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1janeiro2013
CONSTITUIÇÃO E PODER
A Constituição e a defesa de seu texto original
![Néviton Guedes - 19/07/2012 [Spacca]](http://s.conjur.com.br/img/b/neviton-guedes-19072012.jpeg)
Morreu,
no último dia 19 de dezembro, Robert Bork, um dos mais conhecidos juristas
conservadores norte-americanos, que, além de professor em Yale e juiz federal,
exerceu, no governo Nixon, o cargo de advogado-geral e de procurador-geral dos
Estados Unidos da América. Bork acabou consagrado como um dos maiores
defensores do Originalismo, doutrina que prega a tese de que o
texto da Constituição norte-americana deve ser interpretado da forma mais
restrita possível, isto é, de acordo com a restrita vontade dos homens (framers)
que se reuniram para produzir a Constituição de 1787 .
Não
é simples a análise do chamado Originalismo. Apesar de seu mais do que evidente
conservadorismo, é inegável o vetor democrático que o inspira. Entre outras
razões para seu originalismo, Bork acreditava que essa era a única
hermenêutica capaz de salvar as cortes norte-americanas da sua “dificuldade
contramajoritária”, pois só interpretando a Constituição à luz da vontade
original dos “pais fundadores” é que os tribunais poderiam justificar o poder
de anular os atos dos demais Poderes.
De
qualquer forma, não foi à toa, pois, que Bork sofreu desde sempre a mais ampla
oposição dos setores liberais da sociedade norte-americana. Para além de outras
inusitadas consequências — aos nossos olhos e segundo os liberais
norte-americanos —, a forma como Bork entendia dever interpretar o texto
constitucional impunha negar a existência na Constituição de seu país de uma
série de direitos fundamentais, entre os quais, o direito à privacidade e o
direito ao aborto. De fato, tendo sido gerada no Século XVIII, como se sabe, a
Constituição norte-americana não veicula “expressamente” em seu texto vários
direitos posteriormente reconhecidos pela Suprema Corte.
Logicamente,
se o Originalismo fosse apenas isso, não provocaria tantas dificuldades aos
seus opositores nem teria vida muita longa. As sutilezas do pensamento
originalista estão situadas sobretudo nas suas consequências e, especialmente,
nos seguintes pontos: (1) em primeiro lugar, o Originalismo,
ao contrário do que seríamos levados a crer, confere maior espaço de atuação
aos demais Poderes e, em alguma medida, à própria sociedade, do que os chamados
“interpretativistas”, precisamente, porque, e esse é o segundo ponto, (2) nega
ao Judiciário, especialmente, à Suprema Corte, quaisquer poderes, ou
competências que não estejam, expressa e especificamente, estipulados na
vontade original dos autores da Constituição.
Assim,
por exemplo, como a Constituição norte-americana não prevê “expressamente” o
direito ao aborto nem o direito à privacidade como base ao direito de abortar,
fatalmente Robert Bork teria votado contra Roe vs. Wade, quando a Suprema Corte
norte-americana vetou o direito de os Estados-Membros criarem leis que criminalizassem
o aborto — pelo menos de forma absoluta —, baseando-se, para tanto,
precisamente no direito à privacidade da mulher, um direito que, como se disse,
não está “expressamente” disposto no texto produzidos pelos framers.
O que Bork e muitos dos originalistas diriam é que, simplesmente, não estando
previsto de forma expressa na Constituição — o direito ao aborto ou à
privacidade como base para abortar —, nada impediria o Legislador de criar leis
criminalizando o aborto, como fizera o Texas na lei invalidada em Roe vs. Wade.
Veja,
no exemplo, que a sutileza está em que o Originalismo não impediria que os
Estados-Membros possam, por meio de seus legisladores, editar leis a favor ou
contra o aborto, uma vez que esse direito não estava previsto nem vetado na
Constituição.
A
profundidade e a extensão dos poderes da Suprema Corte estariam, entretanto,
limitadas ao que “expressamente” (originariamente) disposto pela vontade dos
homens que, em 1787, promulgaram a Constituição americana. Não há, segundo esse
modo de ver, uma “Constituição viva” a ser interpretada (e reinventada) de
acordo os novos tempos ou com as aspirações da sociedade contemporânea (living
constitution theory). Não é que a Constituição e as leis não possam mudar,
mas apenas que essa mudança deveria ser capitaneada pelos agentes políticos, os
agentes eleitos pelo povo, não pelo Judiciário. Não havendo expressa vedação ou
prescrição no texto constitucional, nada impediria o Legislador de conferir um
novo direito ou impor uma nova proibição mediante lei, que, por sua vez, não
poderia ser censurada pela Suprema Corte.
