ENTREVISTA / FRANK LA RUE
Brasil pode criar novo modelo de mídia latino-americano, diz relator da ONU
Por Nelson de Sá em 31/12/2012 na edição 727
Reproduzido da Folha de S.Paulo, 25/12/2012
Relator especial da ONU para liberdade de expressão, Frank La Rue
defende que o Brasil estabeleça um novo modelo para a mídia na América Latina,
a partir do que vêm fazendo Argentina e Uruguai. Ele dá “apoio técnico” aos
dois países, na implantação de suas novas leis de mídia.
Em encontros na semana passada em Brasília, com os ministros
Paulo Bernardo (Comunicações) e Gilberto Carvalho (Secretaria-Geral da
Presidência), entre outros, ofereceu o mesmo apoio ao Brasil para uma
legislação visando “regular as comunicações”.
Em sua opinião, “como a América Latina teve um desenvolvimento
errado, nas políticas comerciais de comunicação, é importante reverter”.
Mas La Rue defende melhor distribuição de concessões de
televisão e combate a monopólios, não regulação de conteúdo.
Nesse sentido, descreve em entrevista como, ao defender o canal
Globovisión da perseguição na Venezuela, acabou enfrentando reação do
presidente Hugo Chávez. Aos 60 anos, ele escreve regularmente no jornal “La
Prensa”, da Guatemala.
Como o sr. viu o relatório Leveson, sobre os desvios da imprensa
inglesa?
Frank La Rue – Como relator, sempre
digo que a liberdade de expressão deve ser direito de todos, universal: dos
jornalistas, dos meios, mas de toda a população também. Tanto o direito de
disseminar como o direito de receber informação, com diversidade e pluralismo.
E as concentrações de mídia ameaçam essa informação, esse
pluralismo. Tem de haver meios de todo tipo, privado, público. Além disso, no
plano empresarial, os monopólios são uma ameaça à liberdade de comércio, porque
são concorrência desleal.
Isso é especialmente importante nos EUA, onde há leis
antimonopólio comercial. Pois bem, em direitos humanos, na liberdade de
expressão, passa-se o mesmo: as concentrações, produto da desregulação que
houve em muitos países, são muito danosas.
E esse é o caso inglês.
F.L.R. – É o caso de Rupert Murdoch.
O que acontece quando ele chega a ter tanto poder que [seus jornais] creem
estar acima da lei e dispostos a violar a privacidade dos cidadãos? A violar
comunicação oficial, como era o caso da família real?
Creem ter o direito de fazer muitas coisas, com o intuito de
alimentar notícias para o tabloide e vender. É um escândalo, e não teria
acontecido num país em que se limitam as concentrações e os monopólios, onde se
regula o tema da mídia.
Murdoch pôde fazer isso na Inglaterra, mas não pôde fazer isso
nos EUA. Outro exemplo de como a concentração de meios de comunicação leva à
concentração do poder político é Silvio Berlusconi, que voltará a ser candidato
dentro de pouco tempo na Itália.
É muito perigoso, porque é um atentado à liberdade de expressão
e à democracia. Essa é a minha opinião: não se podem permitir esses monopólios.
O relatório Leveson propõe participação estatal na supervisão da
imprensa. Há lugar para o Estado aí?
F.L.R. – Essa é a pergunta mais
difícil. Creio que o Estado tem de regular os meios de comunicação social,
porque são um serviço público.
Há concessões de radiodifusão.
F.L.R. – Sim, mas as concessões são
o mais fácil, porque são concessões de frequência de rádio, de TV, agora
frequências para internet. É mais fácil, porque são propriedade do Estado. É um
recurso natural, digamos, que o Estado deve administrar, como os recursos de
seu solo, água, petróleo.
Aí sim deve haver claríssima regulação, para estar a serviço do
bem comum, de toda a população. Há frequências que podem ser comerciais, mas
outras devem ser comunitárias ou para povos indígenas.
E hoje só vê [a questão] sob a ótica comercial, é um processo da
América Latina. Já na Europa, por exemplo, uma das primeiras e mais eficientes
rádios é a BBC, que é pública, financiada pelo Estado.
É um serviço excelente, então não é um problema na Inglaterra. A
rádio Nederland é igual. A rádio Exterior, da Espanha. É preciso recuperar o
espaço da comunicação pública e comunitária na América Latina. Por isso eu
saudei a lei argentina.
