Postagem 23/jan/2016...
Ementa:
DIREITO DE FAMÍLIA. AÇÃO DE DECLARAÇÃO DE UNIÃO ESTÁVEL POST MORTEM. FALECIDO QUE MANTEVE UNIÕES DURADOURAS COM A ORA AUTORA E A ORA RÉ. PRÉVIA AÇÃO DE JUSTIFICAÇÃO AJUIZADA PELA ORA RÉ COM O RECONHECIMENTO DE UNIÃO ESTÁVEL ENTRE ELA E O FALECIDO. JUIZ DE ORIGEM QUE, DIANTE DA NOTÍCIA DESSA DECISÃO, JULGOU O PRESENTE FEITO EXTINTO POR RECONHECIMENTO DE COISA JULGADA. INEXISTÊNCIA DE IDENTIDADE DE PARTES, DE PEDIDO OU CAUSA DE PEDIR. NULIDADE DA SENTENÇA. CAUSA MADURA PARA JULGAMENTO. POSSIBILIDADE JURÍDICA DO RECONHECIMENTO DE FAMÍLIAS SIMULTÂNEAS. RELACIONAMENTO ENTRE A AUTORA, ORA APELANTE, E O FALECIDO QUE SE ENQUADRA NOS REQUISITOS DE UMA ENTIDADE FAMILIAR. EQUIPARAÇÃO DO CONCUBINATO NÃO ADULTERINO À UNIÃO ESTÁVEL PARA PRODUÇÃO DE EFEITOS JURÍDICOS. I - É descabido falar em coisa julgada em relação à comentada sentença que decidiu a ação de justificação de união estável post mortem: a uma, porque o reconhecimento de união estável só ocorre mediante sentença em ação declaratória transitada em julgado; a duas, porque as demandas referidas na sentença (ação de justificação ajuizada por Maria das Graças e a ação declaratória ajuizada por Maria dos Remédios) não possuem identidade de partes, nem de pedido, nem de causa de pedir; e, a três, porque inexiste prejudicialidade nem impossibilidade jurídica no reconhecimento de famílias simultâneas;
II - É família toda união de pessoas em respeito e consideração mútuos, com ostensividade e publicidade, com o objetivo de comunhão de vida, mútua assistência moral e material, e de serem reconhecidos pela comunidade como uma família. Assim, sempre que um núcleo for formado por pessoas que se enquadrem em tais requisitos, deve ser reconhecida a configuração de uma família, independente da qualificação que se dê a esta: se formada por um casamento, por uma união estável ou por um concubinato estável (espécies do gênero "família").
III - É cristalina a constatação, pela provas dos autos, de que o falecido soube manter com discrição e profundidade dois relacionamentos paralelos, não misturando os círculos sociais de entorno a cada composição familiar.
Apelação provida.
(TJ-MA - APL: 0393812014 MA 0015505-24.2013.8.10.0001, Relator: JAMIL DE MIRANDA GEDEON NETO, Data de Julgamento: 12/03/2015, TERCEIRA CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 16/03/2015).
Acórdão integral:
Estado do Maranhão
Poder Judiciário
_
Sessão do dia 12 de março de 2015
APELAÇÃO CÍVEL Nº 0015505-24.2013.8.10.0001
39381/2014 - SÃO LUÍS
Relator : Desembargador Jamil de Miranda Gedeon Neto
Apelante : M. R. C. C.
