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28 de abril de 2015, 16h43
A contribuição de Fachin para o Direito Civil Constitucional brasileiro
28 de abril de 2015, 16h43
O
movimento de constitucionalização do Direito na Europa teve início com a
reconstrução do continente após a 2ª Guerra Mundial, por exemplo, na
Alemanha (Lei Fundamental de 1949), seguiu para a Itália (Corte
Constitucional criada em 1956), para Portugal (Constituição de 1976) e
para a Espanha (Constituição de 1978).
No Brasil, ainda que a
Carta de 1946 já apresentasse nítida roupagem social-democrata, com
incorporação de direitos sociais sem ignorar importância de preservação
do núcleo de direitos individuais e garantias da liberdade, é a partir
da Constituição Federal de 1988 e dos movimentos doutrinários da década
de 1990 que a constitucionalização ganha impulso, especialmente com o
fomento da ideia de que as normas-princípios fundamentais possuem força
normativa, vinculam os institutos e instituições jurídicas, o Estado e
os particulares e se projetam em toda a legislação infraconstitucional.
Esse
movimento provocou verdadeira mudança de paradigma no modo de realizar o
Direito Civil, que não mais se restringiu a uma exegese fechada e
pretensamente asséptica, demonstrando a completa inadequação de
formações teóricas, quase sempre restritas a conhecer as estruturas
legais de suas disciplinas de estudo e de atuação[1].
Pavimentadas as bases teóricas para a Virada de Copérnico,
Luiz Edson Fachin e Gustavo Tepedino passaram a liderar grupos de
pesquisa em Direito Civil Constitucional, respectivamente, na UFPR e na
UERJ, e têm, juntamente com os seus integrantes, publicado livros e
artigos sobre a temática, por exemplo, com a coleção Diálogos sobre Direito Civil.
Posteriormente, Paulo Lôbo, na UFPE, no ano de 2012, e Giselda
Hironaka, na USP e FADISP, em 2015, incorporam-se a essa comunhão de
pesquisadores.
Assim, a virada copernicana na civilística
pátria tem início no âmbito do debate em que se entrelaçam os direitos
fundamentais, os novos direitos (como o direito do consumidor) e as
relações existenciais no âmbito das relações interprivadas, naquilo que
passa a compor o catálogo mínimo do direito civil constitucional
brasileiro.[2]
Em seus estudos, Fachin propõe três dimensões para a análise da constitucionalização do Direito: formal, substancial e prospectiva – em que a dimensão formal representa aquilo que está positivado na Constituição e no Direito Constitucional positivo; a dimensão substancial
deriva da dimensão normativa principiológica constitucional, seja
explicitamente (ex.: função social da propriedade), seja implicitamente
(ex: função social do contrato); a dimensão prospectiva como
dimensão propositiva e transformadora desse constitucionalizar, com a
construção de sentidos para uma necessária ressignificação dos
institutos e das instituições jurídicas, a partir da facticidade social,
como a necessidade de se ter um contrato justo e que não oprima uma das
partes contratantes.[3]
Diante
disso, evidenciam-se três superações do direito civil clássico,
consistente num sistema fechado e patrimonialista, com pouca abertura
para a principiologia constitucional, quais sejam: (i) fim do monismo
das fontes jurídicas; (ii) rejeição à rígida e exegética teoria da
interpretação e (iii) recusa da significação monolítica de figuras
jurídicas como o contrato, a família e a propriedade.[4]
Alguns
aspectos do pensamento de Fachin e que foram acolhidos pela escola
civil constitucional revelam as superações da postura tradicional.
Passou-se da codificação à constitucionalização. Nesse giro, os Códigos
Civis de 1916 e de 2002, não obstante a sua indiscutível relevância
normativa, não representam o centro do qual emana todo o arranjo
jurídico civil, cuja reconstrução permeia a interpretação de espaços
públicos e privados reconhecidos pela literatura jurídica, pela
legislação e pelos julgados, como se infere da normatividade sobre o bem
de família (legal e convencional) a sua vinculação com os direitos
fundamentais de moradia. Isso porque os direitos fundamentais assumem um
caráter prestacional dos cidadãos perante o Estado.[5]
Essa
perspectiva difere daquela construída pela codificação civil pretérita
(de 1916), uma vez que a preocupação se centrava, em regra, na tutela do
patrimônio. Agora a perspectiva civil constitucional volta-se muito
mais à existencialidade (do ser humano), cujo patrimônio é um fator que
potencializa esses aspectos existenciais. Um exemplo: a superação da
ideia de sociedade de fato – categoria jurídica construída para
abarcar as uniões entre pessoas, mas diversas do casamento, na qual se
dividia o patrimônio adquirido onerosamente e por esforço comum entre os
companheiros - pela ideia de união estável, que abarca não somente
aspectos patrimoniais, mas, principalmente, aquela comunhão de vida
formada na relação entre companheiros e companheiras.[6]
Além
disso, como se sabe, o Código Civil de 1916 ainda conservava a relação
de desigualdade entre filhos no âmbito da família, com a classificação
de filhos legítimos (advindos de uma relação matrimonial) e ilegítimos
(fora da relação matrimonial), panorama jurídico modificado radicalmente
com a CF/88 e com o CC/02, a partir da ideia de igualdade entre os
filhos, independentemente de derivarem de uma relação matrimonial.[7]
Outro
ponto a se destacar é a força da tutela dos direitos individuais,
direitos individuais homogêneos, direitos coletivos e direitos difusos
(CDC, art. 81), com a tutela contratual abarcando direitos existenciais e
patrimoniais (como no caso dos contratos firmados com operadoras de
sáude), lastreados na função socioambiental do contrato, da boa-fé e da
equivalência material, que moldam a liberdade de contratar, a contratual
e relativizam a força obrigatória dos contratos e o seu efeito
interpartes.[8]
Saliente-se,
também, a importância de direitos e deveres que se manifestam e se
impõem a possuidores e a proprietários na utilização do bem móvel ou
imóvel, com esteio nas disposições constitucionais (CF/88, arts. 5º,
XXIII, 170, 182, etc.), além de dispositivos constitucionais e
infraconstitucionais relativos à funcionalidade social, econômica e
ambiental da propriedade e da posse, construção que permitiu, por
exemplo, a edição do Enunciado 84/STJ.[9]
A
tutela do patrimônio é repensada, com Fachin, interpretando-se o art.
