13/mai/2014...
Explicação do titulo da coluna
Lenio Luiz Streck é procurador de Justiça no Rio Grande do Sul, doutor e pós-Doutor em Direito.
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O dia em que o TST conheceu um recurso... de ofício!
27 fevereiro 2014
Senso Incomum

Platão dizia que a linguagem pode ser um remédio ou um veneno. O titulo é
deliberadamente provocativo, fazendo alusão ao "conhecimento de oficio"
do Recurso de Revista pelo TST. Não é(ra) para geral mal entendidos. É
óbvio que não há/houve conhecimento de "oficio". Aliás, como é possível
perceber, em nenhum lugar do texto há menção a isso. "Ofício" quer
dizer: "recebo a hora em que quero e porque assim entendo que devo
fazer, mesmo que não estejam cumpridos os requisitos legais". Não pensei
que os estagiários tivessem que levantar a placa com os dizeres:
"Ironia"! Algo como conceder Habeas Corpus de ofício... Simples.
Explicando o caso
Li nesta ConJur a notícia TST reduz valor de dano moral em recurso rejeitado.
Ou seja, conforme a novel decisão, mesmo nos casos em que o Recurso de
Revista que pede a revisão da indenização por danos morais não é conhecido
porque não preenche os requisitos de admissibilidade, o Tribunal
Superior do Trabalho pode reduzir o valor da indenização se considerar a
quantia abusiva. Este entendimento foi adotado pela 6ª Turma do
Tribunal Superior do Trabalho ao analisar recurso do Walmart contra
decisão do Tribunal Regional do Trabalho da 9ª Região (PR) que
beneficiou um ex-funcionário. Os ministros reduziram a indenização a ser paga por conta das revistas feitas por meio de detector de metais de R$ 25 mil para R$ 1 mil.
E sabem qual o dispositivo invocado para “conhecer-sem-conhecer” a revista? O artigo 5º, inciso V, da Constituição, que diz: “é
assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da
indenização por dano material, moral ou à imagem”. Confesso que não
entendi. Em que sentido e em que medida esse dispositivo tem algo a ver
com a espécie em discussão? Melhor dizendo: até onde vai o grau de
ativismo de nosso Judiciário?
Tenho batido duro nesse fenômeno
chamado “ativismo judicial”. Não é o mesmo que judicialização. Para
deixar claro: enquanto a judicialização é contingencial, porque acontece
em qualquer país do mundo, o ativismo é behaviorista, porque
depende da vontade do poder, portanto, da pura subjetividade do julgador
(é, pois, comportamental). No fundo, faz-se uma versão daquilo que
Kelsen desprezava e/ou deixava (talvez um desprezo epistemológico) de
lado: o fato de que a decisão judicial é um ato de vontade (que eu
acrescento: vontade...de poder — a velha Wille zur Macht
nietzschena). Kelsen era um pessimista moral. Achava que os juízes eram
incontroláveis. Por isso dedicou à interpretação e aplicação do Direito
apenas algumas páginas. No finalzinho da TPD, está o mal-compreendido
capítulo oitavo. Por isso elaborou a sua Teoria Pura do Direito, uma
teoria do andar de cima da ciência (Kelsen é um autor sofisticado; para
entendê-lo, devemos saber que ele flertou fortemente com o
neopositivismo lógico; por tais razões, a ciência do Direito é uma
metalinguagem da linguagem objeto, que é o Direito). Ele passou a se
preocupar, pois, com a ciência do direito, separando esta do direito
propriamente dito. Não separava Direito e moral, mas, sim, a ciência do
direito da moral. Claro que isso gerou uma algaravia e uma
má-compreensão daquilo que ele disse. Muitos acham que ele queria fazer
uma Teoria do Direito Puro; outros acham que ele foi o maior positivista
exegético. Ledíssimo(s) engano(s). Kelsen foi um outro tipo de
positivista, problemática que explico em vários textos, em especial em Verdade e Consenso.
Há literatura muito boa sobre Kelsen, por exemplo, o livro em homenagem
a Kelsen organizado por Elda Coelho de Azevedo Bussinguer e Julio Pinheiro Faro intitulada A Diversidade do Pensamento de Hans Kelsen (onde tem um texto meu) e o livro escrito por Gabriel Nogueira Dias, Positivismo Jurídico e a Teoria Geral do Direito — na Obra de Hans Kelsen.
