Postagem no Abertura Mundo Jurídico em 09/set/2019...
Veto do presidente à nova Lei de Abuso de Autoridade é inconstitucional
O
veto parcial do presidente da República sobre 19 artigos da nova Lei de
Abuso de Autoridade (Lei 13.869, de 5.09.2019) acabou por gerar
verdadeira descriminalização do abuso de autoridade no sistema jurídico
brasileiro, contrariando de modo frontal a vontade do Poder Legislativo
e, por isso, o princípio da separação dos poderes.
Explica-se.
A lei aprovada estabelecia tipos penais de abuso de autoridade,
oferecendo novos contornos à matéria, razão pela qual determinava, em
seu artigo 44, a revogação integral da Lei 4.898/65 (lei anterior de
abuso de autoridade) e o artigo 350 do Código Penal, que tipificava a
conduta de “ordenar ou executar medida privativa de liberdade
individual, sem as formalidades legais ou com abuso de poder”, cuja pena
cominada era de detenção, de um mês a um ano.
Essa
norma justificava-se na medida em que a nova lei criava, em seu artigo
9º, um tipo penal mais restritivo que o anterior, ao estabelecer o crime
de “decretar medida de privação da liberdade em manifesta
desconformidade com as hipóteses legais”, com uma sanção distinta e mais
grave (detenção, de um a quatro anos, e multa).
Com
o veto ao artigo 9º sem o correspondente veto ao artigo 44, o ato
presidencial operou, por via transversa, a descriminalização do Código
Penal, gerando um efeito jurídico diametralmente oposto – e por isso
inconstitucional – à soberana vontade do Parlamento.
O
mesmo efeito ocorreu com o veto ao artigo 43 da nova lei, que
determinava nova redação à Lei 8.906/1994, criando o tipo penal de
violação às prerrogativas profissionais do advogado (Artigo 7º-B
Constitui crime violar direito ou prerrogativa de advogado previstos nos
incisos II, III, IV e V do caput do artigo 7º desta Lei: Pena -
detenção, de três meses a um ano, e multa.).
Essa disposição era mais específica e com sanção mais grave à previsão do artigo 3º, i, da Lei nº 4.898/65 (Artigo
3º. Constitui abuso de autoridade qualquer atentado: j) aos direitos e
garantias legais assegurados ao exercício profissional.), também agora
revogada pelo artigo 44 da Lei nº 13.869/2019.
Trata-se
do que a doutrina de direito constitucional denomina de abuso do poder
de veto, como já descrevia Manoel Gonçalves Ferreira Filho “A
experiência, porém, indica um outro uso do poder de vetar parcialmente
os projetos de lei. Uso que é verdadeiro abuso. A prática constitucional
brasileira revela que no período posterior a 1926 os Presidentes da
República brasileira souberam transformar o veto parcial em instrumento
de legislação, mudaram o seu caráter de ‘faculté d’empêcher’ para
‘faculté de statuer”.[1]
Ou
seja, o veto limita-se ao exercício de oposição do Presidente a ato do
Poder Legislativo, e não pode estatuir, constituir, criar uma nova regra
de direito, sob pena de se converter em um instrumento oblíquo de
atividade legiferante do Poder Executivo, como sustentava Nestor
Massena: “O veto é convite do Poder Executivo ao Legislativo no sentido
de aprimorar a sua produção, apresentando-a sem eiva de não
constitucional, de não conveniente; não é, porém, a substituição desse
por aquele poder na atribuição, que, se não lhe é privativa, é precípua,
de legislar.”[2]
O
indevido e inconstitucional veto feito pelo presidente da República é,
pois, verdadeira violação àquilo que Ronald Dworkin, em seu O Império do Direito,
chama de "integridade na legislação". Ou seja, um desenvolvimento
legislativo normativamente consiste no exercício da legislação. Isso
porque a crítica de Dworkin às assim chamadas leis conciliatórias (ou de
ocasião), em última análise, visa à garantia do princípio
constitucional da igualdade. Nitidamente, o veto, do modo como foi
posto, cria uma situação teratológica. Um Frankenstein jurídico.
Por
isso, espera-se que a maioria absoluta dos membros da Câmara dos
Deputados e do Senado derrube o teratológico veto do presidente da
República. Tal como sancionada, em razão desses graves e
primários erros técnicos – diga-se, profundamente lamentáveis - , a Lei
13.869/2019 é inconstitucional e, sobretudo, um atentado ao Poder
Legislativo brasileiro. E ao Estado de Direito.
Se
o Parlamento não conseguir a maioria absoluta (veja-se, há diferença de
quórum para a aprovação da lei e para a derrubada de veto), resta ao
STF declarar a inconstitucionalidade do veto por abuso de poder e/ou
infração à separação de poderes. Trata-se de corrigir um efeito
decorrente de grave erro.
No
caso, como havia uma “operação casada” feita pelo legislador entre
novos tipos (que foram vetados) e tipos a serem revogados (efetivamente
revogados por não terem sido vetados), não é desarrazoado sustentar o
cabimento de uma interpretação conforme a Constituição (verfassungskonforme Auslegung),
no sentido de que os dispositivos revogados continuam válidos, porque o
veto ofendeu a proibição de proteção insuficiente de bens jurídicos
relevantes (Untermassverbot) – tese que não é estranha ao STF.
Afinal, a revogação sem a correspondente tipificação resultante da
operação casada deixa um vazio, isto é, deixa desprotegidos bens
jurídicos relevantes, o que reclama intervenção da jurisdição
constitucional.
A ver, pois.
[1] O veto parcial no Direito Brasileiro. Revista de Direito Público, v.4, n.17, p.33-37, jul./set. 1971.
[2] Veto parcial. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 26, p. 441-443, out. 1951.
Lenio Luiz Streck é
jurista, professor de Direito Constitucional e pós-doutor em Direito.
Sócio do escritório Streck e Trindade Advogados Associados:
www.streckadvogados.com.br.
Juliano Breda é advogado, doutor em Direito pela UFPR.
Revista Consultor Jurídico, 7 de setembro de 2019, 11h27
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