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E essa característica modernizadora e empresarial foi fundamental para a construção do aparato repressivo, da nova institucionalidade ditatorial, do aperfeiçoamento das instituições autoritárias, dos serviços de censura, de vigilância, controle e repressão e, especialmente, do aperfeiçoamento das técnicas de contra insurgência, de informação e de investigação. A tortura, as execuções, os maus-tratos e a violência, práticas sempre presentes na nossa história, passaram a ser matéria para os agentes recrutados pela ditadura.
50 anos depois, ainda vivemos o horror
Tratar o passado de violações é constatar que o presente está marcado pela continuidade das violências
por João Ricardo W. Dornelles
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publicado
06/04/2014 05:11

Há 50 anos o Brasil vivia um clima de histeria coletiva. Pelo menos para os setores conservadores das classes médias e alta.
A histeria tomava conta da pacata, tradicional e moralista família
brasileira. Classes ricas, burguesia e senhores de terras sentiam-se
aviltados por um governo que prometia algumas reformas e uma
distribuição um pouco mais justa da riqueza nacional.
À direita, a UDN (União Democrática Nacional), parte dos militares,
capitalistas internacionalizados, Igreja, conservadores e reacionários,
todos conspiravam contra Jango, contra a democracia, contra os tímidos
avanços sociais anunciados pelo presidente.
E essa histeria vinha de longe, vinha desde o pós-guerra, ganhando
cores e alarido mais turbulento com a eleição de Vargas para presidente
da República, chegando ao ponto máximo em agosto de 1954, quando as
forças da reação e do golpismo já preparavam a derrubada do mandatário
da nação, democraticamente escolhido pela população brasileira.
Mas a história também é feita pelos seres humanos, e as suas ações
podem mudar o seu rumo, como ocorreu com a bala que tirou Vargas da vida
e o colocou na história. Adiou-se por dez anos o golpe anunciado pela
direita. O que não significou que a conspiração tenha cessado. Ao
contrário, não apenas continuou, como foi aprimorando as suas táticas e
práticas, foi buscando ampliar a sua base de apoio, foi criando
instituições com o objetivo de criar um senso comum favorável ao golpe.
E em nenhum momento desses dez anos que vão da morte de Getúlio à
derrubada de Jango deixou-se de conspirar e preparar o golpe. Na
verdade, apenas com a vitória de Jânio Quadros, em 1960, a direita, os
conservadores, os reacionários, os conspiradores respiraram aliviados.
Por pouco tempo, já que o 25 de agosto (mais uma vez agosto) de 1961,
poucos meses após a sua posse, aquele que varreria bandalheira, saiu de
cena, renunciou. Talvez em busca do apelo popular para a sua volta,
talvez por simples inconsequência ou inconsistência da sua capacidade de
governar. Enfim, mais uma vez, a direita, os golpistas de sempre, os
oligarcas, os conspiradores reacionários ficaram com os pelos
arrepiados, já que a perspectiva constitucional era a posse do
vice-presidente João Goulart, que se encontrava em viagem oficial na
China.
Mais um susto, mais uma tentativa de golpe, mais um golpe branco, com
o veto militar à posse de Jango. Mas também, mais uma demonstração de
grandeza, de luta, de destemor e de virtude do nosso povo e dos
trabalhadores que resistiram, através da Campanha da Legalidade, lançada
pelo governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, que ganhou as
ruas de Porto Alegre para ocupar todo o País e garantir a volta e a
posse de Jango.
No período do governo Jango, a luta por transformações sociais ganhou
maior destaque, e o próprio governo chegou a anunciar as reformas de
base como políticas públicas que poderiam dar um sentido mais justo para
a sociedade brasileira.
Enquanto isso se conspirava abertamente. Nas semanas anteriores ao
golpe impôs a primeira das ditaduras militares do Cone Sul da América do
Sul, as classes médias e altas encheram as ruas de São Paulo, do Rio de
Janeiro e de outras cidades brasileiras com a “Marcha com Deus e a
Família pela Liberdade” contra a ameaça comunista que estaria rondando o
País.
E veio o golpe, na madrugada de 1º. de abril de 1964, com as tropas
de Minas descendo e ocupando o Rio de Janeiro, com a farsa armada no
Congresso Nacional, anunciando que o presidente João Goulart havia
deixado o país acéfalo, estando Jango em Porto Alegre.
No próximo dia 1º. de abril serão 50 anos do golpe
empresarial-militar que rompeu com a ordem democrática, rasgou a
constituição e derrubou o Presidente João Goulart, o Jango, dando início
aos 21 anos de horror.