E
o que o “coitado” do Kelsen tem a ver com esse ativismo do TST? Tudo,
porque a partir dele se pode compreender porque ele escreveu uma Teoria
para escapar justamente da discussão sobre atitudes voluntaristas.
Bingo. No fundo, Kelsen desistiu de enfrentar o
voluntarismo-subjetivismo judicial.
Mas muitos não desistiram.
Dworkin, Habermas e tantos outros acreditam que é possível controlar
decisões judiciais. Eu também acredito nisso. Por isso, a necessidade de
discutir a decisão jurídica, como faço em Jurisdição Constitucional e Decisão Jurídica. Qual é o busílis?
Simples: a-democracia-não-pode-depender-de-atos-de-vontade (de poder)
do tipo “decido-porque-acho-que...” ou “decido porque achei injusto...”.
Ou de decisões do estilo do velho socialismo processual, lá da época de
Menger e Klein. Poxa, como isso é velho. E anacrônico. Ou do solipsismo
judicial pregado por Oskar Bülow, que achava que era tarefa dos juízes
fazer a recepção do direito romano na Alemanha.
Ora, o direito não
pode ser aquilo que os tribunais dizem que é. O direito do trabalho não
pode ser o que o TST quer que ele seja. Fico impressionado com o
silencio da comunidade jurídica diante de tantos atos de ativismo
judicial em terrae brasilis. Somos fichinha perto de realistas
jurídicos como o americano Duncan Kennedy. Aqui, ele seria um
quase-exegeta, se me entendem o sarcasmo. E o velho Direito alternativo
não faria melhor. Só que estamos em outros tempos. Naquela época, ser
realista ou alternativista significava uma reação política contra um establishment
não democratico. Depois da Constituição as promessas ainda não
cumpridas da modernidade foram postas na Constituição. Portanto, passou a
ser tarefa dos juristas-juízes cumprirem a legislação e, em especial, a
Constituição.
Assim, na democracia, uma lei somente pode deixar
de ser aplicada em seis hipóteses (vou repeti-las, embora já tenha
delineado isso em outras colunas e nas obras que citei acima): a) quando
a lei for inconstitucional, aplicando-se os mecanismos de controle de
constitucionalidade; b) na hipótese em que, na relação texto e norma,
for cabível uma interpretação conforme a Constituição; c) quando for
caso de nulidade parcial sem redução de texto; d) quando se tratar de
resolução pelo critério das antinomias — com os devidos cuidados, é
claro; e) quando for caso de inconstitucionalidade parcial com redução
de texto e e) quando for uma hipótese de uma regra se chocar com um
princípio constitucional, claro que com os cuidados relacionados ao
pamprincipiologismo. Fora dessas hipóteses, se o julgador quiser
elaborar uma nova lei — e digo isso com toda a lhanesa e respeito — deve
se candidatar a uma vaga no Parlamento. Simples, pois.
Portanto,
não tem explicação que um tribunal deixe de aplicar a legislação
atinente à admissibilidade de Recursos (de Revista), proferindo uma
decisão ad-hoc, como foi o caso sob comento. E mais complexo
ainda é conceber que o TST invoque, para cometer uma
ilegalidade-inconstitucionalidade, a própria Constituição. E mais
paradoxal é invocar o artigo 5º, locus privilegiado dos
direitos fundamentais. O que o inciso V do artigo 5º tem a ver com a
possibilidade de se passar por cima de critérios de admissibilidade
recursal? Seria uma espécie de “cláusula geral” ou algo como uma pedra
filosofal pela qual, sempre que o TST perceba uma injustiça, possa
passar por cima de todos os procedimentos? Ou seria a hipótese da
aplicação do fator Katchanga Real?
Provavelmente nem Anton Menger aprovaria esse julgamento.
Provavelmente, nem os instrumentalistas mais ferrenhos — que gostam dos
malsinados “escopos processais” — estão de acordo com essa decisão.
A
vingar a decisão do TST, abrir-se-á espaço para uma espécie de
institucionalização do ativismo, isto é, a oficialização de uma prática
instaurada em terrae brasilis: a juristocracia ou
judiciariocracia. Qual é o problema disso? É que, fora da democracia,
sempre dependeremos de atos individuais. E isso, por si só já é
antidemocrático. E, mais do que isso, depende(re)mos de atos bondosos
(ou não, porque essa apreciação é sempre subjetiva). E, como diz meu
Amigo, psicanalista (e também jurista) Agostinho Ramalho Marques Neto,
“Deus me livre da bondade dos bons”. Porque a bondade para mim pode ser a
maldade para o outro. E vice-versa.
