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Moro não fundamentou a decisão de condução coercitiva do Ex-Presidente

Djeff Amadeus
Advogado
Quinta-feira, 10 de março de 2016
Este é um texto duro. Aliás,
duríssimo. Trata-se, em ultima ratio, de uma defesa intransigente
da fundamentação judicial como um princípio inegociável. Há muito se sabe – ou
deveria ser sabido – que a Constituição da República obriga, no art. 93, IX,
que todas as decisões judiciais sejam fundamentadas, sob pena de nulidade. Por
isso, é imprescindível, hoje, mormente em razão da recente decisão do juiz
Moro, que permitiu a condução coercitiva do Ex-Presidente da República, Luis
Inácio Lula da Silva, discutir o papel da fundamentação decisão judicial no
campo processual penal. Afinal, não me parece que seria demasia exigir de um
ato de duvidosa constitucionalidade, que causa danos duradouros – e até
permanentes – uma adequada fundamentação. Por isso, faço coro ao professores
Geraldo Prado e Lenio Streck que, com razão, assinalaram que a Constituição tem
sido sistematicamente violada na operação “lava jato”, sobretudo após o
lamentável (processo penal do espetáculo[1]), que ficou marcado como “o
dia em que um ex-presidente da República foi ilegal e inconstitucionalmente
preso por algumas horas”, sendo o ato apelidado de “condução coercitiva”.
Se já foi dito – e ninguém
duvida disso – que a condução coercitiva do Ex-Presidente da República, nos
moldes em que fora feita, constituiu uma prisão (ilegal) por algumas horas, uma
vez que não levou em consideração nem os arts. 218 e 260 do CPP (de duvidosa
constitucionalidade, registre-se), proponho, então, que voltemos nossas
atenções agora ao não lido, isto é, aquilo que Heidegger chamaria de “não
dito”.[2]
Para desenvolver esta afirmação
– e entender porque o juiz Moro não fundamentou a sua decisão – é preciso ter
mente as lições de Heidegger no sentido de que existe naquilo que lemos – entre
as linhas – o não lido; naquilo que dizemos o não dito.[3] Pois o que não foi
dito ainda é que o juiz Moro também violou a Constituição ao não fundamentar a
referida decisão! Isso mesmo: a fundamentação do juiz moro que permitiu a
ilegal condução coercitivo é um clássico exemplo de não fundamentação! Como
assim? Explico.
Não obstante hoje seja
indiscutível a necessidade de fundamentação das decisões judiciais, o fato é
que isso nem sempre foi assim. Basta ver, por todos, os julgamentos baseados
nas ordálias ou juízos de Deus do direito bárbaro germânico da alta idade
média.[4] O mesmo pode-se afirmar, diga-se de passagem, com as decisões das
monarquias absolutistas instauradas na Europa a partir XIV, que, via de regra,
também eram imotivadas pela lógica semelhante às ordálias, isto é, “o
julgamento, que cabia ao rei soberano, era tão infalível quanto o juízo divino,
e a autoridade do julgador fazia presumir a ausência de qualquer defeito na
conclusão a que ele chegava.”[5] Embora após a abolição das ordálias pelo
Concílio de Latrão, em 1215, tenha surgido algumas breves alusões aos motivos
da decisão no direito canônico,[6] o fato é que nada disso alterou o caráter inquisitório
daquele sistema; prova disso é que havia quem criticasse a exigência de
motivação judicial porque ela poderia “dificultar a aplicação da justiça”.[7]
Mas o que tudo isso tem a ver
com a decisão do juiz Moro? – é a pergunta que, aqui, parece mais natural.
Muito – para não dizer: tudo – na medida em que alguém poderia dizer que a
incorporação do elemento motivação tornaria a decisão do supracitado juiz
diversa daquelas anteriormente citadas. Ledo engano. Para entender isso, é
preciso ter bem claro que existe uma diferença fulcral entre fundamentar e
explicar,[8] é dizer: o juiz Moro explicou – e não fundamentou! – sua decisão
quando afirmou que, “Com a medida, sem embargo do direito de manifestação
política, previnem-se incidentes que podem envolver lesão
a inocentes.”[9]
Ao fazer isso, o retrocitado
juiz utilizou a sua preocupação – que nada mais é do que uma explicação – como
fundamento para a referida decisão judicial. O problema, como parece elementar,
é que o processo penal não é o campo para a externação das inquietações dos
juízes. Por isso, diz Ramires, “Fundamentar validamente não é explicar a
decisão. A explicação só confere à decisão uma falsa aparência de validade.”[10]
No mesmo sentido, Nilo Bairros de Brum, alertara, de há muito, ao fato de
que não basta a “imunização” da sentença com requisitos retóricos bem
trabalhados para que esta assuma o feitio democrático.[11] Evidente que não,
afinal, como bem ensinou o mestre Canotilho "O elemento
democrático não foi apenas introduzido para <> o poder (to check
the power); foi também reclamado pela necessidade de legitimação do mesmo
poder.”[12]
Por isso, para os efeitos do
que está sendo debatido aqui, é preciso deixar claro que existe uma diferença
determinante entre decidir e escolher, de sorte que uma decisão
constitucionalmente fundamentada “não pode ser entendida como um
ato em que o juiz, diante de várias possibilidades possíveis para a solução de
um caso concreto, escolhe aquela que lhe parece mais adequada”.[13] Quando
isso acontece – como foi no caso do juiz Moro – trata-se muito mais de uma
ética de convicção do que uma ética de compromisso com a Constituição, razão
pela qual a consequência é uma grandiloquência na palavra e a arbitrariedade
dos atos.