Advogado (s) : João de Araujo Braga Neto, Michelle Teixeira Araujo, Mário Alexon Pires Ferreira
Apelados : M. G. S. e outros
Advogado (s) : Maíra de Jesus Freitas Passos
ACÓRDÃO Nº
DIREITO DE FAMÍLIA. AÇÃO DE DECLARAÇÃO DE UNIÃO ESTÁVEL POST MORTEM. FALECIDO QUE MANTEVE UNIÕES DURADOURAS COM A ORA AUTORA E A ORA RÉ. PRÉVIA AÇÃO DE JUSTIFICAÇÃO AJUIZADA PELA ORA RÉ COM O RECONHECIMENTO DE UNIÃO ESTÁVEL ENTRE ELA E O FALECIDO. JUIZ DE ORIGEM QUE, DIANTE DA NOTÍCIA DESSA DECISÃO, JULGOU O PRESENTE FEITO EXTINTO POR RECONHECIMENTO DE COISA JULGADA. INEXISTÊNCIA DE IDENTIDADE DE PARTES, DE PEDIDO OU CAUSA DE PEDIR. NULIDADE DA SENTENÇA. CAUSA MADURA PARA JULGAMENTO. POSSIBILIDADE JURÍDICA DO RECONHECIMENTO DE FAMÍLIAS SIMULTÂNEAS. RELACIONAMENTO ENTRE A AUTORA, ORA APELANTE, E O FALECIDO QUE SE ENQUADRA NOS REQUISITOS DE UMA ENTIDADE FAMILIAR. EQUIPARAÇÃO DO CONCUBINATO NÃO ADULTERINO À UNIÃO ESTÁVEL PARA PRODUÇÃO DE EFEITOS JURÍDICOS.
I - É descabido falar em coisa julgada em relação à comentada sentença que decidiu a ação de justificação de união estável post mortem: a uma, porque o reconhecimento de união estável só ocorre mediante sentença em ação declaratória transitada em julgado; a duas, porque as demandas referidas na sentença (ação de justificação ajuizada por Maria das Graças e a ação declaratória ajuizada por Maria dos Remédios) não possuem identidade de partes, nem de pedido, nem de causa de pedir; e, a três, porque inexiste prejudicialidade nem impossibilidade jurídica no reconhecimento de famílias simultâneas;
II - É família toda união de pessoas em respeito e consideração mútuos, com ostensividade e publicidade, com o objetivo de comunhão de vida, mútua assistência moral e material, e de serem reconhecidos pela comunidade como uma família. Assim, sempre que um núcleo for formado por pessoas que se enquadrem em tais requisitos, deve ser reconhecida a configuração de uma família, independente da qualificação que se dê a esta: se formada por um casamento, por uma união estável ou por um concubinato estável (espécies do gênero "família").
III - É cristalina a constatação, pela provas dos autos, de que o falecido soube manter com discrição e profundidade dois relacionamentos paralelos, não misturando os círculos sociais de entorno a cada composição familiar.
Apelação provida.
Vistos, relatados e discutidos os presentes autos, acordam os Senhores Desembargadores integrantes da Terceira Câmara Cível do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão, por unanimidade e contra o parecer ministerial, em dar provimento ao recurso, nos termos do voto do Desembargador Relator.
Votaram os Senhores Desembargadores Jamil de Miranda Gedeon Neto, Lourival de Jesus Serejo Sousa e Marcelino Chaves Everton.
Presidiu o julgamento o Senhor Desembargador Jamil de Miranda Gedeon Neto.
Presente a Senhora Procuradora de Justiça, Themis Maria Pacheco de Carvalho.
São Luis/MA, 12 de março de 2015.
Desembargador JAMIL DE MIRANDA GEDEON NETO
Relator
R E L A T Ó R I O
Estado do Maranhão
Poder Judiciário
_
Relata que dessa união nascera seu único filho, M. J. C. C., e que recebe proventos pelo extinto da Polícia Rodoviária Federal, de onde o mesmo era funcionário.
Requer, assim, o reconhecimento da união estável, para fins de direito.
Às fls. 265/269 encontra-se a sentença recorrida.
Em suas razões recursais de fls. 122/134, M. R. C. C. sustenta que todas as alegações contidas na peça vestibular foram comprovadas por depoimentos pessoais, oitiva de testemunhas, fotos e documentos, que denotam a relação de afeto e companheirismo público, notório e duradouro entre a recorrente e o falecido, tanto que este ofertou, ainda em vida, alimentos para a mesma, continuando o relacionamento até a data de seu falecimento.
Aduz que inexiste identidade de partes, pedido ou causa de pedir entre as demandas apontadas, razão pela qual é indevido o reconhecimento da coisa julgada, e que, mesmo que reconhecida como mera sociedade de fato a relação da recorrente com o de cujus, deve ser garantida a divisão patrimonial nos termos da súmula 380 do STF.
Requer, assim, o provimento do recurso para julgamento procedente dos pedidos autorais.
Contrarrazões às fls.306/314.
