Qual é o valor do empate no STF e por que Fachin está equivocado!
Debates
teóricos são coisa rara. No Brasil não se naturalizou a ideia de que um
debate teórico-jurídico é um debate teórico-jurídico; desacordos
teóricos não são críticas pessoais. Pelo menos não deveriam ser. Para
debater, há que ser educado. Lhano. Coisa rara hoje em dia.

O
tema que trago hoje atinge toda a República e coloca o Direito
brasileiro frente ao passado ocidental. Falo de nossas origens. Gregas.
Mito, logos, eidos, ousia, enfim, sem eles não seríamos o que somos.
Para o bem e para o mal.
O que me motivou? Esta notícia: “[Ministro Edson] Fachin sugere que plenário do STF reveja regra de empate em casos penais”. Na boa matéria de Fernanda Valente, aqui para ConJur,
leio que o ministro do Supremo Tribunal Federal Edson Fachin pretende
discutir o entendimento que favorece réus ou investigados em ações
penais quando há empate nos votos. “Com o empate, a regra do
regimento poderia ser interpretada para, segundo o ministro, aguardar o
voto do ministro que está ausente, com o consequente sobrestamento do
processo.”
Bem, por onde começar?
Pelo princípio. Afinal, no princípio era o...mito (com todos os problemas da ambiguidade dessa palavra hoje em dia). Explicarei.
Vejamos a manchete novamente. “Fachin sugere que plenário do STF reveja regra de empate em casos penais”.
É isso mesmo que o Ministro Fachin quer. Mas o ponto fulcral aí vai
além disso. Fachin não quer apenas rever uma regra de empate. Quer rever
um princípio. Quer rever a própria história.
A
discussão aqui é muito maior que o Regimento Interno do STF. Fachin quer
rever um princípio fundamental que faz o Direito ser o que é. O
ministro Edson Fachin quer rever a regra de empate em casos penais. O
problema é que a regra de empate em casos penais é simplesmente uma
materialização regulamentar de um princípio estruturante de civilização.
Na verdade, o ministro sugere que o plenário do STF reescreva As Eumênidas,
da trilogia Orestéia e descarte Palas Atena, a primeira juíza do
Ocidente (a peça é linda; “Conclamo os cidadãos de Atenas...”).
Na Oresteia,
Palas Atena absolve Orestes, face ao empate. Rejeita-se a vingança das
Eríneas, as deusas da fúria (que, atualmente, mudaram-se para as redes
sociais) e se inaugura o in dubio pro reo. Moral da história:
rompe-se um ciclo. Acabam-se as vinganças. A bem da verdade, tratou-se
de uma antevisão da modernidade. Uma espécie de ex-parte principio antecipado!
O
ministro Edson Fachin, portanto, sugere uma outra interpretação para um
dispositivo do RISTF? Pode ser, essa é uma leitura. Mas o que importa é
o que está por trás disso. Isto porque, ao fazê-lo, quer contrariar a
tradição mais fundamental do lugar do Direito em uma civilização.
O Ministro, entre reo e societate, fica com societate. Diante do indivíduo, escolhe o Leviatã.
A
epistemologia da tese do Ministro não encontra amparo em nenhum nome em
toda a tradição do Direito. Rejeita Palas Atena, e rejeita Dworkin, e
Ferrajoli, e todos os autores que sacaram que o Direito tem um papel de justificação e legitimação da possibilidade de coerção do Estado.
Por isso, por exemplo, na “geografia da Constituição”, as garantias
contra o Estado vêm bem no início, como um muro de contenção contra o
arbítrio. Primeiro a CF diz: vamos desigualar a desigualação. E, logo
depois, no artigo 5º., diz: aqui está o rol de garantias que você pode usar contra o arbítrio, venha ele de onde vier, mormente se da parte do Estado.
E o judiciário deve garantir essas garantias contra o arbítrio. Ou
seja: O Estado é maior. Ele é o grandão. E o cidadão é o pequeno nessa
relação. Logo, o ônus é sempre do Estado.
A tese do
Ministro, se me permitem — e o faço com toda lhaneza —, lembra o pessoal
da CBF. Na primeira fase da Copa do Brasil, aos clubes gigantes basta
empatar com o time pequeninho. Flamengo vai jogar com o River do Piauí e
basta empatar. Na dúvida, no empate, ganha o time...grande! Qual é o
sentido disso? O ônus é do River? O ônus é do réu?
Gostaria
de saber — do acadêmico e do ministro — que concepção de Direito é
essa, que não apenas endossa um vazio epistêmico como é o in dubio pro societate como busca fazer dele uma noção institucionalizada no Supremo. Em matéria penal.
Pergunto-me indagar que concepção de Direito é essa. E que concepção de societate é essa.
Afinal, no princípio era o princípio. Arché. Início e fundamento. Sem princípio, não há Direito. Sem arché, é anarché. Sem Direito, até pode haver sociedade; nunca uma sociedade civilizada.
Que o Supremo não CBFize a deusa Palas Atena.
Com todo o respeito que tenho pela Suprema Corte — e quem me acompanha sabe de minha luta institucional contra o Contempt of Court
pelo qual tem passado nosso STF (fui o primeiro ou um dos primeiros a
denunciar) —, a proposta do estimado ministro Edson Fachin não tem o
mínimo de sustentação. Nem jurídica, nem histórica, nem mitológica.
Como falei da tribuna do STF, sou um amicus epistêmico da Corte. Jamais um inimicus. Estes a Corte têm de sobra, como já se viu recentemente!
Lenio Luiz Streck é jurista, professor de Direito Constitucional e titular da Unisinos (RS) e da Unesa (RJ).
Original disponível em: (https://www.conjur.com.br/2020-set-10/senso-incomum-qual-valor-empate-stf-fachin-equivocado). Acesso em 10/set/2020.
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