Postagem no Abertura Mundo Jurídico, em 29/dez/2019...
Apropriação moral e política do Direito degrada o Estado de Direito

Os
últimos anos têm sido difíceis. A racionalidade jurídica vem sendo
substituída por “racionalidades instrumentais”, constituída de opiniões e
juízos morais. Isso atinge, diretamente, o campo da interpretação das
normas e, portando, a própria significação do Direito, cuja autonomia
torna-se cada vez menor diante de seus predadores tradicionais: a
política, a economia, a moral (e a religião). Quando o Direito vale
menos do que um juízo desse quilate, a democracia fragiliza. Direito é o
quê, afinal? Tentarei explicar esse fenômeno na sequência, na última
coluna de 2019.
O julgamento das ADCs
43, 44 e 54 ilustra bem essa questão. Bastou o anúncio da procedência
das ações para que os descontentes corressem e, mediante racionalidades
instrumentais-estratégicas, tentassem mudar o resultado obtido
legitimamente. No futebol, é o famoso “tapetão”: após a derrota em
campo, o perdedor tenta uma “virada de mesa”, custe o que custar. No
Direito, o único que não consegue mudar nada é o último da fila: o
advogado. Este joga em desigualdade de armas. Também tentarei falar
disso.
Os raciocínios finalísticos
são assim: primeiro, busca-se a solução que mais agrada; depois,
arruma-se um modo de justificá-la. Ao gosto da opinião pessoal. Basta
lembrarmos do Procurador Carlos Lima, falando na Globo News: “Escolhemos
um lado...”. Lembram?
Tudo isso se agrava quando instituições de garantia agem dessa maneira. Um agir ad hoc.
Há um comportamento — inadequado em termos democráticos e de paridade
de armas — que vem se mostrando cada vez mais frequente no cotidiano
forense.
Explico: basta uma decisão
não agradar ao Ministério Público para que, então, logo articule um
conjunto de juízos de conveniência (chamo a isso de juízos morais) a fim
de desconstituir aquilo que já se tinha construído com uma certa
solidez no campo do Direito.
Trago um exemplo recente, dentre tantos que aqui poderia citar: a Operação Calvário,
deflagrada em dezembro de 2018, que resultou na recente decretação da
prisão preventiva de dezessete pessoas, incluindo o ex-Governador da
Paraíba, a pedido do Ministério Público da Paraíba.
Após
um ano de investigações — sigilosas —, o Ministério Público aguarda o
final do ano-judiciário para ajuizar medida cautelar inominada,
requerendo ao Tribunal de Justiça da Paraíba a decretação da prisão
preventiva de dezessete pessoas, além do deferimento de diversos
mandados de busca e apreensão. Veja-se que pouca gente comenta esse
assunto, misturado às notícias de natal e final de ano. Ano duro,
diga-se.
Ora, isso não constitui
manifesto agir estratégico? Todos sabem que este tipo de medida, adotada
à véspera do recesso forense, dificulta o exercício da defesa (paridade
de armas?), cujos pedidos são examinados em regime de plantão e, caso
indeferidos, pautados somente após o carnaval...
Alguém
dirá que tudo é mera coincidência. Mas tem mais. Consta que, apesar do
longo período de investigações, o pedido de prisão preventiva se baseou,
exclusivamente, no teor de delações premiadas realizadas, todas elas,
por pessoas presas preventivamente, cujos acordos resultaram na
liberdade provisória dos colaboradores. Esse filme já é conhecido, pois
não? Então, qual é o busílis? Simples. No apagar das luzes, o MP
requereu a decretação da prisão preventiva contra entendimento já
assentado — e aqui reside o problema —, expressamente, pelo Supremo
Tribunal Federal, que já disse que a simples palavra do delator não
serve para subsidiar — plenipotenciariamente — oferecimento de denúncia e
nem mesmo para a decretação de prisão preventiva. Será que os agentes
da força-tarefa desconhecem essas decisões da Suprema Corte?
