até 1985, o gênero que mais produziu musica
política foi a MPB. Um gênero discutível enquanto tal, porque comporta
uma série de subgêneros.
Mas no final dos anos 1970 o rock começa a
ganhar força. E nos anos 1980 ele terá um peso muito grande,
praticamente ocupando o papel que antes era da MPB.
Já na década de
1990 o rock praticamente sai de cena e o que terá peso será o rap e o
funk, com uma abordagem que eu costumo chamar de “bronca social”. Não é
como o samba, que fala do cotidiano de uma forma brincalhona, que até
faz críticas mas evitando uma confrontação. Já o rap, o funk, o
samba-reggae, o axé e o mangue-beat fazem músicas de confrontação direta
com um regime de injustiça social, de falta de oportunidades e que
falam da violência policial contra os chamados três pês: prostitutas,
pobres e pretos.
247 – E isso não é dirigido especialmente a um partido ou força política, como na ditadura, mas ao sistema…
Franklin Martins –
Sim, o confronto é com sistema, embora estes movimentos musicais batam
mais em alguns partidos que em outros. Num primeiro momento criticam
mais o PMDB, depois o PSDB, ou melhor, o governo do Fernando Henrique. O
Lula e o PT são mais poupados nesta fase. A música caipira/sertaneja
também produz alguma coisa nesta linha. Então a sequência é: MPB, rock e
depois este conjunto de novos estilos, como o rap, o funk, o axé e
outros, que é a música de confrontação com o sistema de forma mais
ampla. Ela bate com a polícia, o Judiciário, a mídia, a falta de
oportunidades, bate com tudo. Na década de 1990, o destaque é para esta
música das quebradas.
247 – Cada livro da triologia terá seu respectivo CD?
Franklin Martins –
Não. Eu desisti do CD por questões relacionadas ao direito autoral.
Seria preciso liberar 1.100 gravações. Seria impossível, do ponto de
vista financeiro. O livro sairia a um preço impraticável. A solução que
encontrei foi criar um site: www.quemfoiqueinventouobrasil.com.
Lá estarão os streammings de todas as músicas citadas, que poderão ser
ouvidas mas não baixadas. E mesmo assim, com limitações.
As gravações
que já caíram no domínio público estão na íntegra. Das que ainda não
caíram em domínio publico haverá um trecho, 30 segundos, que é um padrão
convencionado aqui e lá fora. Se o internauta gostar e quiser ouvir a
música inteira, irá procurar em outra fonte.
E também estarão na
íntegra as gravações especiais que não envolvem direitos, como jingles
de campanhas, hinos de partidos, músicas de movimentos sociais etc.
Vários autores de músicas ainda protegidas pelo direito autoral
liberaram obras para a reprodução integral no site. Espero que o número
deles aumente. Acho que isso abre mercado. Muitas canções ainda
desconhecidas poderão ser regravadas, utilizadas em trilhas de filmes e
documentários e outras produções derivadas.
247 – Você acredita que este
trabalho poderá vir a ser utilizado também como ferramenta pedagógica
no ensino da História do Brasil?
Franklin Martins –
Não tenho nenhuma pretensão neste sentido mas o trabalho estará à
disposição da sociedade. Foi um trabalho que me consumiu muito mas me
deu muito prazer, com o qual aprendi muito e que de fato oferece
elementos para uma série de outras atividades.
Espero que a sociedade
faça dele o melhor uso possível. Com a publicação, encerro um ciclo.
Depois de 18 anos envolvido com o assunto, em alguma hora é preciso
parar.
Original disponível em: (http://www.brasil247.com/pt/247/cultura/185779/Franklin-foi-a-m%C3%BAsica-que-inventou-o-Brasil.htm). Acesso
em: 21/jun/2015.
Um comentário:
Muito interessante essa entrevista. Valeu!
http://mundodemusicas.com/
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