11/mai/2014...

Maio, 5 a 8 de 2014. Vinte e dois juízes federais brasileiros participam de Seminário Jurídico por mim coordenado na Universidade de Nanjing, China, das mais conceituadas daquele país. O evento foi feito sem um centavo de dinheiro público ou de patrocínio de quem quer que seja. A Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe), promoveu e pagou as despesas do curso. Cada juiz pagou sua passagem e hospedagem. O planejamento durou um ano. Pela 17ª vez conduzi juízes ao exterior, atividade que me parece de grande relevância para ampliar conhecimentos jurídicos e gerais.
Notas sobre o estudo e aplicação do Direito na China

Maio, 5 a 8 de 2014. Vinte e dois juízes federais brasileiros participam de Seminário Jurídico por mim coordenado na Universidade de Nanjing, China, das mais conceituadas daquele país. O evento foi feito sem um centavo de dinheiro público ou de patrocínio de quem quer que seja. A Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe), promoveu e pagou as despesas do curso. Cada juiz pagou sua passagem e hospedagem. O planejamento durou um ano. Pela 17ª vez conduzi juízes ao exterior, atividade que me parece de grande relevância para ampliar conhecimentos jurídicos e gerais.
A
China é um enorme, populoso e poderoso país. Em sua milenar história
teve vários imperadores em monarquias hereditárias. Em 1911 foi
derrubada a última dinastia (Quing) e implantada a República. Em 1949 o
grupo de oposição tomou o poder e implantou o regime comunista, sob a
liderança de Mao Tse Tung. Em 1978 deu-se a grande mudança. O país
abriu-se à economia de mercado, em uma simbiose de comunismo e
capitalismo. Continuou comunista na forma de governo, nos valores e nos
propósitos. Tornou-se capitalista na forma de gestão de sua economia. A
partir daí o PIB aumentou significativamente, a pobreza foi diminuída em
53% e a China tornou-se a segunda ou, quiçá agora, a primeira economia
do mundo. Evidentemente, esta nova realidade modificou toda a estrutura
do Direito.
As universidades chinesas não estão habituadas a
promover seminários para estrangeiros. A experiência evidenciou um
choque de culturas. Por exemplo, os chineses são fixados em
pontualidade. Já os brasileiros nem tanto e cada vez menos. Aula marcada
para as 9h tinha que começar na hora. Atrasos, mesmo de minutos, não
eram repostos. Quanto ao idioma, raríssimas pessoas na China, inclusive
de elevada posição social, falam inglês. Português, certamente, nem
sabem que existe. Assim, as aulas e visitas tinham que ter um
acompanhante traduzindo do chinês para o inglês. O protocolo merece
referência. Chineses são formais. Se um dá um presente o outro tem que
também ter um para entregar. E nem tudo pode ser objeto de presente.
Eles ficaram assustados e se negaram a receber uma bandeira do Brasil,
porque na China a bandeira é venerada e só se porta com ordem do governo
central.
A primeira aula do seminário foi dada pelo reitor Li
Yougen. Um homem de cerca de 50 anos, simpático e atencioso, que falou
sobre o estudo do Direito na China. Um professor universitário goza de
prestígio e recebe em torno de R$ 2 mil mensais. A universidade é
pública (o país é comunista), mas todos pagam importância próxima de mil
dólares anuais. Há dormitórios para alunos de fora e alimentação
subsidiada.
O ingresso na Escola de Direito dá-se por um teste de
avaliação nacional e os aprovados escolhem as melhores universidades
pela ordem de classificação. A graduação é dada em quatro anos e as
matérias não são diferentes das nossas: Constitucional, Civil, Processo
Civil, Penal, Ambiental etc. Para advogar é preciso passar em um exame
nacional, semelhante ao existente no Brasil. A China adota o sistema da Civil Law,
ou seja, legislação codificada. As aulas são teóricas e assemelham-se
às nossas. O professor fala, o aluno escuta e, eventualmente, pergunta. A
Escola de Direito atualmente estimula noções de prática forense,
inclusive incentivando que os professores levem seus alunos aos
tribunais, convidem expertos a participar das aulas narrando suas
experiências e, aos alunos que façam estágio.
