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27maio2013
CONSTITUIÇÃO E PODER
Luís Roberto Barroso e a tolerância no Direito
Se já não fora bastante, com um estilo insuperável, Luís Roberto Barroso transportará para o Judiciário um algo mais de elegância e sensibilidade. O dia é, portanto, da mais profunda alegria e das mais justificadas esperanças. Como o mote central deste artigo é precisamente a argumentação e a tolerância na ciência jurídica, presto com ele uma singela homenagem a esse grande jurista, que, enfim, teve a sua hora.
I.
O Direito e a exigência de racionalidade
Os
juristas têm acalentado a expectativa absolutamente humana de poderem deduzir
racionalmente a Justiça do seu próprio ofício. Decidir racionalmente é, com
efeito, um dos propósitos centrais da prática jurídica. Como acredita Martin
Kriele, a necessidade de considerações jurídicas racionais domina o direito
completamente[1].
Mesmo
quando a sociedade se desencantou com a antiga promessa de uma Justiça
alcançada diretamente de alguma fonte divina, ou se frustrou com a ideia de um
“Direito justo” oferecido por alguma espécie de legislador sobre-humanamente
racional, os juristas não se deram por vencidos. Passaram, então, a propagar a
ideia de que, já agora no universo do possível, uma medida de justiça tangível
estaria à disposição dos homens por intermédio de uma ciência jurídica que,
procedendo por meio de raciocínios estritamente lógico-indutivos, facultaria às
autoridades encarregadas de aplicar o Direito a capacidade de concretizar, sem
desvio de entendimento, os conteúdos abstratamente dispostos nos textos legais.
Para tanto, acreditou-se num paradigma de ciência jurídica que, por sua vez,
teve como principal matriz uma concepção de ciência e de raciocínio, oriunda de
René Descartes, que influenciou de maneira decisiva, como se sabe, a ciência e
a filosofia ocidentais dos três últimos séculos[2].
A ciência, através da lógica formal, tomou o lugar da divindade, pretendendo-se
absoluta.
Não
é difícil concluir que muitas das dificuldades que a ciência jurídica tem hoje
que suportar encontram ali sua mais remota origem. Como demonstra Chaïm
Perelman, foi Decartes que, no seu Discours de la Méthode, fazendo
da evidência a marca da razão, não admitiu considerar como racionais senão as
demonstrações que, a partir de ideias claras e bem definidas, graças a provas
apodícticas, propagavam a evidência dos axiomas a todos os teoremas[3].
O raciocínio more geometrico foi o modelo que se apresentou
aos pensadores desejosos de construir um sistema de pensamento que pudesse
atingir a dignidade de uma ciência[4].
Essa forma de conceber a ciência, depois transportada para o raciocínio
jurídico, mostra-se, desde a origem, absolutamente tirânica, pois traz em seus
próprios fundamentos a afirmação de uma absoluta impossibilidade de
desacordos[5] no
âmbito do discurso científico e, por consequência, em sua versão mais
extremada, nega a possibilidade de discussão ou argumentação retórica
(destinada ao convencimento) entre sujeitos racionais[6].
Conforme
o que então se acreditava, uma ciência racional não podia contentar-se com
opiniões mais ou menos verossímeis, pelo contrário, era tarefa do teórico e do
cientista alcançar um sistema de proposições necessárias que
seria capaz de se impor a todos os seres racionais como acordo
inevitável. Para um raciocínio assim concebido, não é difícil compreender
que “o desacordo” seria mesmo um sinal de erro e um mal a ser
evitado. Assim, não era de se admirar que segundo Descartes, todas as
vezes que dois homens formulam sobre a mesma coisa um juízo contrário, é certo
(...) que um dos dois se engana[7].
E se a conclusão já não fosse por si mesma bastante surpreendente, Descartes
ainda fez questão de acrescentar: Mais do que isso, nenhum deles possui
a verdade; pois se um deles tivesse da verdade uma visão clara e nítida, ele
poderia expor a seu adversário de tal sorte que ela acabaria por forçar a sua
convicção[8].
A
intolerância com opiniões divergentes encontrava aí o seu suporte lógico. Para
o Direito ou para a sociedade democrática, as consequências de tal raciocínio
não poderiam ser mais deletérias. Se para os seguidores das ciências
experimentais e indutivas, o que conta no seu ofício é alcançar a verdade, ou
seja, a conformidade das proposições com os fatos, no Direito, ao lado da busca
da verdade, pontificam princípios de tolerância, possibilidade de divergência e
necessidade de convencimento. Enquanto nas ciências naturais impõe-se a
aceitação de conclusões lógicas inafastáveis, no Direito, para além de uma
verdade sem contrastes, exige-se a prevalência do melhor argumento. Quem
argumenta não impõe nem “se” impõe, convence.
