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domingo, 15 de fevereiro de 2015

"Superpotências não têm sempre a palavra final" (Julian Assange. Entrevista a Luiz Antônio Araujo)

15/fev/2015...

Julian Assange: "Superpotências não têm sempre a palavra final"

Fundador do site WikiLeaks, responsável pelos maiores danos à diplomacia secreta desde a I Guerra Mundial, avaliou o papel histórico dos vazamentos em entrevista à ZH

14/02/2015 | 15h04
Julian Assange: "Superpotências não têm sempre a palavra final" Sunshine Press Productions/
Desde 2012, Assange vive como asilado na embaixada do Equador, em Londres, para escapar da extradiçãoFoto: Sunshine Press Productions
Poucos têm tantos motivos para acreditar no poder da internet como o australiano Julian Assange, 43 anos. Fundador do site WikiLeaks, responsável pelos maiores danos à diplomacia secreta desde a I Guerra Mundial com a divulgação de documentos confidenciais dos Estados Unidos, ele vive há quase três anos num escritório convertido em apartamento na embaixada do Equador, em Londres. É lá que trabalha, recebe amigos – entre eles, a cantora Lady Gaga, a estilista Vivienne Westwood e o diretor de cinema Oliver Stone – e participa de atividades e debates via teleconferência no mundo inteiro.

Sua mais recente investida é Quando o Google Encontrou o WikiLeaks, relato de seu encontro com o presidente executivo do Google, Eric Schmidt, em 2011, na Grã-Bretanha. Na visão de Assange, a megacorporação presidida por Schmidt tornou-se uma espécie de CIA do Vale do Silício, vigiando o ciberespaço a serviço do governo americano. 

Em entrevista por e-mail a Zero Hora, entre domingo e quinta-feira, o arquiteto dos vazamentos do século avaliou o papel histórico do WikiLeaks.

O senhor promoveu o maior vazamento de documentos diplomáticos confidenciais desde que o acordo franco-britânico para partilha do Império Otomano foi parar nas capas dos jornais em 1917. Naquela época, como hoje, houve indignação, mas, de fato, pouca coisa mudou. O senhor acredita que teve sucesso?
Essa tese de que “muito pouco mudou” é simplesmente impossível de ser sustentada. Ela é amplamente desmentida pelas evidências. Foi posta em circulação, em largas quantidades, pelos apologistas do governo americano, como forma de desviar atenção de nossas publicações. Ao mesmo tempo, as mesmas pessoas estavam fazendo avaliações catastróficas sobre as consequências de nossas publicações para a segurança nacional. E então eles se contradizem com suas próprias palavras. É fácil desmenti-los. Quais são os parâmetros de mudança aqui? Nada mudou desde 2010? Se as coisas mudaram nos últimos quatro anos, quanto disso foi por nossa causa? O que se deseja é apenas “mudança”, ou resultados benéficos particulares? Se você se refere à última opção, nossas publicações têm muito a dizer em sua defesa.

O senhor pode dar exemplos?
Tome as ações judiciais. Nossas publicações de 2010 se tornaram a base para numerosas ações judiciais por vítimas de crimes e abusos de guerra pelos Estados Unidos, do Tribunal Europeu de Direitos Humanos aos tribunais britânicos, ao Tribunal Internacional Criminal para a ex-Iugoslávia e ao Tribunal Penal Internacional. Só isso é “mudança” – mudança muito real para pessoas reais, que eram incapazes de levar seus casos à justiça e fazer sua defesa, e agora o são. E há o grande número de grupos de direitos humanos e organizações da sociedade civil para os quais nossas publicações fizeram uma grande diferença. Grupos como Iraq Body Count (Contagem de Corpos no Iraque), que pôde usar nossos War Logs para calcular o verdadeiro número de mortos na Guerra do Iraque, ou Public Interest Lawyers, que foi capaz de usar os documentos como fonte para seus clientes em casos de prisão e tortura. Redes de ativistas de direitos autorais como La Quadrature du Net, que usou nossos despachos para investigar a utilização de lobbies corporativos secretos para introduzir restrições ao comércio e impor leis favoráveis aos Estados Unidos. Jornalistas investigativos como o Bureau de Jornalismo Investigativo, que usou nossos materiais para reconstruir a narrativa de sérios abusos contra os direitos humanos.

