A desconsideração inversa da personalidade jurídica: aspectos jurisprudenciais
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Publicado em 06/2012
Sumário: Introdução. 1. A Evolução da Teoria da Empresa: Superação da Teoria Francesa dos Atos de Comércio. 2. A Teoria das Pessoas Jurídicas e sua Classificação. 3. Sociedade Empresária e Responsabilização dos Sócios. 4. Desconsideração da Personalidade Jurídica. 5. Desconsideração Inversa da Personalidade Jurídica. Aspectos Jurisprudenciais. Considerações Finais.
Resumo: A doutrina e jurisprudência há muito admitem a desconsideração da personalidade jurídica como mecanismo para coibir o uso abusivo ou fraudulento da autonomia patrimonial. Por outro lado, a possibilidade de aplicar-se a desconsideração inversa da personalidade jurídica, identificada pelo desvio de bens do sócio para a sociedade com fins fraudulentos, não era ainda reconhecida pela jurisprudência. No entanto, em decisão recente, o STJ reconheceu a possibilidade de aplicação do instituto, recorrendo a uma interpretação teleológica do artigo 50 do CC/2002. A decisão, em sede de Recurso Especial, prevê ainda a excepcionalidade da medida, permitindo-se a sua utilização como forma de coibir a fraude e o abuso de direito.
Palavras-chave: Personalidade Jurídica; Desconsideração Inversa; Empresa.
Introdução
A Constituição Federal de 1988, atenta à necessidade de se promover o desenvolvimento econômico do país por meio da geração de emprego e incentivo ao empreendedorismo, consagrou os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa como um de seus fundamentos.
Caracteriza-se assim a preocupação do constituinte originário em promover a livre iniciativa, sobretudo seus valores sociais, dirigidos à geração de riquezas e redistribuição de renda.
Nesse contexto, o Código Civil Brasileiro de 2002, prevê a autonomia patrimonial entre os bens da pessoa jurídica e os de seu sócio, como medida protetiva àqueles que buscam por suas próprias forças desenvolver atividade empresarial.
No entanto, há que se levar em consideração que, em algumas situações, a utilização da pessoa jurídica e, consequentemente da autonomia patrimonial, se dirigem a fins fraudulentos.
É diante de tais situações que se mostra necessária a adoção da teoria da desconsideração da personalidade jurídica e também de sua forma invertida, como forma de punição ao mau uso da autonomia patrimonial das pessoas jurídicas.
Foi nesse contexto que o STJ, em decisão recente, admitiu a aplicação da desconsideração inversa da personalidade jurídica, como forma de preservação do instituto da autonomia patrimonial.
1. A Evolução da Teoria da Empresa: Superação da Teoria Francesa dos Atos de Comércio
A atividade fabril e comercial sempre foi fator fundamental para o desenvolvimento das nações. No início, a produção revelava-se extremamente artesanal. Com a Revolução industrial, esse modelo produtivo tornou-se obsoleto. Com o fenômeno da globalização, a produtividade passou a ser um diferencial competitivo para as empresas. [1]
A atuação cada vez mais significativa do capital privado e a intencional ausência do Estado tem sido a característica marcante das economias capitalistas. Nesse contexto, a atividade empresarial privada desempenha um papel fundamental no desenvolvimento econômico e social das nações.
Nesse novo ambiente de negócios marcado pela competitividade e pela falta de regulação estatal, era imperativo que a ciência jurídica fornecesse à empresa contornos jurídicos. A teoria francesa dos atos de comércio se mostrava inadequada aos novos rumos da relações empresariais.
É nesse contexto que nasce a teoria da empresa, que tem como marco inicial o Código Civil Italiano de 1942.
Conforme Coelho (2009), o texto italiano servirá de referência doutrinária porque é acompanhado de uma teoria que substitui à dos atos de comércio, de origem francesa.
O conceito de empresa é construção italiana – sistema da empresarialidade –, ao estabelecer regras próprias não mais àquele que pratica com habitualidade e profissionalidade atos de comercio, mas à atividade definida em lei como empresarial.[3]
O Código Civil Brasileiro de 2002 claramente adota a teoria da empresa. Não obstante a inexistência de definição legal de empresa, o conceito de seu titular, o empresário vem contido no artigo 966:
Assim, o Brasil segue a tendência mundial de substituição dos atos de comércio pela teoria da empresa.