O
lógico, influenciado pelo ideal cartesiano, só aceitaria como idôneas as provas
que Aristóteles qualificava como analíticas, raramente investigando os meios de
prova utilizados nas ciências humanas. E essa tendência apenas iria, com o
tempo, intensificar-se, quando há mais de um século,sob a influência dos
lógicos-matemáticos, a lógica torna-se limitada à lógica formal, ou seja, ao
estudo dos meios de prova utilizados nas ciências matemáticas[9].
Não
obstante o que hoje reconhecemos como diferenças essenciais entre o pensamento
jurídico e as ciências naturais, a conclusão que muitos acabariam por retirar
da incrível influência do modo cartesiano de raciocinar foi a de que ou o
pensador das ciências humanas — e do Direito em especial — se submetia ao
paradigma prevalecente, ou, então, nada mais lhe restaria do que entregar-se às
forças irracionais, ao sabor dos próprios instintos humanos, à mera sugestão,
ou à violência. Segundo esse modo de ver, não se podendo desconsiderar os
formidáveis avanços promovidos pela lógica formal, fora desse modelo, nos
domínios que escapam ao cálculo e onde nem a experiência nem a dedução lógica
podem nos fornecer a solução de um problema, a razão torna-se totalmente
incompetente[10].
II.
Chaïm Perelman e a lógica dialética
Como
se sabe, boa parte da produção teórica de Chaïm Perelman destinou-se
precisamente a confrontar essa forma de pensar. Por isso, a idéia de
desacordo converter-se-ia, então, em um dos temas prediletos e mais
incômodos para Perelman. A recusa cartesiana do desacordo, fundada na crença de
que a verdade, sempre certa e clara, não se abriria à possibilidade de qualquer
desacordo entre seres racionais foi o que justificou, segundo o próprio
Perelman, que ele se tornasse um anticartesiano. Portanto, com razão
tem-se afirmado que o “desacordo sobre o desacordo” está na base
fundamental da diferença entre Descartes e Perelman[11].
De
fato, Perelman se propôs a tarefa de demonstrar através de uma teoria da
argumentação que, ao lado da verificação empírica e da dedução lógica, existe
uma série de outras possibilidades de argumentar e fundamentar racionalmente[12].
Consoante suas próprias palavras: “Parece-nos ao contrário que esta é uma
limitação indevida e perfeitamente injustificável do domínio onde intervém
nossa faculdade de raciocinar e de provar”[13].
A
diferença entre um pensamento voltado à teoria e um outro voltado à praxis,
isto é, entre uma ciência dirigida ao conhecimento e uma reflexão voltada a uma
ordem do agir e do atuar humano era já conhecida na Antiguidade[14].
Além disso, como demonstra Zippelius, contra um monismo naturalista, que queria
fazer das relações humanas mero objeto de consideração das ciências naturais
também já se voltara Samuel Pufendorf, para quem a ação humana não é mero
processo causal, já que os homens têm a capacidade de conduzir-se em
conformidade com decisões voluntárias numa ou noutra direção; e nessas decisões
eles poderiam ser motivados por obrigações, ou seja, por deveres[15].
Aliás, não foram poucos os juristas que se puseram a tarefa de distinguir entre
“o conceito de causalidade” — próprio das ciências naturais — e de “imputação”
— próprio do Direito. Por isso que não se poderia confundir as ciências do
“ser” e as ciências do “dever-ser”.
Para
demonstrar seu ponto de vista, Perelman iria recuperar historicamente, com
interesse lógico-sistemático, o ensinamento dos antigos (principalmente,
Aristóteles, Cícero e Quintiliano)[16].
O autor já fizera notar que Aristóteles além das provas analíticas também
estudara as provas dialéticas, ou seja, além de juízos de necessidade o grande
sábio grego se interessara também pelos juízos de verossimilhança. Enquanto o
raciocínio por relações de necessidade e causalidade, que levam à evidência,
serve à demonstração, o raciocínio e a argumentação por verossimilhança servem
à deliberação[17].
Perelman
não buscava com isso substituir ou eliminar a lógica formal ou o raciocínio por
evidência ou as deduções necessárias. Como avalia R. Alexy, com seu trabalho, o
filósofo e jurista polonês, radicado em Bruxelas, buscava apenas completá-los[18].
Como afirmara o próprio autor, a nova retórica por ele elaborada não
busca afastar ou substituir a lógica formal, diversamente, visa somar a ela um
campo de argumentação que, até então, tinha escapado aos esforços de
racionalização, nomeadamente, a argumenação prática[19].
De
um jeito ou de outro, hoje parece indiscutível que o trabalho de Chaïm Perelman
recolocou a argumentação jurídica no centro do espaço em que as decisões
jurídicas são tomadas. A partir de seus estudos, tornaram-se clássicas algumas
proposições retóricas.
