SENSO INCOMUM
27dezembro2012
Roxin "não sabe nada" e o TJ-SP confirma minha tese
Lendo
o conceito acima, pus-me a pensar, sorvendo uma chávena de chá: “Esse Roxin
não sabe nada mesmo”. Ao invés de construir a Theorie der Tatsache
und Theorie Domäne der objektiv-subjektiv (teoria do domínio do fato,
em alemão), deveria ter vindo estudar Direito aqui em Pindorama. Bastaria ter
lido nosso Código Penal e... bingo: qualquer pessoa que concorrer para o crime
responde por ele. Ele não precisaria ter escrito, em 1963, o livro Täterschaft
und Tatherrschaft. Esse Roxin... Perdeu tanto tempo... tsk tsk tsk
(onomatopeia que significa “que pena”). O professor de Direito da
importantíssima Instituição “deixou claro” o que é a A Theorie der
Tatsache und Theorie Domäne der objektiv-subjektiv... (o estagiário que
anda comigo nas palestras acaba de levantar a placa com os dizeres “sarcasmo”!)
Falando sério: por se pensar que teorias sofisticadas como a do Domínio do Fato
são “coisas simples” é que a dogmática jurídica “perdeu” nesse julgamento (não
esqueçamos também que um dos advogados disse que, desde 2005, já sabia que seu
cliente seria condenado... O que eu não entendo é: por que, então, o
defendeu?).
Sigo
nessa linha. Da série “eu sabia” ou “eu avisei”, escrevo para
dizer que “eu avisei e eu acertei”. Lembram-se de minha Coluna “Aqui se faz, aqui se paga ou ‘o que atesta Malatesta’”,
onde alertei para o perigo dos efeitos colaterais da decisão da AP 470? Pois
leiam. E depois retornem a este texto.
Pronto
(como nas gravações de 0800, lá localizei o seu prontuário — diga-me, caro leitor:
tecle 1, para saber se o ordinário se presume; tecle 2, para saber se só o
extraordinário se prova; tecle 3, para saber se indícios são suficientes para
provar um fato; tecle 4, para saber se fatos notórios não necessitam ser
provados; ou tecle 5, para voltar ao menu principal; ao final, concorra a um
dos seguintes livros: Domínio do fato simplificado e A
lógica das provas simplificado — de Malatesta).
De
volta, vamos à notícia que a nossa ConJur publicou no passado
dia 19 de dezembro12: “Fatos notórios não precisam de prova”, decide TJ-SP. Que fantástico,
não? O que são fatos notórios? O que o juiz disser que é? Seria a síndrome do
Malatesta? Ou o “fator Malatesta”? “O ordinário se presume”?
Vejamos
um trecho da notícia:
O
Tribunal de Justiça de São Paulo determinou nesta quarta-feira (19/12) o
bloqueio de R$ 21 milhões da empresa de investimentos Blue Stone por conta de
dívida contraída pelo empresário Naji Robert Nahas nos anos 80, depois da
quebra da Bolsa de Valores de São Paulo (Bovespa). A disputa envolve
propriedade de terreno apresentado por Nahas como garantia em outra briga
judicial. Para o relator do caso na 5ª Câmara de Direito Privado do TJ,
desembargador Erickson Gravazza Marques, "as pedras sabem" que o
empresário é o verdadeiro dono do terreno e está envolvido com a empresa, e
"fatos notórios não precisam ser comprovados" (...) Em seu voto, o
relator reconheceu que a apelação — movida por empresário que cobra uma dívida
de Nahas — é baseada em indícios, mas afirmou que eles devem ser levados em
conta diante de sua contundência. “Afinal, fatos notórios não precisam de
prova”, concluiu, ao dizer que está mais preocupado com a “verdade real dos
fatos” do que seu colega, James Siano. Para Gravazza, Siano ficou mais
preocupado com a “verdade processual”.
Alguém
diria (ou dirá): “Que bom! Foi um peixe grande. Efetivamente, o domínio do
fato e o Malatesta são contra as elites.” Portanto, “que bom que
esteja sendo usado para pegar gente graúda”. Claro. Ainda estamos sob o
efeito do julgamento do mensalão. Só que esse fato de São Paulo é um daqueles
que, pelo personagem famoso (Nahas), recebe atenção da imprensa. Preocupa-me,
no entanto, o que não está sendo denunciado. Tenho notícia de que, em várias
ações penais “onde não estão envolvidas gente do andar de cima”, estão
aplicando teses como “fatos notórios não necessitam de prova”, “fatos
ordinários podem ser presumidos”, “quem, de qualquer modo participou, é
responsável”, etc.