Ainda nos primeiros dias do novo regime iniciou-se a perseguição em
massa dos auxiliares do governo anterior, dos membros e parlamentares do
Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), do Partido Comunista Brasileiro,
dos outros partidos e organizações de esquerda, dos sindicatos, da União
Nacional dos Estudantes (UNE). As prisões em massa, as torturas, as
primeiras mortes, a censura, o fechamento dos partidos políticos, as
cassações de mandatos, foram o cartão de visitas do novo regime
ditatorial. Apenas nos primeiros meses de 1964 mais de 50 mil foram
presos e torturados. Muitos foram mortos. Causa espanto, para qualquer
ser civilizado, a imagem de Gregório Bezerra, um senhor idoso, militante
do Partido Comunista, sendo arrastado, acorrentado pelas ruas do Recife
logo após o golpe.
O golpe, no entanto, trazia uma novidade. Não se tratava mais das
quarteladas tradicionais da América Latina. Era um movimento político
que inaugurou uma nova prática que se estendeu pelo Cone Sul, Argentina,
Uruguai e Chile e que tinha por fundamento a Doutrina de Segurança
Nacional e Desenvolvimento[1].
Um movimento que, além dos aspectos relacionados com o contexto da
guerra fria, se atrelava às necessidades do processo de acumulação
capitalista transnacional. Implementou uma política econômica baseada na
modernização conservadora, dependente, socialmente excludente,
concentradora da riqueza.
E essa característica modernizadora e empresarial foi fundamental para a construção do aparato repressivo, da nova institucionalidade ditatorial, do aperfeiçoamento das instituições autoritárias, dos serviços de censura, de vigilância, controle e repressão e, especialmente, do aperfeiçoamento das técnicas de contra insurgência, de informação e de investigação. A tortura, as execuções, os maus-tratos e a violência, práticas sempre presentes na nossa história, passaram a ser matéria para os agentes recrutados pela ditadura.
E o financiamento dessas práticas vinha dos empresários, com apoio de
ministros e autoridades econômicas do regime. A Operação Bandeirantes
(Oban) foi organizada com a “vaquinha” promovida por autoridades,
empresários e banqueiros. Muitos financiavam a dor, a morte o
sofrimento, a barbárie. Existe uma linha direta, uma relação direta
entre a sala de tortura, o pau de arara, a “geladeira”, a criação do
DOI-CODI, a “Casa da Morte” de Petrópolis (como outras espalhadas pelo
País) e as fontes de financiamento empresariais. Aqueles que, em última
instância, se beneficiavam do modelo de desenvolvimento da ditadura.
O que surpreende é o longo, inacabado e complexo processo de
transição democrática que tem início de 1980 e que ainda deixa marcas 30
anos depois. Marcas do que resta da ditadura e das práticas políticas
dos órgãos repressivos com um alto grau de violência, arbitrariedade e
ilegalidade no âmbito de uma sociedade formalmente democrática. O
processo de transição democrática no Brasil permanece inconcluso, sendo
marcado por uma intensa batalha de interpretação sobre o passado. É
justamente através da desconstrução da narrativa oficial da história dos
vencedores e da recuperação da narrativa das vítimas, através do seu
testemunho sobre as práticas de terror de Estado, é que será possível
concluir o prolongado processo de transição.
No Brasil as políticas de esquecimento, conciliação e repetição de
violações de direitos humanos foram e continuam sendo um sucesso. A sua
história está marcada pelo autoritarismo, a exclusão de amplas massas,
pelo elitismo e pela violação sistemática e massiva dos direitos
humanos.
A reflexão contemporânea sobre as violações sistemáticas de direitos
humanos nos remete ao campo do direito à verdade, a memória sobre o
passado de horror e a luta por justiça e reparação. Revela também que
tratar o passado de violações e das suas vítimas é constatar que o
presente está marcado pela continuidade das violências, pela barbárie e a
produção de novas vítimas. Demonstra que o sucesso das políticas de
esquecimento e conciliação levou ao processo da permanente repetição das
políticas de exceção e das práticas de terror.
O modelo da ditadura brasileira apresentou uma característica
fundacional, que possibilitou a consolidação e a articulação na Operação
Condor, de outras ditaduras no Cone Sul do continente sul-americano.
Também aprimorou técnicas e práticas repressivas e políticas de exceção
que continuam sendo utilizadas pelos órgãos de controle social penal em
plena ordem constitucional democrática, especialmente nas políticas de
segurança pública com o alvo nas populações mais pobres e nas áreas
periféricas, como também nos processos de criminalização das
manifestações públicas e do protesto social. Foi durante o regime
militar que se aprofundou a militarização das polícias e se aprimorou as
“técnicas” de tortura, execuções e desaparecimento de pessoas,
realidade presente nas políticas de segurança pública e no tratamento de
conflitos de natureza social.