Quem
é portador de um discurso que pretende convencer “o outro”, seja em concreto ou
em abstrato (o auditório universal), está ao mesmo tempo, por óbvio,
dirigindo-se a si próprio, com o que deve excluir dos argumentos que submete “à
sua audiência” aquelas afirmações nas quais não acredita e as propostas que ele
próprio não aceita. Assim, os seus argumentos devem se mover sob as condições
prévias de sinceridade e seriedade[20].
Nota-se aqui, como em tantos outros pontos, uma clara aproximação das teorias
de Perelman com as de Habermas, ou de Alexy.
Por
outro lado, quem deseja uma anuência universal precisa buscar não ser
partidário (fala-se aqui do cientista do Direito, não do advogado), pois o
orador partidário, desde que seja sincero, muito provavelmente apenas alcançará
convencer o grupo no qual ele próprio está inserido. Assim, para ser e
demonstrar-se imparcial, aquele que busca o acordo do “auditório universal”
deve admitir — para a discussão — quaisquer espécies de argumentos contrários,
tornando-se válida a regraaudiatur et altera pars. Também aqui vemos
vínculos de semelhança entre Perelman, Habermas e Alexy[21].
No
que respeita ao ponto de partida de toda argumentação, Perelman admite que não
existe distinção entre a argumentação desenvolvida diante de uma audiência
universal e aquela outra que se realiza perante um auditório particular. Como
toda argumentação está vinculada a atitudes e convicções, o orador deve
sustentar-se, ao início, naquilo que os ouvintes admitem em primeiro lugar.
Isso apenas significa dizer, em outros termos, como também revelado por
Habermas e por muitos outros, que toda argumentação desenvolve-se num contexto
histórico e social onde se situam os sujeitos do discurso[22].
Obviamente,
no ponto de vista aqui revelado não se veicula a ingenuidade de que alguém
possa pretender, em matérias tão controvertidas como aquelas que se mostram
quase sempre presentes em conflitos constitucionais, a exemplo da colisão de
direitos fundamentais, normalmente configuradoras de casos difíceis, alcançar
sempre, ou sequer frequentemente, acordos universais. O que se tem, no entanto,
é a certeza de que, nesses hard cases, só quem apresente o espírito
desarmado, com disposição honesta de ouvir os argumentos contrários bem como a
convicção sincera de estar defendendo pontos de vista nos quais realmente
acredita, é que terá condições de, ainda que não alcançando um tão pretensioso
acordo universal, enxergar um pouco além dos seus próprios interesses, ou dos
interesses do grupo a que pertença.
Para
concluir, como exemplo de superação de visões partidárias ou limitadas, tem-se
tornado célebre, nos Estados Unidos, o desapontamento que alguns juízes da
Suprema Corte têm imposto aos presidentes conservadores que promoveram as suas
indicações ao Senado, precisamente, pelo fato de, uma vez tomando assento
naquele Tribunal e abrindo-se para argumentos opostos às suas próprias
convicções iniciais, esses magistrados acabam por chegar a conclusões
inicialmente por eles próprios recusadas. O presidente Eisenhower, por exemplo,
indicou Earl Warren como Chief Justice da Suprema Corte,
precisamente, por sua reputação conservadora de militante do movimento
lei-e-ordem no governo na Califórnia. Tempos mais tarde, tendo a Corte Warren
se caracterizado como uma das mais liberais da história norte-americana, Eisenhower
reclamava ter sido essa indicação um de seus maiores erros como presidente da
República. Também, como se sabe, a posição mais favorável ao aborto em Roe
v. Wade só foi possível por conta da abertura de juízes conservadores
da Suprema Corte. Além disso, tanto o presidente Reagan como o presidente Bush
se decepcionaram abertamente com as indicações dos Justices O’Connor,
Kennedy e Souter, os quais, embora no geral tenham mantido posições que deles
eram esperadas, surpreenderam o público ao negar os seus votos para conferir
uma orientação mais conservadora em casos fundamentais[23].
Sabe-se, por exemplo, que, promovendo a indicação desses juízes, os presidentes
republicanos esperavam anular (overrule) a posição jurídica mais
favorável ao aborto, concretizada em Roe v. Wade, o que, para
desespero da ala conservadora da política norte-americana, sobretudo com a
postura mais moderada da Justice Sandra Day O’Connor, não
ocorreu[24].
Tudo
resumindo, o conhecimento do direito não se pode reduzir a juízos de causalidade,
de certezas absolutas, ou à lógica do necessário ou da única resposta correta.