Qual foi o impacto histórico do WikiLeaks até agora?  
Nossas publicações também mudaram a forma como o jornalismo é feito. Antes do WikiLeaks, não havia precedente real para trabalho em larga escala com bases de dados. Desde que começamos a fazer isso, outros nos copiaram. Não havia precedente de amplas colaborações jornalísticas de interesse público entre jornais comerciais concorrentes. Demos início a isso, e outros estão fazendo o mesmo agora. Antes do WikiLeaks, ninguém dava importância a informações de segurança para jornalistas, ninguém pensava em usar criptografia para facilitar grandes vazamentos de fontes públicas. Agora essa é a única opção disponível. Mostramos o caminho para se fazer isso, e agora, como consequência também das revelações de Edward Snowden, que se apoiam nos avanços que possibilitamos, jornalistas estão levando isso a sério. Isso é um mar de mudança na cultura do jornalismo. Colocando um grande corpo de correspondência diplomática em domínio público, o Despachogate e suas sequelas elevaram o nível de alfabetização política para nossa geração. Nos últimos quatro anos, jornais de todo o mundo têm usado diariamente nossos materiais para apoiar suas apurações e noticiar suas consequências, em vez de correr para os analistas oficialistas. Essa é uma grande mudança em como nossa civilização entende suas circunstâncias históricas, e pode-se esperar que produza mudanças em cascata no futuro. Há também a imensurável, mas previsível consequência de nossas publicações, que é o fato de, depois das publicações, funcionários do governo americano saberem agora que cada palavra que escrevem pode um dia se tornar pública. Esse é um forte desestímulo contra os tipos de abusos sobre os quais podemos ler em seus despachos. Eles agora sabem que o segredo não vai proteger quem age de forma indevida. Essa é uma grande mudança, porque funciona como uma checagem da conduta dos burocratas do poder americano. E essas são apenas algumas das grandes mudanças. Mas há também aquelas mais particulares. Muitas pessoas argumentaram que nosso trabalho produziu mudanças muito concretas no mundo. Por exemplo, a Anistia Internacional e a BBC disseram que nosso trabalho contribuiu para o início da Primavera Árabe, porque nossas publicações foram uma causa das manifestações no final de dezembro de 2010 na Tunísia, quando a revolução começou. Os detalhes completos disso são dados no meu livro, mas muitos na revolução tunisiana, e mesmo um ex-ministro no governo de Ben Ali, disseram que nossas publicações “quebraram a espinha do sistema de Ben Ali”. Esses acontecimentos contribuíram para grandes mudanças históricas, nas quais outras forças intervieram, e desde então houve mudanças em cascata em todo o mundo. Nem toda mudança foi boa, mas uma parte foi boa. Isso é mudança?

Como as suas ações e as do WikiLeaks serão lembradas daqui a cem anos?
Você pode também afirmar, como Glenn Greenwald disse, que o WikiLeaks ajudou a pôr fim à Guerra do Iraque. Até o fim de 2011, o governo Barack Obama estava pensando em renovar seu acordo de disposição de forças com o governo iraquiano para assegurar imunidade aos soldados americanos no Iraque em relação a possíveis processos judiciais. Publicamos um despacho que revelou que soldados americanos tinham invadido uma casa, executado mulheres e crianças com tiros na nuca e então solicitado um ataque aéreo para destruir as provas. 

E qual foi a consequência?
O despacho produziu grande reação do público no Iraque e foi citado pelo então primeiro-ministro Nouri al-Maliki como uma das razões para não renovar o acordo de disposição de forças. Diante da perspectiva de soldados americanos serem processados por crimes de guerra em tribunais iraquianos, Obama retirou suas tropas do Iraque. Há incontáveis exemplos desse tipo de coisa – tantos que seria preciso o trabalho de muitas pessoas para fazer um levantamento de tudo. É sempre possível discutir sobre causas na história, porque a história é complexa. Mas podemos realmente olhar para tudo isso e dizer “O WikiLeaks não mudou nada?”. Não sei exatamente como o WikiLeaks será lembrado daqui a um século, mas creio que seu lugar na história já está bastante assegurado.


Da escadaria da Catedral de St. Paul, em Londres, Assange fala a manifestantes que protestam contra corporações financeiras, em outubro de 2011 (Foto: LEON NEAL, AFP, BD, 15/10/2011)

O ex-técnico da CIA Edward Snowden está na Rússia desde que seu papel de fonte do WikiLeaks foi descoberto. Não é suspeito pregar transparência e respeito ao primado da lei em relação às políticas dos Estados Unidos e, ao mesmo tempo, ser associado ao regime de Vladimir Putin?
Isso é propaganda construída pelos apologistas da vigilância massiva dos Estados Unidos a fim de desviar atenção das indesculpáveis revelações sobre a espionagem massiva da Agência Nacional de Segurança (NSA, na sigla em inglês) pelo mundo, incluindo o Brasil. Eu sei o que ocorreu, porque fui parte disso. O WikiLeaks tirou Edward Snowden de Hong Kong. O WikiLeaks conseguiu obter ofertas de asilo a ele por parte de múltiplos países da América Latina. O único caminho seguro para seu voo de asilo era pela Rússia. Ele teria de cruzar ou contornar o Oceano Pacífico. O único ponto de  reabastecimento para aeronaves comerciais à disposição era no Havaí, e o Havaí é um Estado americano, logo, não era seguro passar por lá. Assim, era necessário que ele passasse pela Rússia. Enquanto ele ainda estava na área de trânsito do aeroporto na Rússia, o Departamento de Estado americano, num ato de monumental incompetência, cancelou seu passaporte, impedindo-o de deixar a Rússia. Ele ficou 40 dias na área de trânsito com a nossa jornalista Sarah Harrison. Fizemos mais de 20 solicitações de asilo em seu nome na Europa Ocidental e mesmo ao Brasil, todas recusadas, muitas delas não sem pressão documentada do governo americano. Em consequência, fizemos um pedido de asilo à Rússia, que a Federação Russa, corretamente e para seu crédito, e com considerável custo diplomático, aceitou. Os acontecimentos decorrentes disso, notadamente o fechamento do espaço aéreo europeu ao avião do presidente Evo Morales, revelaram a subordinação da Europa Ocidental aos Estados Unidos, e o medo que muitos países têm dos Estados Unidos, incluindo o Brasil. Longe de ser um pretexto para atacar a Rússia ou Snowden, esse é, de fato, um exemplo de coisa certa feita pela Rússia, pelo que deve ser elogiada, e o resto do mundo condenado (exceto os poucos países da Aliança Bolivariana da América Latina que, sim, ofereceram asilo a Snowden).