Ora,
qualquer brasileiro também gostaria de ver todos os canalhas e escroques deste
país devidamente punidos. Entretanto, penso que os democratas, preocupados com
as garantias processuais, não querem fazer isso a qualquer custo. Até porque a
próxima vítima pode ser você. É o antigo efeito Orloff: “Eu sou você
amanhã.”
Vingando
a tese do desembargador paulista acima explicitada, o caso Bruno nem
necessitaria ir a júri. Parece notório que a Elisa está morta. Até as pedram
sabe(ri)am. Também a questão da embriaguez no volante. É fácil de ver. E assim
por diante. O Direito Penal, assim, vira “responsabilidade objetiva”. Você é
culpado até provar o contrário, tese presente, aliás, em juristas famosos como
Manzini...
Veja-se
o perigo do que é “notório”: Se a revista Veja publica que
Marcos Valério disse algo, fica notório... (ou não é assim?) Logo, não
necessitaremos provar? E o que são indícios? O fato de alguém estar molhado
aponta para indícios de chuva... Mesmo que esteja chovendo, ainda assim me
parece que há que se provar que o acusado “andava mesmo na chuva” (embora quem
ande na chuva é para se molhar). Metafórica e simbolicamente, tais questões são
bem profundas, pois não? A decisão de São Paulo é mais contundente pelo seu
aspecto simbólico do que pelo seu aspecto “real”, bem assim como advertia
Castoriadis, em seu Instituição imaginária da sociedade: O gesto do
carrasco é real por excelência, mas simbólico em sua essência!
Não
há dúvidas de que, em tempos de mensalão, todos querem “mostrar serviço” e
pegar mais um “notório” peixe grande, certo? O problema é o modo como estamos a
fazer isso, pois certamente afetará muito mais os brasileiros comuns (os
patuléus) do que os extraordinários, quer dizer, os "peixes grandes"!
O
mesmo juiz que hoje pega o “peixe grande”, amanhã irá atrás do “peixe pequeno”,
constante alvo do sistema penal de terrae brasilis. Umberto Eco já
tratou disso em O nome da rosa (sou um felizardo:
nos anos 80, fiz um semestre todo estudando Eco no mestrado), obra extremamente
interessante para tratarmos desta questão, especificamente sobre os chamados
fatos notórios e incriminadores e sua ligação com a polissemia das palavras...
Isso fica evidente na passagem da noite do quinto dia, quando Bernardo de Gui —
o grande inquisidor — promove o julgamento dos acusado da morte de Severino, o
qual desde o início já possui severos vícios “processuais”, devidamente
destacados pelo Abade e por Guilherme de Baskervile (uma emulação de Guilherme
de Ockham, levada a cabo no romance por Eco, com o exato intuito de revelar
algumas das faces do nominalismo), além do irreparável pressuposto de que os
acusados eram de pronto culpados, dois integrantes da choldra da época,
efetivamente (o pobre Salvatore, possuidor de doença congênita e a aldeã — que
sequer entendia qualquer palavra que se pronunciava durante seu próprio
julgamento — pela qual se apaixonou Adso, contador da estória e aprendiz de
Guilherme) e o principal alvo, Remigio de Varagine, verdadeiro adversário
político da situação, para o qual apenas era-necessário-o-processo-para-que-sua-punição-fosse-minimamente-legitimada.
Há
um trecho da obra de Eco que demonstra de maneira indelével como a prática ora
noticiada pela ConJur não é novidadeira, especialmente quando
Bernardo de Gui contesta afirmações de desconhecimento da natureza dos fatos
delituosos noticiados e consequente inocência proferidas por Remigio de
Varagine, como se estas fossem comprovações de sua incriminação:
"A
minh'alma é inocente e não sei o que vós pretendeis quando falais em deprecação
herética", disse cautamente o celeireiro.
"Estais
vendo?" exclamou Bernardo voltando-se para os outros juízes. "Todos
iguais! Quando um deles é detido, apresenta-se em juízo como se sua consciência
estivesse tranquila e sem reforços. E não sabem que esse é o sinal mais
evidente de sua culpa, porque o justo, no processo, se apresenta inquieto!