Ironia
da coisa, na data de anteontem (24/12) o Presidente sancionou a Lei nº
13.964 (Projeto Anticrime), cujo §16 do artigo 4º estabelece,
precisamente, que “medidas cautelares pessoais” e “recebimento de
denúncia” não serão decretadas com fundamento apenas nas declarações do
colaborador. É pouco? A nova lei apenas repete o entendimento pacífico
da jurisprudência do STF.
Também
consta que, em sede de habeas corpus, a defesa obteve a concessão de
liminar no Superior Tribunal de Justiça (e por seguir a jurisprudência, o
STJ foi muito criticado), que determinou a imediata soltura do
ex-Governador da Paraíba, sob o argumento — seguindo jurisprudência
sedimentada — de o que decreto prisional recorreu a “gravidade dos
fatos” aliadas a um conjunto de “situações aparentes” e “elementos
naturalísticos desatualizados”. É pouco? Mas já não há jurisprudência
pacífica sobre isso?
Liberado o
acusado, o Ministério Público — desta vez o Federal — voltou à carga com
a interposição de agravo. Legítimo? A resposta é solenemente não. Um
advogado pode até — como “jus esperneandi” — tentar interpor recursos já
chamuscados pela jurisprudência. Pode ser multado ou enfrentar
problemas éticos. Porém, o advogado não é agente político do Estado.
Mas
o MP, sim. Este é o ponto, para mim, de fundamental importância. O
Ministério Público — e este texto é uma ode a um Ministério Público
imparcial e não estrategista — é um agente político que possui as mesmas
garantias da magistratura. Por que será que o MP ganhou as garantias da
magistratura? Simples. Para não se comportar como um advogado que é
parte. Deve, pois, ser imparcial, como exige o Estatuto de Roma (art. 54
— incorporado ao Brasil em 2002 e muito citado nas decisões da Lava
Jato) e as mais desenvolvidas democracias do mundo (EUA, Itália,
Alemanha). Lhe é vedado se comportar de forma ilegal e meramente
estratégica, como venho dizendo de há muito, eu que pertenci 28 anos,
com muito orgulho, à essa Instituição de Alfredo Valadão, cuja função
não é a de perseguir pessoas a qualquer custo e, sim, a de, como dizia
Valadão, para além dos Poderes tradicionais, defender a sociedade,
denunciando abusos, vindos deles de onde vierem, inclusive do próprio
Estado (leia-se, o próprio MP e o Poder Judiciário). É pouco?
Como
explicar o manejo de um agravo que é descabido e manifestamente
contrário à jurisprudência da Corte? No âmbito do STJ, é pacífico que
não cabe agravo contra decisão desse quilate. Pacífico, aqui, quer
dizer: “é lei” no sentido de ser um precedente. Nada há a fazer senão aceitar o dito. Aliás, do modo como esse precedente foi construído, sequer há como fazer distinguishing.
Diante
desse quadro, pergunto o que venho me perguntando: é este o
comportamento (agir estratégico + pedido de prisão sem fundamento +
interposição recurso descabido) que se espera de uma instituição de
garantias, tal qual o Ministério Público? Aliás, o Supremo Tribunal já
alertou sobre o agir estratégico de juízes e promotores (ler aqui).
O caso Richa, do Paraná, é um bom exemplo do que estou falando hoje,
aqui. A coisa não é nova. Por que tamanha compulsão em ignorar questões
processuais penais — e isso vem sendo repetido diuturnamente —
sedimentadas no Supremo Tribunal Federal?
Mas,
afinal, o que quero dizer com tudo isso, na última coluna do ano? Apenas
uma coisa prosaica, que aqui reitero depois de décadas que escrevo sobre
isso. Quero dizer e lembrar que o Direito tem um grau de autonomia. O
Direito deve ser aplicado com coerência e integridade (art. 926 do CPC).
Nem o judiciário e nem o MP podem surpreender. Eles são o próprio
Estado. E as garantias processuais existem justamente contra esse poder
estatal. O próprio Judiciário, uma vez que sedimenta jurisprudência
legítima (de acordo com a CF, é claro e não contra essa) somente pode
deixar de aplicar seus próprios entendimentos quando for o caso de distinguishing
no caso concreto. As instituições devem proporcionar confiança.