O programa do
seminário teve aulas de Direito Constitucional, Penal, Processo Penal,
Econômico, Patentes, Ambiental e Consumidor. Algumas matérias, como
Processo Penal, têm milênios de tradição. Outras são absolutamente
novas, como o Econômico e o Ambiental.
O Direito Constitucional
revelou ter o estado chinês uma divisão de poderes totalmente diferente
da nossa. Quem manda de fato é o Poder Legislativo, porque se acredita
que é ele quem representa os interesses do povo. São 2 mil deputados
oriundos de todas as regiões. Reúnem-se somente uma ou duas vezes por
ano. No restante, quem delibera são 200 deputados divididos em comitês
criados para temas específicos. O Judiciário não é um Poder de Estado. É
apenas um órgão que julga conflitos entre as partes. Não pode declarar a
inconstitucionalidade da lei. Os direitos humanos vêm sendo objeto de
estudos e recentemente foram introduzidos na Constituição. Todavia, não
podem ser invocados em juízo. Qualquer reclamação deve ser dirigida aos
comitês do Poder Legislativo. Muitas vezes os direitos humanos são
sacrificados em benefício da economia.
O Direito Penal surpreendeu a todos. O filme Justiça Vermelha,
do diretor J. Avnet, com Richard Gere, deixou na mente dos brasileiros a
condenação à morte e a cobrança da família pelo valor gasto com a bala.
Não é esta a realidade atual. Em 1997, dezenas de crimes foram
abolidos, por exemplo, suborno até cerca de R$ 100. Lá como cá adota-se o
princípio da legalidade (nulla poena sine lege) e da
proporcionalidade na aplicação da pena. A maioridade penal dá-se com 16
anos de idade. Existe prisão perpétua e o condenado é obrigado a
trabalhar. A pena de morte no passado abrangia 68 tipos de conduta,
atualmente não chegam a dez (por exemplo, tráfico de entorpecentes,
fraude em financiamentos com prejuízo ao público, terrorismo e sequestro
com morte).
No Processo Penal o primeiro Código da China é de
1979. O duplo grau de jurisdição é assegurado a todos, mas o recurso à
Suprema Corte Popular só em caso de pena de morte. Não há foro por
prerrogativa de função. Primeiro se decreta a perda do cargo do infrator
e depois ele responde no Juízo Criminal de primeira instância. O
direito de o condenado apelar em liberdade só existe nos crimes de menor
gravidade.
O Direito Econômico teve enorme crescimento após a
abertura econômica, sendo objeto de Emenda Constitucional em 1993. O
Estado procura intervir pouco na economia e a eficiência é sempre levada
em conta. Na área das patentes, as decisões da Suprema Corte vinculam
todos os juízes, a fim de que casos iguais tenham o mesmo julgamento. Há
69 varas especializadas, 59 câmaras em tribunais de apelação e cinco
nas Cortes Superiores.
Direito Ambiental é matéria nova. Somente a
partir de 1979 surgiram as primeiras leis nesta área. As Olimpíadas de
2000 forçaram o Estado a aprimorar sua atuação neste campo. Mas o
Ministério do Meio Ambiente tem posição de menor importância perante
outros ministérios. Na realidade, a proteção ambiental subordina-se ao
crescimento econômico e o Protocolo de Kyoto só será cumprido a partir
de 2020. Por isso, os problemas ambientais são graves e é comum as
pessoas usarem máscaras para proteger-se da poluição do ar. Na área do
consumidor as associações (ONGs) têm um papel relevante, porque podem
receber reclamações da população. Todavia, como elas recebem
financiamento público, presume-se que não gozam de maior independência
perante o Estado.
Vejamos agora as visitas feitas.