A lei de mídia.
F.L.R. – É um bom passo. Mas a
pergunta difícil é: O que fazer com os meios escritos? Creio que, se o conteúdo
viola direitos de outros, o Estado deve proteger os outros, nada mais. O Estado
não pode decidir qual deve ser ou não ser o conteúdo.
O que deve regular, sim, é a concentração, pelo poder político
alterado que dá aos proprietários dos meios e porque viola o princípio da
diversidade e do pluralismo. Nos EUA, numa mesma cidade, quem tem um jornal não
pode ter uma emissora de televisão. Têm de ser dois proprietários distintos,
para provocar equilíbrio de visões.
A experiência americana é um modelo, na sua opinião?
F.L.R. – Sim, a ideia é fazer com
que os conteúdos sejam diversos. Não intervém no conteúdo, mas gera
diversidade.
Na Argentina, o “Clarín” está sendo forçado a vender parte de
seus canais de TV paga. O Estado não está indo longe demais?
F.L.R. – É uma parte menos conhecida
da lei. É um processo de desmonopolização. Os EUA fizeram o mesmo com a
AT&T. Era uma empresa de telefonia muito eficiente e fizeram com que
surgissem todas as Baby Bells, porque os monopólios são uma violação também à
legislação comercial.
A Comissão para a Proteção de Jornalistas e o Instituto
Internacional de Imprensa divulgaram, há pouco, números recordes de jornalistas
presos e mortos ao redor do mundo. O que está acontecendo? Por que os
jornalistas se tornaram alvos?
F.L.R. – Meu relatório ao Conselho
de Direitos Humanos da ONU, neste ano, foi sobre proteção a jornalistas. O que
está ocorrendo, na minha opinião, é que a internet provocou muito medo entre os
líderes políticos autoritários e também entre alguns líderes democráticos.
É muito difícil manter segredos agora. “Whistle-blowers”
[vazadores] podem fazer denúncias, “leaks” [vazamentos]. A experiência da
Tunísia e do Egito foi o que causou maior pânico.
Entraram em colapso dois governos ditatoriais, que tinham o
controle total de seus países, militarmente. O que há agora é uma atitude de
pânico com a internet. E quem mais usa a internet é a imprensa. Creio que é por
isso, pelo temor que os políticos no poder começaram a sentir da imprensa.
Começaram a querer silenciar.
Mas em outros lugares é o crescimento do crime organizado. Na
América Latina, é principalmente narcotráfico e tráfico de pessoas, o que
inclui mulheres e crianças.
Muitos jornalistas são vítimas de represálias ou caem em meio às
batalhas de território, como no Norte do México. Há zonas de quase guerra, como
Ciudad Juarez, em que os jornalistas correm perigo constantemente.
Também em meu país, a Guatemala, onde a imprensa denunciou que
muitos funcionários foram financiados por quadrilhas de lavagem de dinheiro e
de narcotráfico. A violência contra jornalistas demonstra uma falha no sistema
de Justiça: a impunidade.
Pode haver causas múltiplas, mas o problema mais grave é que a
Justiça não funciona. Cada caso sem investigação e sem processo é um convite
para que aconteçam muitos mais.
Como o sr. vê o Brasil, nesse ponto?
F.L.R. – Não quero me pronunciar,
porque não é uma visita oficial. Mas uma coisa eu quero dizer. Me parece que o
Brasil está num momento interessante, em que pode elaborar as leis de regulação
da mídia, as leis antimonopólio, as normas de uso das frequências, e eu ofereci
apoio técnico, profissional. Ofereci acompanhar esse processo.
Fiz isso na Argentina e acabo de começar a fazê-lo no Uruguai,
onde estive com o governo uruguaio e vou voltar quando apresentarem o projeto
ao Congresso. Gostaria de fazer o mesmo no Brasil, quando se fizer uma lei.
Outro tema é o acesso à internet. O Brasil tem uma estatística
interessante, mais ou menos 50% da população com acesso direto ou indireto à
internet. É muito bom, um nível alto para países do Sul, em vias de
desenvolvimento.
E eu propus ao governo brasileiro um diálogo Sul-Sul, no Ibas,
entre Brasil, África do Sul e Índia, talvez também Indonésia. Armar um diálogo
original sobre as políticas de acesso, sobre como fomentar o acesso à internet
nos países dos diferentes continentes, me parece realmente importante.
