26/jan/2014...
Ninfomaníaca: erotismo ou pornografia?
A diferença entre erotismo e pornografia não é estética
nem quantitativa, é da posição ocupada pelos amantes.
Diana Lichtenstein Corso e Mario Corso,
psicanalistas.
psicanalistas.
Cada tanto essa polêmica retorna, se uma obra seria
pornográfica ou, caso tenha pedigree intelectual, ou ainda griffe de autor, seu
charme nos levaria à arte erótica. A coincidência da atual leva de filmes
como, Azul é a cor mais quente (A. Kechiche), Ninfomaníaca (Lars
von Trier) e Tatuagem (Hilton Lacerda), relançou a discussão.
O senso comum tende a ver a diferença entre pornografia e erotismo em termos de
bom gosto, linguagem sofisticada, enfim, sutilezas dentro de um mesmo espectro.
Se o autor foi feliz em ganhar um público culto é uma obra erótica, se ficou no
escuro da internet é pornografia.
A psicanálise abre possibilidade para outra posição: a
pornografia é facilmente identificável. Essencialmente a temos quando a
fantasia sexual é vendida com a ilusão de que todo sexo é fácil, barato e sem
culpa. Na pornografia o encontro do desejo com o objeto é plano e bem
resolvido, encaixe perfeito. Em outras palavras, quando as inibições ficam
momentaneamente esquecidas e imaginamos que podemos gozar sem envolver nossa
engrenagem neurótica. Já a erótica nos vende uma excitação sexual sem o recurso
do atalho: nela, cena sexual segue sendo escorregadia, como a real, é um flash
que momentaneamente se abre para em seguida declinar. A erótica carrega a
plausibilidade e a descontinuidade do real enquanto a pornografia é pura
imaginação sem barreiras e a ilusão de um gozo sem fim.
No início de Azul é a cor mais quente há
uma cena de sexo entre duas mulheres que vem causando paradoxais comoções.
Entre os incomodados estão os homofóbicos e conservadores, mas também há
algumas lésbicas que se declararam mal traduzidas. Ou seja, desde pontos de
vista antagônicos, o filme vem proporcionando debates. Quanto a Ninfomaníaca,
que aborda a compulsão sexual de uma jovem que transa no atacado, a reação tem
sido mais forte do que seu recente similar masculino, Shame (S.
McQueen), sobre um homem com uma vida sexual igualmente ativa e à deriva.
Ao contrário do best seller Cinquenta tons de cinza (breve
nos cinemas), essas obras não se prestam a fantasias masturbatórias. Ao
contrário: o filme de Lars von Trier, por exemplo, apesar do sexo explícito,
não serve para animar casais sem entusiasmo, nem sequer atividades solitárias.
Joe, a personagem de Trier, conta suas aventuras sexuais para um circunspecto
senhor que a encontrou machucada na rua e lhe deu abrigo. Eles discutem sobre a
culpa dela, da qual o bom homem tenta aliviá-la, sobre o perigo de misturar
sexo com amor e a suposta frieza da auto-declarada ninfomaníaca. A solidão
dela, os incansáveis encontros, seu olhar insistente de busca e sedução, são
mais tristes do que provocantes. A sexualidade de Joe parece-se muito mais com
a vida real do que os encontros estereotipados dos protagonistas do livro de
E.L. James. Mesmo assim, para desilusão das lésbicas que não se sentiram
retratadas (outras sim, viram-se representadas), o cinema, mesmo quando se
aproxima da nossa natureza neurótica, mostra um sexo visto de fora, pelo buraco
da fechadura.
Do ponto de vista do espectador voyeur, a cena sempre será
mais convincente do que o ato em si, pois as lacunas são completadas pela sua
fantasia, que enxerga o que quer ver. São essas mesmas fantasias que ajudam e
atrapalham a verdadeira vida sexual: ajudam porque é para realizá-las que o
desejo se acende; atrapalham porque, embora o prazer seja possível e acessível,
sempre é ameaçado pelas armadilhas do medo, das ambiguidades e inibições,
fazendo com que os fatos sempre fiquem em dívida com os ideais.