Previsibilidade. Não se pode correr sozinho e chegar em segundo lugar.
Se
tenho direito a um habeas corpus, não há juízo moral ou político que
possa impedir a concessão. Como Procurador de Justiça, assim procedia. É
a confiança que o Direito deve passar à sociedade. Processo é garantia.
É forma dat esse rei. Processo é protocolo, de aplicação
obrigatória. É como o raio X do aeroporto. Ele é que garante a segurança
do voo. Essa segurança não pode depender de juízos morais do manejador
do raio X, se me permitem a comparação. E se há a concessão do HC dentro
da lei, não há juízo-moral-de-descontentamento que pode bulir com a
liberdade — seja de quem for, do mais perigoso dos meliantes ao menos
perigoso.
Aproveito, aqui, para
denunciar um novo fenômeno que vem se consolidando: o realismo jurídico
de segundo nível. Já não basta o de primeiro nível. Explico: realismo é
quando o Direito legislado acaba sendo o que o judiciário diz que é
(coisa com a qual não concordo, porém, uso, aqui, para argumentar). Daí a
pergunta: por que, então, o próprio judiciário — e o MP — desobedecem a
esse Direito, fazendo um Direito de segundo ou terceiro nível, como se a
jurisprudência fosse um palimpsesto? Por exemplo, se há entendimento
pacífico de que delação isolada não comporta denúncia nem prisão e
coisas assim, por qual razão então o Direito — já dito pelo judiciário —
passa a ser outro, por conveniência de quem o maneja? Nessa nova
fenomenologia, o cidadão — e não interessa quem seja ele — fica à mercê
dos juízos morais feitos sobre os juízos morais já feitos, com o que se
constroem camadas de raciocínios. Há limites? Eis a questão.
Tomas
da Rosa Bustamante, professor coordenador da pós-graduação da vetusta
UFMG, lembra que Joseph Raz, o mais importante positivista exclusivo
vivo, escreveu já na década de 70, que o Estado de Direito (rule of law) é um princípio que existe para servir de contraponto aos riscos que a existência de um sistema jurídico gera.
O risco de apropriação do Direito e sua utilização como arma política,
sempre esteve presente. Isto porque o direito é capaz de oprimir. Salva e
oprime. O rule of law protege o próprio Direito contra o uso distorcido dele mesmo.
Foi pensando nisso que batalhei mais um ano na busca da concretização daquilo que ajudei a colocar no art. 926 do CPC-2015: a jurisprudência dos tribunais deve ser estável, integra e coerente.
Por quê? Porque necessito ter razões para acreditar que o judiciário
acredita nas suas próprias decisões, que o MP será imparcial, que o
Direito tem um grau de autonomia, que garantias devem ser deferidas
mesmo que os agentes estatais (PJ e MP) desgostem de seu conteúdo.
Se
há um pedido a ser feito para 2020, é este, que retiro de Dworkin:
decisões judiciais (e isso se aplica ao MP) devem ser por princípio e
não por política ou moral (nesse sentido, meus livros Verdade e
Consenso, Jurisdição Constitucional e Decisão Jurídica, Dicionário de
Hermenêutica e O que é Isto – Decido Conforme Minha Consciência,
entre outros). E agir por princípio quer dizer o contrário do agir
estratégico, de fins e resultados. Agir por princípio quer dizer: mesmo
que eu não goste do réu, tenho de lhe conceder o Direito.
Feliz 2020 a todos leitores.
Lenio Luiz Streck é
jurista, professor de Direito Constitucional e pós-doutor em Direito.
Sócio do escritório Streck e Trindade Advogados Associados:
www.streckadvogados.com.br.
Revista Consultor Jurídico, 26 de dezembro de 2019, 8h00
Original disponível em: (https://www.conjur.com.br/2019-dez-26/senso-incomum-apropriacao-moral-politica-direito-degrada-estado-direito). Acesso em 29/dez/2019.