Com vista dos autos, a Procuradoria de Justiça opinou pelo conhecimento e parcial provimento do recurso, para que a decisão de extinção seja cassada e o processo seja suspenso até o julgamento da ação rescisória nº 41496/2013 (fls.323/328).
É o relatório.
V O T O
O recurso é tempestivo e atendidos se encontram os demais requisitos de admissibilidade.
Outrossim, deixo de acolher o pedido de suspensão do feito, tal como formulado pela douta Procuradoria de Justiça, pois, como demonstrarei adiante, o julgamento da ação rescisória em comento não tem o condão de atingir a relação jurídica discutida nos presentes autos.
Passo, então, ao seu exame.
I. DA INEXISTÊNCIA DE COISA JULGADA
Ab initio, cumpre afastar a existência de coisa julgada, conforme alegado pelo MM. juiz de origem na decisão ora recorrida.
Assim se manifestou o julgador (fl.268):
No decorrer da instrução processual, ambas as partes demonstraram que conviveram com o falecido em várias fases de sua vida, tendo sido gerada prole de ambos os relacionamentos. A requerida possui três filhos com o extinto, enquanto que a autora possui apenas um. Portanto, os argumentos da parte ré para ver reconhecido o seu relacionamento com o falecido e não o da autora, possuem grande verossimilhança.
Contudo, resta provado nos autos que fora julgada procedente pela 3ª Vara da Família da capital, o reconhecimento de união estável entre Maria das Graças Saraiva e José de Ribamar Castro, fato que grou o ajuizamento da Ação Rescisória nº 41.496/2013, a qual encontra-se pendente de julgamento pela 3ª Câmara Cível, do Tribunal de Justiça deste Estado.
Desta feita, concluo que a matéria sob exame encontra-se envolvida pelo manto da Coisa Julgada, enquanto pendente o julgamento da ação rescisória, a qual, sabidamente, se presta a rescindir a sentença já transitada em julgado.
Sendo alvo de coisa julgada, descabe a este Juízo rediscutir a existência de união estável entre o falecido e as litigantes. Ademais, em caso de improcedência da ação rescisória, poderiam ocorrer julgamentos conflitantes e a conseqüente nulidade da segunda sentença de mérito, que versou sobre questão já consolidada pela res juidicata.
A extinção da ação sem resolução do mérito é medida que se impõe, nos termo do artigo 267, inciso V, do CPC ... .
Analisando, porém, as razões de decidir do julgado de origem, tenho que não possui fundamento a alegação de coisa julgada.
Nos termos do artigo 301 do Código de Processo Civil, por coisa julgada entende-se "quando se reproduz ação anteriormente ajuizada" (§ 1º), sendo que uma ação é idêntica à outra quando "tem as mesmas partes, a mesma causa de pedir e o mesmo pedido" (§ 2º).
Na lição da doutrina, a coisa julgada é instituto processual que visa dar segurança jurídica às relações firmadas entre as partes, a partir da imutabilidade do pronunciamento jurisdicional definitivo proferido em determinada demanda[1].
Para sua configuração e produção de efeitos, possui limites de duas ordens: objetivos e subjetivos.
Os limites objetivos à coisa julgada correspondem aos limites da lide e das questões decididas. Ou seja: só pesa autoridade de coisa julgada sobre a parte decisória da sentença, o dispositivo da sentença de mérito[2].
Já os limites subjetivos dizem respeito às partes sobre as quais foi a sentença proferida, pois a sentença, em regra, só faz coisa julgada material entre as partes do processo na qual foi prolatada, não beneficiando nem prejudicando terceiros diretamente[3].
Isto porque "a sentença, como ato jurídico que é, existe e vale com respeito de todos, embora os que não fizeram parte da demanda possam questionar o seu resultado" (STJ, REsp. 804.044/GO, DJe 19.05.09)[4].
Assim sendo, a coisa julgada é instituto que se presta a evitar o ajuizamento reiterado de demandas para discutir as mesmas causas de pedir e pedidos entre as mesmas partes, assentando a solução única para os conflitos de interesse que observem os limites objetivos e subjetivos acima descritos.