Sobre o tema, Fábio Ulhoa Coelho anota que:
No mesmo sentido, Waldirio Bulgarelli:
2. A Teoria das Pessoas Jurídicas e sua Classificação
A discussão sobre o conceito e natureza das pessoas jurídicas é antiga entre a doutrina. De um estão os adeptos da denominada teoria pré-normativista que tendem a conceber a pessoa jurídica como um ser preexistente e com total independência da ordem jurídica. A doutrina pré-normativista tende a considerar a natureza das pessoas jurídicas como semelhante à dos homens. [6]
De outro lado, a doutrina normativista segundo a qual as pessoas jurídicas são criações jurídicas, fruto de previsão legal. Para Coelho (2009, p. 9):
Pessoa jurídica é pessoa só no universo jurídico. Resulta de uma ficção pragmática necessária que atribui personalidade e regime jurídico próprios a entes coletivos, tendo em vista a persecução de determinados fins.[8]
Também, pode-se afirmar que as pessoas jurídicas são sujeitos de direitos e obrigações. É de notar que o empresário tem existência natural ou jurídica, isto é, as pessoas jurídicas, embora criadas por lei, têm, para todos os fins, existência, deveres e direitos assemelhados aos da pessoa natural, sendo, como tal, sujeitos de direitos e obrigações. [9]
Tradicionalmente, as pessoas jurídicas são classificadas, fundamentalmente, em dois grupos: as pessoas jurídicas de direito privado e as de direito publico. É o que aduz o Código Civil de 2002:
As pessoas jurídicas de direito privado dividem-se em duas principais categorias: as particulares, constituídas apenas por recursos particulares e as estatais, aquelas que, para formação do seu capital, houve contribuição do Poder Publico. [10]
Em linhas gerais, as pessoas jurídicas de direito publico estão sujeitas às disciplinas do direito público, enquanto as pessoas jurídicas de direito privado submetem-se às disciplinas de direito privado.
Na visão de Fábio Ulhoa Coelho, esse é o grande traço diferencial dos dois grupos. Significa dizer que as pessoas jurídicas de direito publico gozam de prerrogativas não titularizadas pelas de direito privado, exatamente porque os interesses daquelas são reputados de maior importância que os desta. [11]
3. Sociedade Empresária e Responsabilização dos Sócios
Dada a importância dos empreendimentos empresariais para a economia como fonte geradora de riquezas, sobretudo tributos e empregos, a legislação põe a salvo os bens particulares dos sócios, por dívidas da sociedade, prevendo sua responsabilidade subsidiária. É nesse sentido a disposição expressa do CC/2002:
Para Coelho (2009, p. 28), pode-se, dessa forma, afirmar que, em razão do instituto da personalização a responsabilidade dos sócios da sociedade empresária é subsidiária, quer dizer, enquanto não esgotado o patrimônio social, não se pode atingir os bens do sócio para a satisfação de dívidas da sociedade.
Essa sistemática de responsabilização funda-se na necessidade de proteção ao patrimônio particular do sócio, sob pena de grave desestimulo à abertura de novos empreendimentos
Nesse sentido é a visão de Fábio Ulhoa Coelho:
4. Desconsideração da Personalidade Jurídica
Em um Estado Democrático de Direito, a Constituição Federal deve ser entendida como a lei fundamental e suprema de um Estado. É nesse contexto, que a Constituição Federal de 1988 dirige especial proteção à atividade produtiva:
No entanto, há de se registrar que tal proteção dirigida à livre iniciativa, diga-se, às empresas, deve ser conjugada com os interesses maiores dos trabalhadores e da sociedade como um todo. Nesse sentido é o entendimento emanado pela nossa Corte Suprema:
Dessa forma, é atribuída à empresa papel fundamental no desenvolvimento social e econômico do país. A atuação dos agentes responsáveis pela empresa deve ser pautado pela responsabilidade social e probidade na direção dos negócios.
É nesse sentido o disposto na lei 6.404 de 15 de dezembro de 1976, ao definir os deveres e responsabilidades dos administradores das Companhias:
Apesar da existência de dispositivos legais que coíbem a utilização da empresa para fins nocivos aos interesses sociais, não é raro sua utilização como instrumento para encobrir fraudes nas suas mais diversas modalidades.