Por que o senhor decidiu focar seu livro no papel do Google em vez de mirar o arco maior da indústria de mídia? 
O Google tem sido, por muitos anos, a mais influente organização de mídia no mundo, mas não é apenas um gigante da internet. Seu negócio fundamental é a vigilância massiva de seus usuários. Está comandando o desenvolvimento da vigilância comercial e da indústria de publicação e distribuição na internet. Suas conexões com o governo dos Estados Unidos também aproximam sua trajetória do lugar do poder americano no mundo. Assim, se vamos procurar um exemplo de como a civilização está se desenvolvendo nessa área, o Google é o melhor exemplo a tomar.

Na representação do Equador, em Londres, Assange denuncia a “caça às bruxas” do presidente Barack Obama contra o WikiLeaks, em agosto de 2012 (Foto: CARL COURT, AFP, BD, 19/08/2012)
O seu livro descreve uma cadeia de eventos globais desde 2009 na qual, apesar do papel chave dos Estados Unidos e seus aliados em ONGs, corporações e grupos ativistas, raramente as coisas ocorrem como previsto. No final, o poder bruto sempre tem a palavra final – e isso não ocorre sempre em favor das políticas de Washington. Isso poderia significar que estamos longe de uma sociedade orwelliana. O papel das novas tecnologias não está sendo superestimado?
A sobrevivência do WikiLeaks e de muitos outros pequenos e ágeis grupos mostra que as superpotências não têm sempre a palavra final. De fato, o seu poder pode ser mal empregado. O governo americano exigiu que destruamos todas as nossas publicações. Nós nos recusamos e não destruímos um único documento. Eles ergueram um bloqueio financeiro contra nós envolvendo Visa, Mastercard, Paypal, Bank of America etc. Nós destruímos a maior parte desse bloqueio na justiça europeia. Eles insistem que nós paremos de receber material de fontes do governo americano. Nós não o fizemos. Nós lutamos de igual para igual com a NSA e o FBI no caso Edward Snowden e conseguimos tirá-lo de Hong Kong e garantir-lhe asilo na Rússia. De qualquer forma, esse sucesso minou o prestígio desses órgãos, que, lembremo-nos, existem graças a sua habilidade de projetar uma aparência de poder, e que agora tentam recuperar essa aparência dificultando as coisas para o WikiLeaks e para mim. Assim, é possível mesmo para uma pequena editora internacional enfrentar os órgãos de poder da única superpotência mundial. De qualquer forma, o exercício do poder dos Estados Unidos está, com frequência, longe de ser bruto. A hegemonia dos Estados Unidos não consiste simplesmente em ameaças de invasão ou sanções, mas também de incentivos e posicionamento estratégico. Enquanto todos podem imaginar um ataque de drone ou uma explosão termonuclear, mais frequentemente o poder americano é exercido de uma maneira muito sofisticada, envolvendo a estrutura das instituições e dos acordos globais, de suas criações do século 20 como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e a Organização das Nações Unidas (ONU) a equivalentes mais modernos no sistema financeiro eletrônico internacional e em regimes legais globais, como o Acordo Comercial de Serviços (Tisa, na sigla em inglês), a Aliança Transpacífica (TPP) e o Acordo de Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento (TTIP). Inclua nisso a incorporação de atores tecnológicos chave como o Google em seus sistemas de patrocínio e influência. Essa sofisticada inter-relação entre poder brando e duro, entre ameaças, induções e estrutura, é fartamente analisada no livro por meio da análise do Google como exemplo. Ali você pode ver por que a centralidade dos Estados Unidos na internet lhe dá vastas novas avenidas para o exercício do poder indireto, e por que isso não pode ser ignorado.

Num episódio de Os Simpsons, em 2012, Assange recebe os heróis em Outlands, um país onde não há regras. A audiência chega a 5,7 milhões de pessoas (Foto: Reprodução)

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