548 do Código Civil (impossibilidade de doação de todos os bens pelo
doador), construindo uma teoria baseada na dignidade da pessoa humana,
que tutela um patrimônio mínimo necessário à existência digna, em que a
pessoa não pode se privar seja pelo exercício da autonomia privada, seja
por atos de outrem como a execução por dívidas, sendo este patrimônio mínimo verificado em cada caso concreto.[10]
Essas contribuições do direito civil constitucional e de Luiz Edson Fachin demonstram a virada copernicana
que impede a colonização da espacialidade pública em relação a
espacialidade privada e vice-versa, em uma perspectiva de diálogo entre
elas, a fim de tutelar os sujeitos de direitos concretamente, sempre se
preocupando com um Direito includente e que reconheça situações antes
postas à sua margem.
Por tudo isso, e muito mais, Fachin preenche,
com sobras, o requisito de notório saber jurídico para compor a Suprema
Corte brasileira. Quanto à reputação ilibada, a trajetória de vida do
civilista paranaense, seus valores e ideais, seu forte senso ético e sua
preocupação com o próximo deixam absolutamente fora de dúvidas que
Fachin não apenas preenche o requisito, como será um grande ganho
republicano para o Supremo Tribunal Federal.
De resto, é preciso
ter sempre bem claro que, no Estado de Direito, estripulias políticas
não podem macular os requisitos constitucionais.
P.S. Aos
estimados leitores, informo que em minha próxima coluna retomarei a
segunda parte dos estudos de superação positivismo jurídico, fechando,
assim, o ciclo de reflexões sobre o tema.
[1] FROTA, Pablo Malheiros da Cunha. Reflexões sobre a constitucionalização do Direito Civil. Revista Trimestral de Direito Civil, v. 49, p. 117-139, 2012.
[2]
FACHIN, Luiz Edson. Los derechos fundamentales en la construccíon del
derecho privado contemporáneo brasineño a partir del derecho
civil-constitucional. Revista de Derecho Comparado, v. Nº.15, p. 243-272, 2009, p. 244.
[3] FACHIN, Luiz Edson. Direito Civil: sentidos, transformações e fim. Renovar: Rio de Janeiro, 2015, p. 9.
[4]
FACHIN, Luiz Edson. Los derechos fundamentales en la construccíon del
derecho privado contemporáneo brasineño a partir del derecho
civil-constitucional. Revista de Derecho Comparado, v. Nº.15, p. 243-272, 2009, p. 244.
[5]
FACHIN, Luiz Edson. Los derechos fundamentales en la construccíon del
derecho privado contemporáneo brasineño a partir del derecho
civil-constitucional. Revista de Derecho Comparado, v. Nº.15, p. 243-272, 2009, p. 245.
[6] FACHIN, Luiz Edson. Teoria Crítica do Direito Civil. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2012.
[7] FACHIN, Luiz Edson. Teoria Crítica do Direito Civil. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2012.
[8] FACHIN, Luiz Edson. Teoria Crítica do Direito Civil. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2012.
[9] FACHIN, Luiz Edson. Teoria Crítica do Direito Civil. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2012.
[10] FACHIN, Luiz Edson. Estatuto Jurídico do Patrimônio Mínimo. 2. ed. Rio de Janeiro, RJ: Renovar, 2006.
Marco Aurélio Marrafon é
presidente da Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst),
professor de Direito e Pensamento Político na Universidade do Estado do
Rio de Janeiro (UERJ).
Revista Consultor Jurídico, 28 de abril de 2015, 16h43
Original disponível em: (http://www.conjur.com.br/2015-abr-28/constituicao-poder-contribuicao-fachin-direito-civil-constitucional). Acesso
em: 17/mai/2015.
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