Sobre a lei de mídia...
F.L.R. – Como a América Latina teve
um desenvolvimento errado, no sentido das políticas comerciais de comunicação,
é muito importante reverter isso.
E é muito interessante o que está se passando no Mercosul: o que
fez a Argentina, o que está fazendo o Uruguai e o que pode ser o Brasil. Se a
Bolívia se incorporar ao Mercosul, com as políticas de rádios comunitárias para
povos indígenas, pode ser importante.
Também o Chile, se regressar a presidente Michele Bachelet. Isso
tudo pode ser muito significativo para todo o continente americano,
especialmente o Brasil. É um país de tanto peso. O que o Brasil decidir, no
futuro, sobre como regular as comunicações, especialmente a concessão de
frequências e a digitalização, todo o tema de como facilitar o acesso à
internet... Creio que o Brasil está convocado a estabelecer um modelo no
continente.
Como está o projeto uruguaio de lei de mídia?
F.L.R. – A tendência é fazer algo
parecido com a lei argentina, mas ainda mais avançado. Por exemplo, devem mudar
as frequências para ficar com concessões comerciais, públicas e comunitárias,
mas também devem ter muito mais sobre proteção à infância, inclusive no tema
dos comerciais, que tipo de anúncio permitir nos horários infantis.
O sr. não pode tratar da perseguição de jornalistas no Brasil?
F.L.R. – Não posso. Mas sei que há o
relatório da CPJ, de Nova York, e vi os casos do Brasil. Todos os jornalistas
me preocupam, em todas as partes do mundo. Creio que é lamentável e, sim,
gostaria de ouvir eventualmente do governo e do Ministério Público que
investigação se fez nesses casos. Isso para mim é talvez o mais importante:
romper a impunidade.
O sr. já falou sobre a perseguição a jornalistas em Honduras, na
China, México, Irã. E dois anos atrás o presidente da Venezuela, Hugo Chávez,
até pressionou por sua demissão da ONU. Como vê esse tipo de reação?
F.L.R. – Não sei se pediu meu cargo,
mas Chávez e o governo foram muito críticos da minha posição. Fui convidado a
Caracas, para um ato acadêmico muito concorrido e um encontro com a imprensa.
Não houve problemas, não falei da Venezuela, mas, sim, falei dos
princípios da liberdade de expressão. Creio que, no caso de Chávez, há uma
reação terrivelmente autoritária.
Entendo que é um presidente popular, que ganhou as eleições, mas
isso não dá o direito de impor sua vontade e silenciar críticas. Minha posição
sempre foi que todo mundo tem direito à liberdade de expressão.
A altenativa não é calar ou fechar os meios, como a Globovisión.
A alternativa é permitir que surjam mais, que haja mais comunicação. Quanto
mais comunicação, melhor. Mas eu sou, sim, crítico do governo Chávez, porque é
um governo autoritário que não suporta a crítica.
Como o sr. vê os EUA em relação à liberdade de imprensa? O caso
WikiLeaks mostra que também têm os seus limites?
F.L.R. – Creio que a Primeira Emenda
da Constituição americana dá um espaço muito amplo de liberdade de imprensa,
bem maior do que na maioria dos países. Às vezes até maior do que eu
permitiria, como na existência da Ku Klux Klan como organização legal, quando é
uma organização racista.
Em termos de imprensa, é bom que seja assim, porque permite que
se fale tudo. Soltei um comunicado sobre o WikiLeaks, dizendo que as revelações
eram massivas e, pela quantidade, eram muito embaraçosas para os EUA.
Mas não eram uma violação da segurança nacional. É uma
publicação absolutamente legítima. Os vazamentos sempre têm sido publicados,
veja-se o escândalo Watergate. Creio que não há justificativa, aí.
Para mim, Julian Assange [fundador do WikiLeaks] não deve ser
condenado. Na Inglaterra, quiseram prendê-lo por outro motivo, a questão da
Suécia. Não sei se é verdade ou não, mas certamente, pela publicação do
vazamento, ele não pode ser condenado por nada.
***
[Nelson de Sá, da Folha
de S.Paulo].
(http://www.observatoriodaimprensa.com.br/news/view/_ed727_brasil_pode_criar_novo_modelo_de_midia_latino_americano_diz_relator_da_onu).
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