Regras do jogo... Como é
difícil segui-las. Nesta altura, uma leitura de Bertolt Brecht ajudaria
muito, mormente para vermos o comportamento do personagem do Juiz Azdak.
Ele julgava como queria. Qualquer coisa era motivo para ele
“fundamentar” suas decisões: do vento em sua toga ao perfume das flores.
Numa palavra, vamos ver se entendemos bem?
No caso sob comento, o TST, disse, mutatis, mutandis,
que sempre que o valor de indenização se mostrar abusivo, não importa se
o recurso foi ou não admitido... É disso que se trata, pois não? Vamos
dar nomes às coisas. Estivéssemos no common law (logo, logo estaremos...), essa seria a holding
do julgado (no caso, o princípio que se retira do julgamento). Isto
quer dizer que, a partir de agora, quem for condenado a pagar
determinado valor e o achar abusivo, basta reclamar que o TST resolve,
não importando se o recurso de revista reúne ou não os requisitos de
admissibilidade.
O problema são os efeitos colaterais disso. O
problema são as consequências, que, como diria o famoso Conselheiro
Acácio, “sempre vêm depois”. A questão é saber como funciona o controle
disso tudo. Existiria uma espécie de “abusômetro” para saber em que
momento a indenização foi muito alta? Ou um “injustômetro” para aferir o
grau de (in)justiça do valor atribuído na indenização...
E,
façamos uma brincadeira, invocando o mesmo artigo 5º da CF, só que,
agora, o inciso que trata da isonomia e da igualdade: se o TST pode
fazer isso nos casos de valor abusivo (para cima), pode fazê-lo em casos
contrários (de valor para “baixo)? Pergunta que não quer calar: se o
valor é abusivamente baixo, basta fazer um recurso (mesmo sem preencher
os requisitos) que o TST corrige?
Outra coisa: a redução em 25
vezes (de R$ 25 mil para R$ 1 mil) não configura também a violação do
princípio da proporcionalidade (uso apenas o argumento para entrar nesse
jogo decisionista)? E mais: é razoável (uso também o argumento para
entrar no jogo) que se reduza uma indenização em 25 vezes? E por que não
10 vezes? Ou 15? Ou 30? Há algum precedente nesse patamar? Neste caso,
provavelmente até quem gosta de praticar “ponderações” (argh) diria que a
decisão fere a proporcionalidade, porque sopesando os “valores” postos
em jogo.... Bom, deixa prá lá.
Eis o busílis da questão. Temos que rever uma porção de “coisas” no direito de terrae brasilis. Não somente os concursos públicos devem sofrer uma virada copernicana, um turning point. Não somente o ensino jurídico deve fazer um seriously turn. Não somente a doutrina deve voltar a doutrinar, em uma espécie de mudança de rumo (uma Wendung) no seu papel (Rolle).
Mais do que tudo isso, temos de construir as condições de possibilidade
para saber o que queremos da democracia brasileira. Ela depende de
que(m)? O que é isto — o Direito? Ele é o que os tribunais dizem que é?
Essa resposta é da comunidade jurídica, que deve, urgentemente, fazer um
desencantamento do mundo em que vive e em que sobrevive de migalhas de
sentido.
Decidir não é o mesmo que escolher. O ato de decidir
possui responsabilidade política diante da comunidade. Cada decisão —
que não pode depender do solipsimo do intérprete ou do colegiado — tem
efeitos colaterais. Se for mantida a nova “doutrina” estabelecida pela
6ª Turma do TST, todos os cidadãos da República poderão invocar uma
espécie de “juízo de equity” dos tempos em que isso ocorria na Inglaterra com o Lord Chancellor. O TST e os demais Tribunais passariam a dar equitable remedies ad misericordium (ou non misericordiam) — se me entendem a ironia. O Lord Chancellor era a instância última, “resolvendo” as pendengas a partir da equity... Só que aqui não há Lord Chancellor. E nem mais lá. Isso já passou. Os ingleses evoluíram!
Como
democrata e conservador (da lei, da Constituição e da democracia), fico
pensando cá com meus botões: por vezes, uma boa dose de formalismo
seria bom, pois não? Não prego isso, por óbvio, mas...
Revista Consultor Jurídico, 27 de fevereiro de 2014
Disponível em: (http://www.conjur.com.br/2014-fev-27/senso-incomum-dia-tst-conheceu-recurso-oficio). Acesso em: 13/mai/2014.
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