Postagem 26/jan/2016...
Por Ravi Peixoto
Recentemente, a Suprema Corte Americana foi provocada a superar um determinado precedente no caso Stephen Kimble, et al., petitioners v. MARVEL Entertainment, LLC, successor to MARVEL Enterprises, INC e se manifestou da seguinte forma:
“O que nós decidimos, nós podemos modificar. Mas o stare decisis ensina que nós devemos exercer esse poder com moderação. Cf. S. Lee e S. Ditko, Amazing Fantasy No. 15: “Spider- Man,” p. 13 (1962) (“Nesse mundo, com grandes poderes vêm – grandes responsabilidades”). Encontrar muitas razões para permanecer no curso do stare decisis e nenhuma “justificativa especial” para se afastar dele, nós rejeitamos o convite de Kimble para superar Brulotte.” (1)
Primeiro, o contexto original da frase: O Homem Aranha é um super herói que ganha os seus poderes após ser picado por uma aranha radioativa. Com isso, ele ganha vários poderes, como super-força, lançar teias, pular alto, dentre outros. Inicialmente, ele usa os seus poderes para se divertir, para ganhar dinheiro em campeonatos de luta livre. Um certo dia, o seu Tio Bem diz a ele, mesmo sem saber dos seus poderes, que “com grandes poderes vêm grandes responsabilidades”. A princípio, ele não leva isso a sério, mas, depois de ter a oportunidade de impedir um assalto e não o fazer, este mesmo assaltante acaba por assassinar o seu amado tio. Após esse acontecimento, o Peter Parker, vulgo Homem-Aranha, acaba se inspirando nas palavras do falecido tio para usar seus poderes para combater o crime.
Enfim, o que isso tem a ver com a teoria dos precedentes?
Dentre os vários deveres que surgem para a magistratura com a adoção de precedentes obrigatórios é a de levar os seus próprios precedentes a sério (2).
A adoção do stare decisis não significa, de forma alguma, o engessamento do direito. Existem diversas técnicas desenvolvidas pela jurisprudência e doutrina do common law, para além da própria interpretação dos precedentes, aptas a permitir um maior dinamismo na aplicação dos precedentes.
A principal delas, para os fins deste ensaio, é o overruling, denominação atribuída à técnica de superação de um entendimento anterior sobre o mesmo objeto agora em julgamento; técnica que é essencial para qualquer sistema de precedentes, permitindo que o sistema possa evoluir. Ao contrário do que possa parecer, a superação de precedentes, desde que utilizada com os devidos cuidados, promove o stare decisis, em vez de enfraquecê-lo, ao demonstrar que a existência de precedentes obrigatórios não significa impossibilidade de evolução do direito (3).
Para além da vinculação de precedentes, a manutenção de um entendimento jurisprudencial estabelece uma nova camada na concretização do princípio da segurança jurídica. Consoante aponta Jeremy Waldron, não se trata apenas de garantir previsibilidade pela vinculação, mas sim “conceder tempo aos jurisdicionados para se acostumar com a norma jurisdicional e a internalizar como base para a sua tomada de decisões” (4).
Quando se tem um precedente vinculante, quanto mais tempo ele continua a ser respeitado e aplicado pelos demais tribunais, mais ele se torna parte da própria cultura dos indivíduos a eles sujeitos. Se há um precedente afirmando que determinada conduta não é tributável, tanto as empresas não levarão aquele gasto em seu planejamento, como os entes públicos não considerarão aquela receita. E com o passar do tempo, a confiança de todos naquele entendimento torna-se cada vez mais arraigada.
Por óbvio, isso não significa que os precedentes se tornem imutáveis. O direito há de ser adaptável às alterações ocorridas na sociedade, do contrário, acaba por haver uma crise e, eventualmente, a criação de uma situação insustentável. Ocorre que a superação de precedentes, em uma cultura que se utiliza dos precedentes obrigatórios, é um momento traumático, atuando como uma espécie de válvula de escape. Não se pode modificar entendimentos como se troca de roupa.
Em outras palavras, e já contextualizando a teoria dos precedentes e o Homem-Aranha, se o ordenamento jurídico concede grandes poderes ao Poder Judiciário, com a fixação de precedentes obrigatórios, exige deles também uma grande responsabilidade (afinal, revista de quadrinhos também é cultura e pode passar uma ótima mensagem ao Poder Judiciário brasileiro). Uma das facetas dessa responsabilidade é o cuidado com a confiança dos jurisdicionados no momento da superação de precedentes. Esta não deve ser baseada na mera mudança de opinião dos ministros, mas depender sempre de uma análise objetiva do ordenamento jurídico e da sociedade que o envolve.
Não por acaso a doutrina sempre se preocupa em desenvolver critérios objetivos para que possa ocorrer a superação de precedentes. Esse não é o momento de discutir isso, sob pena de alongar indevidamente este ensaio (5), mas apenas de apontar a relevância e o cuidado na utilização da técnica da superação de precedentes.
Afinal, como já dizia o Tio Ben (agora personificado pela Justice Kagan), “[I]n this world, with great power there must also come — great responsibility”. Que essa interessante mensagem possa ser absorvida especialmente pelos tribunais superiores brasileiros, que tanto mudam inadvertidamente de opinião, desconsiderando completamente a confiança dos jurisdicionados.
Notas:
(1) Tradução livre de: What we can decide, we can undecide. But stare decisis teaches that we should exercise that authority sparingly. Cf. S. Lee and S. Ditko, Amazing Fantasy No. 15: “Spider- Man,” p. 13 (1962) (“[I]n this world, with great power there must also come—great responsibility”). Finding many reasons for staying the stare decisis course and no “special justification” for departing from it, we decline Kimble’s invitation to overrule Brulotte.
(2) PEIXOTO, Ravi; MACÊDO, Lucas Buril de. Levando os precedentes a sério.
(3) SPRIGGS, II, James F.; G. HANSFORD, Thomas. Explaining the Overruling of U.S. Supreme Court Precedent. The Journal of Politics, v. 63, n. 4, 2001, p. 1094.
(4) Tradução livre de: “It is about people having time to take a norm on board and internalize it as a basis for their decisionmaking”. (WALDRON, Jeremy. Stare decisis and the rule of law: a layered approach… cit., p. 28).
(5) O tema pode ser visto com maior profundidade nas seguintes obras: PEIXOTO, Ravi. Superação do precedente e segurança jurídica. Salvador: Juspodivm, 2015, p. 200-209; MACÊDO, Lucas Buril de.Precedentes judiciais e o direito processual civil. Salvador: Juspodivm, 2015, p. 390-399.
Ravi Peixoto é Mestre em Direito (UFPE). Membro da Associação Norte Nordeste de Professores de Processo (ANNEP), do Centro de Estudos Avançados de Processo (CEAPRO) e da Associação Brasileira de Direito Processual (ABDPRO). Procurador do Município de João Pessoa. Autor do livro “Ônus da prova e sua dinamização” escrito em conjunto com Lucas Buril de Macedo. Organizador, em conjunto com Fredie Didier Jr., do “Novo Código de Processo Civil de 2015 – Comparativo com o Código de 1973″.
Foto: Fotolia
Publicado em 21/01/2016
Original disponível em: (http://portalprocessual.com/o-homem-aranha-e-a-teoria-dos-precedentes-com-grandes-poderes-vem-grandes-responsabilidades/).
Acesso em 26/jan/2016.
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