Perguntai-lhe se conhece a causa porque eu ordenei a sua detenção. Tu a
conheces, Remigio?"
"Senhor",
respondeu o celeireiro, "ficaria contente de sabê-la por vossa boca".
"Eis",
exclamava no entanto Bernardo, "a típica resposta do herege impertinente!
Percorrem sendas de raposas e é muito difícil pegá-los em falta porque a
comunidade deles admite o seu direito a mentir para evitar a devida punição”.
E
mais não preciso dizer. Apenas queStat rosa pristina nomine, nomina
nuda tenemus…
Outra
obra que muito bem retrata a situação dos indícios como “verdadeiro” fundamento
probante de uma decisão é a de Eduardo Sacheri, chamada La pregunta de
sus ojos, especialmente no momento em que são acusados e imediatamente
tidos como culpados, dadas os “claríssimos indícios” que restavam disponíveis,
os dois obreiros bolivianos que trabalhavam próximos ao local onde ocorrido o
assassinato sobre o qual gira toda a novela, a qual rendeu um belo filme,
chamado no Brasil de “O segredo dos seus olhos" (há também um
programa Direito e Literatura sobre este livro de Sacheri, assim como sobre O nome da rosa).
Até
as pedras daquela obra (entenderam? Obras, obreiros, pedras... Lacan se
divertiria com esses significantes) “sabiam” que os bolivianos eram os
culpados. No entanto...
Pois
é. Prossigo. Venho insistindo há muito numa questão prosaica, sem que isso lhe
tire a sofisticação teórica. Trata-se da necessidade de que os julgamentos
sejam sempre por princípios, e não por presunções ou por raciocínios
teleológicos. Já muito escrevi sobre isso. O Direito Processual Penal não se
coaduna com enunciados do tipo “primeiro vejo se é culpado para depois
encontrar as provas (ou os indícios)”. Trata-se de um raciocínio falacioso,
repetindo um princípio de araque do processo penal, que não resiste a trinta
segundos de filosofia: o tal “princípio da verdade real”.
Com
isso, quantos acusados acabam tendo negado os seus Habeas Corpus e quantos acusados
são condenados indevidamente? Quero dizer que o processo penal tem uma feição
de radicalidade. Mesmo que se saiba que alguém é culpado, se não existirem
provas não dá para condenar. E se alguém for preso e, diante do auto de prisão
em flagrante, o juiz disser, singelamente, que “o flagrante prende por si”,
não dá para fazer raciocínios teleológicos... Só tem um caminho: conceder o HC.
Alguém
dirá: “Mas o indiciado merece ficar preso...”. E eu respondo,
garantisticamente: “É o custo da democracia”. Juiz que não sabe decretar
preventiva nem pode ser juiz. E o cidadão não pode pagar por isso. Outro alguém
dirá: “É, mas a sociedade é quem pagará o preço, porque terá mais uma
marginal solto”. E eu respondo, de novo e pacientemente: “Azar o da
sociedade; quem mandou ter um juiz assim?” Isso é que nem na política.
Elegemos mal, todos pagamos. Faculdades ruins formam péssimos profissionais.
Neste caso, por que não aplicamos a tese de que “quem de qualquer modo
concorre para o resultado, também é responsável pelo crime? Vamos processar
o professor de Direito Processual Penal que ensinou mal ao juiz que não sabe
decretar, fundamentadamente, uma prisão preventiva? Ou vamos processar a banca
do concurso? Quem será “Der Mann hinter” (o homem de trás, que sabe de
tudo?) No limite, poderemos processor a editora que publicou os livros
utilizados pela banca, etc.
Afinal,
todos não tinham o “domínio do fato”? “Todos sabiam...”
Ah,
e quem usar livros simplificadores, também deverá ser responsabilizado... por
qualquer coisa que acontecer no Direito no futuro. Está “claro” no artigo 29 do
Código Penal!
Lenio Luiz Streck é procurador de Justiça
no Rio Grande do Sul, doutor e pós-Doutor em Direito. Assine oFacebook.
Revista Consultor Jurídico, 27 de dezembro de 2012
(http://www.conjur.com.br/2012-dez-27/senso-incomum-roxin-nao-sabe-nada-tj-sp-confirma-minha-tese).
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