Nesse sentido é a lição de Carvalhosa e Latorraca:
A utilização indevida da pessoa jurídica atinge negativamente os interesses da sociedade e de terceiros que com a empresa mantenham relações comerciais.
Elucidativa é a lição de Ricardo Negrão:
A teoria da desconsideração ou superamento da personalidade jurídica tem como embasamento legal disposição contida no CC/2002:
Dessa forma, possibilita-se a imposição da desconsideração da personalidade jurídica sempre que os sócios das empresas atuem com desvio de finalidade e permitam a confusão patrimonial.
Mais uma vez, leciona Negrão:
Nesse sentido, importante esclarecimento sobre a extensão da desconsideração da personalidade jurídica é fornecida por Coelho:
Também, esclareça-se que o princípio a ser respeitado como regra geral é o da autonomia patrimonial, não se confundindo os bens da sociedade com os bens do sócio.
Deve-se atentar no sentido de que, necessariamente, a desconsideração deve ter natureza excepcional, episódica, não servindo ao questionamento da subjetividade própria da sociedade. [17]
Na mesma linha, ao comentar sobre a desconsideração da personalidade jurídica, Fazzio afirma que esta consiste em colocar de lado, episodicamente, a autonomia patrimonial da sociedade, possibilitando a responsabilização direta e ilimitada do sócio por obrigação que, em principio, é da sociedade. Afasta-se a ficção para que aflore a realidade. [18]
5. Desconsideração Inversa da Personalidade Jurídica. Aspectos Jurisprudenciais
Se o instituto da desconsideração da personalidade jurídica tem recebido crescente atenção por parte da doutrina jurídica, sobretudo a empresarial, ainda são raros os estudos sobre a teoria da desconsideração inversa da personalidade jurídica.
A transferência de bens do sócio para a pessoa jurídica com o objetivo de fraudar interesses de terceiros, acobertando fraudes sob o manto da autonomia patrimonial é uma realidade que não pode ser desconsiderada pela doutrina e jurisprudência.
Nesse sentido é a lição de Fábio Ulhoa Coelho:
Em relação à jurisprudência, só recentemente nossos tribunais têm enfrentado a questão da possibilidade da desconsideração inversa da personalidade jurídica, delineando as hipóteses e abrangência de sua incidência.
Em decisão recente, ao analisar um Recurso Especial, o STJ enfrentou a questão da possibilidade da aplicação do instituto da desconsideração da personalidade jurídica de forma inversa:
Sinteticamente, a questão suscitada no Recurso Especial restringia-se à verificação da possibilidade de a regra contida no art. 50 do CC/2002 autorizar a aplicação do instituto da desconsideração inversa da personalidade jurídica.
Da análise da Ementa, verifica-se o acolhimento da tese que possibilita a aplicação, ainda que de forma excepcional, da desconsideração inversa da personalidade jurídica, baseada em uma interpretação teleológica do art. 50 do CC/2002.
Na decisão supracitada, a relatora, Ministra Nancy Andrighi ponderou que a mesma razão que acolhe a desconsideração da personalidade jurídica, também fundamenta a desconsideração inversa, qual seja, impedir a indevida utilização da personalidade jurídica pelos sócios. Destaque-se ainda, as seguintes razões:
Ainda, em seu voto, a eminente Ministra esclarece que ao juiz cabe agir com especial cautela quando da aplicação da desconsideração da personalidade jurídica, sobretudo em sua forma inversa. Tal cuidado deve-se ao fato de que a autonomia patrimonial entre o ente societário e a pessoa de seus sócios é importante fator de estimulo à criação de novos empreendimentos.
Considerações Finais
A utilização indevida da autonomia patrimonial da pessoa jurídica é realidade que não deve ser ignorada pela jurisprudência pátria, sob pena de se acobertar sob o manto de tão importante instituto toda sorte de fraudes e ilicitudes.
As recentes decisões do STJ, reconhecendo a possibilidade de utilização da desconsideração inversa da personalidade jurídica abrem a possibilidade de afastamento da autonomia patrimonial da pessoa jurídica com o fito de responsabilizar a sociedade por obrigações contraídas pelo sócio, quando concretizada a fraude do desvio de bens.