Desde esta perspectiva, “um
Estado democrático só será verdadeiramente democrático se se fundar na
vergonha”, como bem registrou Coutinho,[14] isto é: enquanto violações às
garantias processuais ocorridas no âmbito da “lava-jato” forem vistas como “uma
alavanca e o ponto de apoio para mudar o mundo”, como disse o Procurador
responsável pela Lava-Jato[15], é porque nos tornamos pessoas desprovidas
daquela vergonha; e sem esta referência o Ex-Presidente da República tornou-se
mero objeto, literalmente humilhado; e tudo isso sem causar grande – para não
dizer nenhum – estupor.
Um adendo final: foi insinuado
na decisão que a medida poderia ser para a proteção do presidente. Ao que
parece, o juiz Moro estaria muito preocupado com a integridade do
Ex-Presidente. Diante disso, gostaria de finalizar o texto com a anedota da
“idosa bondosa”. É o seguinte: um operário estava sendo agredido por mais de
dez pessoas. Num dado momento, a idosa bondosa, ao se deparar com aquela cena,
interrompe-os, e diz: - Que covardia! Pobre coitado do operário. Apanhou tanto,
que até os dedos lhes arrancaram. Certamente, em seu lugar, eu preferiria a
morte! Incontinenti, fora interrompida pelo operário, que esbravejou: - Fique
quieta porque quem está apanhando sou eu; e está muito bom assim! Moral da
história: Se o Moro estava preocupado com o Ex-Presidente, era melhor ter
perguntado a ele, não?[16]
Djeff Amadeus é Mestrando em Direito
(UNESA- RJ). Pós-graduado em filosofia contemporânea (PUC-RJ). Pós-Graduando em
Ciências Criminais (UERJ). Advogado.
[1] Segundo o Juiz com com J maiúsculo, Rubens
Casara, no processo penal voltado para o espetáculo não há espaço para garantir
direitos fundamentais. (...) No processo penal do espetáculo, o desejo de
audiência é substituído pelo “desejo de audiência”. CASARA, Rubens. Processo
Penal do Espetáculo. Ensaios sobre o Poder Penal, a dogmática e o autoritarismo
na sociedade brasileira. Florianópolis: Empório do Direito, 2015, p. 130
[2]H EIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Edição em
Alemão e Português. Tradução e Organização: Fausto Castilho. Campinas: Vozes,
2014, p. 87.
[3] STEIN, Ernildo. Epistemologia e Crítica da
Modernidade. 3. Ed. Rio Grande do Sul: UNIJUÌ,2001, p.41
[4] GOMES Filho, Antônio Magalhães. A
Motivação das Decisões Penais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 53.
[5] RAMIRES, Maurício. Crítica à aplicação de
precedentes no direito brasileiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010.p.
18.
[6] RAMIRES, Maurício. Crítica à aplicação de
precedentes no direito brasileiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010.p.
19.
[7] GOMES Filho, Antônio Magalhães. A
Motivação das Decisões Penais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 53.
[8] STRECK, Lenio Luiz. O que é isto –
decido conforme minha consciência? Porto Alegre: Livraria do Advogado
Editora, 2010, 34
[9]http://jota.uol.com.br/leia-o-despacho-de-sergio-moro-determinando-a-conducao-coercitiva-de-lula
[10] RAMIRES, Maurício. Crítica à aplicação de
precedentes no direito brasileiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010.p.
23.
[11] BRUM, Nilo Bairros de. Requisitos
retóricos da sentença penal. São Paulo: RT, 1980, p. 72 e ss.
[12]
[13] STRECK, Lenio Luiz. O que é isto –
decido conforme minha consciência? Porto Alegre: Livraria do Advogado
Editora, 2010, 34
[14] MIRANDA COUTINHO, Jacinto Nelson de.
Estado de Polícia: Matem O Bicho! Cortem A Garganta! Tirem O Sangue. (Coord.)
Direito e Psicanálise: intersecções e Interlocuções a Partir de O Senhor das
Moscas de Willian Golding. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2011, p.181.
[15]http://www.paranaonline.com.br/editoria/politica/news/936314/?noticia=PROCURADOR+DIZ+QUE+LAVA+JATO+PODE+SER+ALAVANCA+PARA+MUDAR+O+MUNDO
[16] "A anedota de cunho alegórico foi
inspirada a partir de uma aula de mestrado pelo Prof. Lenio".
Original disponível em: (http://justificando.com/2016/03/10/moro-nao-fundamentou-a-decisao-de-conducao-coercitiva-do-ex-presidente/?utm_content=buffer19bcb&utm_medium=social&utm_source=twitter.com&utm_campaign=buffer). Acesso em 10/mar/2016.
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