Ressalta,
nesse modo de ver, um Judiciário menos atuante e, portanto, mais passivo, com
maior liberdade para o legislador e, de alguma forma, para a própria sociedade.
Contudo, não se pode negar, o Originalismo — com sua teoria de interpretação
constitucional — faria os Estados Unidos regressarem, sensivelmente, a décadas
e mesmo séculos no que tange a alguns direitos fundamentais e liberdade civis.
A Constituição norte-americana, precisamente pela característica sintética de
seu texto, vinculado historicamente a uma sociedade do século XVIII — branca,
masculina, protestante e de pequenos proprietários e comerciantes —, não teria
muito que dizer ao seu povo, nos dias atuais, não fosse a atuação proeminente
de sua Suprema Corte, especialmente, nos últimos 70 anos.
Não
por outra razão, Robert Bork protagonizou o caso mais rumoroso de rejeição a
uma indicação presidencial para Suprema Corte. Seu nome (Bork) chegou mesmo a
gerar um neologismo no inglês norte-americano (to bork) para designar a
atuação que se promove contra candidatos que, à semelhança de Robert Bork,
revelando indiscutíveis qualidades acadêmicas e jurídicas — isso foi posto fora
de dúvida por seus inimigos —, devam ser rejeitados, porém, por sua visão
ideológica, política e teórica sobre a sociedade e o Direito.
Como
diria, dias depois de sua morte, um dos maiores oponentes de sua indicação para
a Suprema Corte, o New York Times, a sua rejeição foi ainda mais
rara, precisamente, porque não se baseou em suas qualificações profissionais
(jurídicas ou intelectuais), mas sim por seu temperamento e por conta da
filosofia do Direito que ele defendeu até o fim com invejável elegância e
honestidade (“and rarer still for that rejection to be based not on
qualifications but on judicial philosophy and temperament”).
Não
obstante as flagrantes deficiências do Originalismo, por querer, no caso
norte-americano, impor a uma das mais modernas sociedades de nossos tempos uma
visão de mundo que já não existe — os problemas enfrentados pelos pais
fundadores da Constituição norte-americana, em 1787, obviamente, foram
quase que integralmente substituídos por novos problemas, por eles sequer
imaginados —, deve-se anotar em seu favor — tanto de Robert Bork quanto do
representante mais proeminente do Originalismo na Suprema Corte: Antonin Scalia
— um respeito quase religioso pela Constituição.
De
fato, se os originalistas não andam bem ao se agarrarem incondicionalmente a um
texto constitucional do Século XVIII, cumprem, contudo, a enorme tarefa de não
deixar que a sociedade norte-americana esqueça e, assim, se distancie em
demasia do texto original de sua Constituição. Como os originalistas, apesar de
minoria, fazem um barulho ensurdecedor, os americanos não têm como saber a
falta que fariam caso deixassem de existir.
Nós
brasileiros, por exemplo, além do ativismo judicial, como se sabe, entramos sem
pejo na era da “mutação constitucional” — que significa, em suma, mudar o
sentido do que disposto da Constituição, sem mudar o seu texto, sob a alegação
de ajustá-la aos novos tempos —, e o fazemos com maior vontade do que os
norte-americanos. Contudo, diversamente, apesar de termos um texto
constitucional moderno e analítico, em que a vontade do constituinte originário
foi, em muitos casos, veiculada em normas de conteúdo específico e até
definitivo (regras), não podemos ter certeza de que, se preciso, teremos algum
“originalista”, muito menos com coragem suficiente para defender o seu conteúdo
original (da Constituição) ao preço, como fez Robert Bork, de uma indicação
para a Suprema Corte.
Néviton Guedes é desembargador federal do
TRF da 1ª Região e doutor em Direito pela Universidade de Coimbra.
Revista Consultor Jurídico, 1º de janeiro de 2013.
(http://www.conjur.com.br/2013-jan-01/constituicao-poder-constituicao-defesa-texto-original).
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