A característica de excepcionalidade na aplicação da desconsideração inversa da personalidade jurídica, afirmada pela decisão, permite a conclusão de que a autonomia patrimonial é ainda o princípio norteador na responsabilização societária, sendo seu afastamento, exceção, somente permitida quando presente os pressupostos legais autorizadores.
Com efeito, sendo um mecanismo excepcional, deverá ser aplicado com cautela, de forma fundamentada, sob pena de destruição do instituto da pessoa jurídica e, conseqüentemente, aos direitos da pessoa física. [21]
Abstract:
The doctrine and jurisprudence has long admitted to piercing the corporate veil as a mechanism to curb the abuse of autonomy or fraudulent statements. On the other hand, the possibility to apply the inverse disregard the legal personality, identified by the diversion of goods to the partner company for fraudulent purposes, was not yet recognized by case law. However, in a recent decision, the Supreme Court recognized the possibility of application of the institute, using a teleological interpretation of Article 50 of CC/2002. The decision, based on the Special Appeal, also provides the uniqueness of the measure, allowing to use as a way to curb fraud and abuse law.
Key Words: Legal Personality; Disregard Reverse; Company.
Notas:
[1] SANTOS, S.D. Ergonomia: um estudo sobre sua influência na produtividade. Revista de Gestão USP, São Paulo, v. 16, n. 4, p. 61-75, out-nov 2009.
[2] NEGRÃO, Ricardo. Manual de Direito Comercial e de Empresa. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2003. p.39.
[3] COELHO, Fabio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. 13ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 25
[4] COELHO, Op.cit p. 8.
[5] BULGARELLI, Waldirio. Direito Comercial. 12ª Ed. São Paulo: Atlas, 1995
[6] COELHO, Op.cit p. 8.
[7] COELHO, Op.cit p. 9.
[8] FAZZIO JR., Waldo. Manual de Direito Comercial. 11ª Ed. São Paulo: Atlas, 2010
[9] NEGRÃO, Op.cit p. 58
[10] COELHO, Op.cit p. 13
[11] COELHO, Op.cit p. 12
[12] COELHO, Op.cit p. 29
[13] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 1.950, Rel. Min. Eros Grau, julgamento em 3-11-2005, Plenário, DJ de 2-6-2006.
[14] CARVALHOSA, Modesto. LATORRACA, Nilton. Comentários à Lei de Sociedades Anônimas. Vol. 3. São Paulo: Saraiva, 1997.
[15] NEGRÃO, Op.cit p. 232
[16] NEGRÃO, Op.cit p. 258
[17] COELHO, Op.cit p. 37
[17] COELHO, Op.cit p. 41
[18] FAZZIO Jr., Op.cit p. 115.
[19] COELHO, Op.cit p. 47
[20] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. RE 948.117 – MS. (2007/0045262-5). Rel. do Acórdão: Min. Nancy Andrighi. 22/06/2010.
[21] FAZZIO Jr. Op.cit p. 117
Referências:
BULGARELLI, Waldirio. Direito Comercial. 12ª Ed. São Paulo: Atlas, 1995.
CARVALHOSA, Modesto. LATORRACA, Nilton. Comentários à Lei de Sociedades Anônimas. Vol. 3. São Paulo: Saraiva. 1997
COELHO, Fabio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. 13ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009.
NEGRÃO, Ricardo. Manual de Direito Comercial e de Empresa. 3ª ed. S. Paulo: Saraiva, 2003.
LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 11ª Ed. São Paulo: Método, 2007.
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. S. Paulo: Ed. Atlas, 2003
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 13ª Ed. São Paulo: Malheiros. 1997
BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. 6ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2004.
Informações sobre o texto
Como citar este texto (NBR 6023:2002 ABNT):
SANTOS, Silvana Duarte dos; BUDNHAK, Gerson Odacir. A desconsideração inversa da personalidade jurídica: aspectos jurisprudenciais. Jus Navigandi, Teresina, ano 17, n. 3271, 15 jun. 2012 . Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/22023>. Acesso em: 19 out. 2012.
Do Portal Jus Navegandi: (http://jus.com.br/revista/texto/22023/a-desconsideracao-inversa-da-personalidade-juridica-aspectos-jurisprudenciais/print). Acesso em: 19/out/2012.
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