O discurso do direito não desconhece a verdade natural ou a lógica formal, mas
é e será sempre mais do que isso. Abre-se com tolerância à possibilidade de
desacordos e contenta-se com a verossimilhança. No âmbito do direito,
especialmente nos chamados “casos difíceis”, o conhecimento não se impõe por
meio de juízos lógicos irrefragáveis, mas apenas convence pela lógica da
argumentação. É certo que se sustenta na verdade dos fatos e não desconsidera a
lógica formal, mas tem a obrigação de nem sempre parar por aí.
Acho
que posso concluir com a inspiração do grande jurista norte-americano,Oliver
Wendell Holmes, em célebre passagem: A vida do Direito não tem sido
lógica: tem sido experiência. As necessidades sentidas numa época, a moral
predominante e as teorias políticas, intuições de políticas públicas, expressas
ou inconscientes, mesmo os preconceitos que os juízes partilham com seus
concidadãos, têm contado mais do que o silogismo na determinação das
normas pelas quais os homens devem ser governados. O Direito incorpora a
história do desenvolvimento de uma nação através de muitos séculos, e não pode
ser tratado como se contivesse apenas axiomas e corolários de um livro de
matemática[25].
[2] C. Perelman et L.
Olbrechts-Tyteca. Traite de L’Argumentation, p. 1 ; A. Aulis. Das
regulative Prinzip der Gesetzesauslegung : Überlegungen zum Proglem der
Möglichkeit der einzig richtigen Entscheidung, p. 409 ss.
[5] Como corretamente deduz Guillaume
Vannier, para Descartes, mais do que um erro, o desacordo implica uma
resignação indolente e racionalmente inadmissível, já que os recursos do nosso
espírito certamente nos permitiriam aceder à universalidade e à univocidade da
verdade. Nossas faculdades nos permitiriam sempre conhecer o acordo da
verdade com ela mesma. Quem, portanto, não alcança o acordo da verdade
sobre um determinado ponto é porque conduziu o seu raciocínio de forma
indevida. Corretamente, então, G. Vannier, conclui que, em termos cartesianos,
com todo o rigor, o desacordo não existe, mas somente engano e incompreensão,
cfe. Guillaume Vannier. Argumentation et droit, p. 3.
[7] R. Descartes. Euvres,
t. XI: Règles pour la direction de l’esprit, p. 205-6, também
citado por C. Perelman et L. Olbrechts-Tyteca. Traite de
L’Argumentation, p. 2.
[8] R. Descartes. Euvres,
t. XI: Règles pour la direction de l’esprit, p. 205-6, citado também
por C. Perelman et L. Olbrechts-Tyteca. Traite de L’Argumentation,
p. 2.
[13] O realce é do próprio autor. Cfe.
C. Perelman et L. Olbrechts-Tyteca. Traite de L’Argumentation, p.
4.
[15]S. Pufendorf, De Jure naturae
et gentium, 1672, I 6, §§ 6 e 8, apud R. Zippelius, Juristische
Methodenlehre, p. 2
[18] R. Alexy. Theorie der
juristischen Argumentation, p. 199; ver também A. AARNIO. Das regulative
Prinzip der Gesetzesauslegung: Überlegungen zum Problem der Möglichkeit der
einzig richtigen Entscheideung. Rechtstheorie 20 (1989), p. 409-431.
[19] Ch. Perelman, The New
Rhethoric, in Pragmatics of Natural Language. Org. por Y.
Bar-Hillel, Dordrecht-Holland 1971, p. 145, também citado por R. Alexy. Theorie
der juristischen Argumentation, p. 199.
[20] R. Alexy. Theorie der
juristischen Argumentation, p. 214. Ver as condições da deliberação consigo
mesmo (la delibération avec soi-même) em . C.
Perelman et L. Olbrechts-Tyteca. Traite de L’Argumentation, p. 53
ss.
[24] Em Planned Parenthood of
Southeastern Pennsylvania versus Casey – 505 U.S. 833 (1992) –, por
exemplo, O’Connor, Kennedy e Souter, relatando a posição majoritária da Corte,
deixaram registrado o entendimento de que, considerando as questões constitucionais
fundamentais resolvidas em Roe, os princípios de integridade
institucional e diante da regra do stare decisis, a consideração
essencial de Roe v. Wade deveria ser mantida e mais uma vez
reafirmada, cfe. 505 U.S. 833 (844-869). Cfe. também em Geoffrey R. Stone. Constitutional
Law, p. 885.
[25] Oliver Wendell Holmes, Jr. The
common law, p. 1. NY: Dover Publications, 1991, 422 p. New York: Dover
Publications,1991, p. 422.
Néviton Guedes é
desembargador federal do TRF da 1ª Região e doutor em Direito pela Universidade
de Coimbra.
Revista Consultor Jurídico, 27 de maio de 2013
(http://www.conjur.com.br/2013-mai-27/constituicao-poder-luis-roberto-barroso-tolerancia-direito).
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