O
Tribunal de Apelação de Nanjing possui excelentes instalações. Não há
crucifixos ou outros símbolos religiosos porque a China é por excelência
um Estado laico. Na fachada do prédio um enorme painel luminoso indica
os julgamentos do dia. Dentro, um setor de conciliação procura
solucionar os conflitos no nascedouro, tendo sucesso em cerca de 30% dos
casos. As pessoas do povo podem acompanhar seus processos pessoalmente,
inclusive dispondo de computadores para o seu uso, ao lado dos quais
ficam três tipos de óculos para o caso de necessidade.
Os juízes
são servidores públicos graduados e não representantes de um Poder de
Estado, como no Brasil. O tribunal conta com 700 funcionários, dos quais
210 são juízes. Todos, juízes e servidores, homens e mulheres, vestem
um uniforme elegante e discreto. É um terno azul-marinho, camisa branca,
gravata vermelha e um distintivo do tribunal. As mulheres constituem um
terço do número total de juízes, mas há uma tendência a que este
percentual cresça, porque elas estão sendo maioria nas Escolas de
Direito. Os vencimentos dos juízes do tribunal ficam em torno de R$ 2,5
mil.
A Justiça da China é única, nacional. Não existem tribunais
especializados, mas apenas Varas ou Câmaras especializadas. Os juízes
são escolhidos através de um concurso nacional e começam suas atividades
como funcionários, passando a auxiliares do juiz e depois a juízes.
Aposentam-se aos 60 anos de idade compulsoriamente, exceto na Suprema
Corte, onde a compulsória é aos 70. As partes têm direito a apenas um
recurso e, na maioria absoluta dos casos, os processos costumam
encerrar-se na Corte de Apelação. Por tal motivo, as ações costumam
terminar entre três e seis meses e só excepcionalmente superam este
prazo. Casos de extrema complexidade podem chegar até a cinco anos de
duração.
O Ministério Público é o autor da ação penal. Goza de
prestígio e trabalha diretamente com a polícia, sem a interferência do
juiz. O prédio que o abriga é dotado de todos os requisitos da
modernidade e os procuradores e servidores utilizam o mesmo terno azul
do Poder Judiciário, mudando apenas o distintivo que trazem na lapela.
Os promotores investigam os crimes praticados contra o Estado e as
decisões administrativas viciadas, inclusive através de órgãos
especializados. O Procurador-Geral é eleito e exonerado pelo Congresso
Nacional, depois de aprovado pelo Comitê do Povo.
Finalmente, a
Segurança Pública. Na China, ela é assegurada por um único órgão do
Estado. O concurso é nacional e os policiais de alta hierarquia recebem
praticamente o mesmo que juízes e promotores. A estrutura da Central de
Polícia é dotada de todos os requisitos da modernidade. A cidade de
Nanjing inteira possui vídeos e câmeras e o cidadão é convidado a
comentar o serviço que lhe é prestado. Os funcionários trabalham
assistindo a tudo que se passa na cidade, através de uma tela de cerca
de 10x5 metros, com aparelho de alta resolução. A sensação de segurança é
grande. A polícia não tem ligação com o Judiciário, apenas com o MP, e
tem poderes para decretar a quebra de sigilo bancário, telefônico e
telemático, através de seus órgãos de superior hierarquia, sem recorrer
ao MP ou ao Judiciário.
Aí estão algumas notícias da aplicação do
Direito na China. Uns mais, outros menos, os jovens brasileiros da área
do Direito acabarão se defrontando com questões jurídicas ligadas
àquele país, superpotência mundial emergente. É bom se prepararem.
Vladimir Passos de Freitas é desembargador federal aposentado do TRF 4ª Região, onde foi presidente, e professor doutor de Direito Ambiental da PUC-PR.
Revista Consultor Jurídico, 11 de maio de 2014
Disponível em: (http://www.conjur.com.br/2014-mai-11/segunda-leitura-notas-estudo-aplicacao-direito-china). Acesso em: 11/mai/2014.
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