Erotismo e pornografia não se diferenciam por uma questão
quantitativa, sendo um mais explícito que o outro, há uma questão qualitativa
em jogo. Na definição de Georges Bataille, no livro denominado O
Erotismo, a fantasia erótica está associada à possibilidade de entrega, de
dissolução de limites, algo mais próximo do encontro letal no clássico japonês Império
dos Sentidos (N. Oshima, 1976). Para Bataille, “somente o sofrimento
revela a inteira significação do ser amado”, pois na dor da paixão fica claro
que ao mesmo tempo em que se conquista o outro perde-se o eu.
O sofrimento a que ele se refere é a consciência de que
estamos rodeados de gente mas condenados a ficar sós, a sentir-nos
incompreendidos, exatamente como a triste e solitária Joe. Ou seja, quando
ganhamos o outro perdemos a nós mesmos, ficando, portanto, inevitavelmente
insatisfeitos. Numa gincana de corpos que se desnudam e acoplam, a personagem de
Trier segue em busca do que nunca encontra: do tempero do sexo, sua suprema
graça. Talvez seja mesmo para provar a impossibilidade do encontro que ela
tanto se empenhe, revelando-se uma mulher fria, distante, como a própria mãe.
O horror que as cenas de sexo explícito desses filmes têm
causado intriga principalmente àqueles que se perguntam por que imagens de
igual impacto envolvendo violência não são condenadas. Não é tão difícil
entender essa diferença de pesos e medidas, pois a violência é uma forma de
dominação, enquanto o erotismo é seu oposto, seu prazer depende do grau de
entrega. A violência, principalmente o assassinato, corresponde ao absoluto
controle sobre o outro. Quem tem a vida alheia nas próprias mãos nunca se
arriscará a cair sob seu domínio, fascínio ou influência. Nada é mais temido do
que perder-se no outro, experiência que todos têm e que remonta nossa condição
infantil de inermidade, dependência e desamparo.
As obras de cunho pornográfico são as que aproximam o sexo
da violência, no sentido em ambos o outro está sob controle. Nelas os parceiros
respondem maciçamente ao desejo do outro, um sempre tem o que o outro quer,
comportam-se como previsto, não há desencontros ou dificuldades em fazer o
outro gozar.
Outra fonte de desagrado é a explicitação do gozo feminino
ativo, da busca da mulher por um prazer que, conforme as convenções, deveria
ser provocado nela, sem deixar clara sua vontade. A posição feminina, quer ela
seja ocupada por um homem ou uma mulher, está associada à fantasia de passividade:
só um desejo deveria orquestrar a cena, o ativo, masculino. No filme de Trier,
Joe é uma caçadora, os homens suas presas certeiras, cada um para formas
diversas de satisfação, e isso revela uma face indigesta do desejo feminino.
Mais uma vez, as mulheres pagam o preço do passado de todos
nós, devem calar sua vontade, por serem potencialmente “a mãe”, cujo poder é o
mais temido de todos. Ela encarna a ameaça de ser devorado, descartado ou
insatisfatório. Longe desses riscos, na pornografia evidencia-se um desejo que
parece ser masculino, mas se sobrepõe ao gênero: tudo funciona a contento, os
gritos dela (ou do parceiro “feminino”) confirmariam a potência do membro
“másculo”, ativo, do casal.
Em suma, Ninfomaníaca não é pornográfico,
porque é muito próximo da nossa sexualidade neurótica. Não é erótico, já que é
cético quanto às ilusões amorosas de perder-se no outro. É drama, como
dramáticos somos, dentro e fora dos lençóis.
(publicado no caderno Cultura do jornal Zero Hora em
25/01/2014).
Disponível em: Ninfomaníaca:
erotismo ou pornografia?
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