O paradigma do eficientismo penal, adotado através das políticas de
confronto e da criminalização das questões sociais, com as ações
repressivas atingindo diretamente os segmentos sociais mais pobres e
miseráveis, consolidou um modelo militarizado e as práticas de exceção.
A pesquisa The Justice Cascade and the Impact of Human Rights Trials in Latin America,
realizada por Kathryn Sikkink e Carrie Booth Walling sobre os processos
de transição democrática na América Latina demonstrou que existe uma
relação entre a aplicação dos mecanismos de justiça de transição
(julgamentos; comissões da verdade, políticas de responsabilização dos
agentes do Estado perpetradores de violações contra os direitos humanos)
e o nível de continuidade de violações dos direitos humanos nos países
pesquisados. As pesquisadoras utilizaram um critério de medição chamado
Escala de Terror Político (PTS - Political Terror Scale), que vai de 1 a
5, medindo as violações mais graves como execuções sumárias, tortura,
desaparecimento, prisões arbitrárias etc. Os resultados apontaram que
nos países onde os mecanismos da justiça de transição foram aplicados e
resultaram em responsabilização dos agentes pelos crimes de massa
cometidos durante os períodos de exceção, houve uma diminuição
significativa das violações contra os direitos humanos no período
democrático. A Argentina e o Chile estavam num nível alto de violações
no período das ditaduras (perto de 5). Com a democratização, após a ação
das comissões da verdade, o julgamento e condenação dos agentes
violadores, o nível baixou de forma intensa (chegando a cerca de 2).
Dentre os países pesquisados pelas autoras, o Brasil foi o único que,
na época, ainda não havia instalado uma comissão da verdade ou julgado
os agentes públicos responsáveis pelos crimes contra a humanidade. No
Brasil, com a sua política de esquecimento e incompletude dos mecanismos
da justiça de transição, verificou-se que houve um aumento na escala
PTS. A partir da democratização as violações de direitos humanos
(torturas, prisões ilegais, desaparecimentos, execuções sumárias, autos
de resistência etc) não só continuaram como sofreram um aumento
significativo. É a lógica da repetição, a continuidade, da permanência
histórica de práticas de terror de Estado.
As comissões da verdade - como mecanismos da justiça de transição -,
juntamente com os movimentos de direitos humanos, as organizações de
familiares de mortos e desaparecidos, movimentos populares, entidades
como a OAB podem desempenhar no Brasil um papel importante de ruptura
com a lógica da repetição histórica das violações sistemáticas e
massivas de direitos humanos. Também podem ser um instrumento importante
para a revelação dos crimes cometidos durante a ditadura militar,
apontando os responsáveis por tais atos, identificando as cadeias de
comando e as fontes de financiamento empresarial para as práticas do
terror de Estado. Também devem propor políticas públicas de não
repetição, através da transformação dos antigos locais de tortura, morte
e desaparecimento em centros de memória, como também reformas dos
currículos das escolas em todos os seus níveis, além da reforma profunda
dos currículos das escolas e academias militares.
Para se construir a paz social no presente e no futuro, não se pode
perder de vista a vigência das injustiças passadas e a atualidade do
sofrimento imposto. E é a memória das vítimas que serve de sinal e
condição necessária para romper com a lógica de violências do passado
que se reproduz no presente.
[1]
A Doutrina da Segurança Nacional (DSN) foi elaborada pelos militares
norte-americanos no período da guerra-fria. O principal inimigo, na
visão da DSN, é o marxismo-leninismo, com a ideia de que a luta de
classes se trava em todas as esferas da vida social. Ver COMBLIN,
Joseph. A Ideologia da Segurança Nacional – O Poder Militar na
América-Latina. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira: 1978.
João Ricardo W. Dornelles, membro da
Comissão Estadual da Verdade do Rio de Janeiro; Professor da PUC-Rio;
Coordenador-Geral do Núcleo de Direitos Humanos da PUC-Rio; Membro da
Direção Nacional da Associação Nacional de Direitos Humanos,
Pós-Graduação e Pesquisa (ANDHEP). Seu texto faz parte de uma série de artigos que o site de CartaCapital publica sobre os 50 anos do golpe-civil militar de 1964
Leia mais... (http://www.cartacapital.com.br/sociedade/50-anos-depois-ainda-vivemos-o-horror-4966.html). Acesso em: 06/abr/2014.
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