Porém, trazendo a matéria da coisa julgada para a situação dos autos, vejo que é descabido falar em coisa julgada em relação à sentença que decidiu a ação de justificação de união estável post mortem: a uma , porque o reconhecimento de união estável só ocorre mediante sentença em ação declaratória transitada em julgado; a duas , porque as demandas referidas na sentença (ação de justificação ajuizada por Maria das Graças e a ação declaratória ajuizada por Maria dos Remédios) não possuem identidade de partes, nem de pedido, nem de causa de pedir; e, a três , porque inexiste prejudicialidade nem impossibilidade jurídica no reconhecimento de famílias simultâneas.
Em primeiro plano, já decidiu o Superior Tribunal de Justiça que "O procedimento de justificação judicial, de jurisdição voluntária, é apenas um meio de prova a ser considerado, dentre os outros produzidos, não tendo força bastante para, de forma cabal, como quer a recorrente, constituir a sua qualidade de ex-companheira" (REsp 793.182/RS, Rel. Min. FERNANDO GONÇALVES, Quarta Turma, DJ 18/2/08).
Em segundo plano, o instituto da coisa julgada só é admitido em processos idênticos, ou seja, em que se discute a mesma causa de pedir e os
Estado do Maranhão
Poder Judiciário
_
mesmos pedidos, formulados pelas mesmas partes. Daí ser a coisa julgada o impedimento para o ajuizamento de demanda repetida, na dicção do artigo 301 do CPC, o que não é o caso dos autos, pois a sentença referente à ação anteriormente proposta por M . S., reconheceu a união estável entre ela e o finado.
Porém, nos presentes autos, o que há é uma ação proposta não por M. G S, mas sim, por M. dos R. C. C., objetivando o reconhecimento de outra união estável, desta feita, entre ela e J. Ri. C., o mesmo de cujus.
Na ação de justificação a que se referiu o magistrado de origem, só se fez presente Maria das Graças Saraiva e seus respectivos filhos, enquanto que na presente ação de declaração se fez presente no pólo ativo Maria dos Remédios Chaves Cardoso e no pólo passivo todos os filhos do de cujus e mais ainda M.s G. S.; na primeira ação, a causa de pedir foi o relacionamento entre M. G. e o falecido, e na segunda, o relacionamento entre M. dos R. e o de cujus.
Não há, portanto, entre a primeira ação e a presente ação, as mesmas partes, a mesma causa de pedir o mesmo pedido, razão pela qual não há coisa julgada a constituir óbice ao julgamento do mérito do presente feito.
A bem da verdade, cumpre registrar que, tanto na ação de justificação quanto na ação declaratória, as partes autoras silenciaram quanto a existência dos filhos do outro relacionamento do de cujus e a existência de outra parceira do falecido, não sendo forçoso vislumbrar que, após o falecimento de J. R.r C., ocorreu verdadeira corrida entre as companheiras do de cujus para o reconhecimento judicial dessa qualidade.
Nula, portanto, é a sentença apelada, que reconheceu, indevidamente, a ocorrência de coisa julgada. Todavia, o caso não é de baixa dos autos, para que outra sentença seja prolatada pelo juiz de origem, posto que a causa se acha madura para julgamento nesta Corte, considerando que a sentença guerreada foi lançada após a realização da devida instrução, sendo aplicável à espécie o disposto no artigo 515, § 3º do CPC.
Por isso, passo ao exame de mérito do pedido.
E, por conseguinte, tenho que a existência de uma sentença no mundo jurídico reconhecendo a união estável de Maria das Graças com o extinto não tem o condão de prejudicar o reconhecimento, para fins de produção de efeitos jurídicos no campo do Direito de Família, da união pública e notória entre Maria dos Remédios e o falecido, em virtude de ser possível juridicamente o reconhecimento de família paralelas, como passo a demonstrar.
II. DA POSSIBILIDADE JURÍDICA DO RECONHECIMENTO DE DUAS UNIÕES ESTÁVEIS SIMULTÂNEAS
Nesse contexto, sem a intenção de delongar este voto, deve ser esboçada breve retrospectiva sobre o próprio surgimento da categoria de família "união estável" em nosso ordenamento.
E isto servirá não apenas para demonstrar quais os requisitos legais para sua configuração, como também para apontar como as uniões paralelas sempre existiram como instituições de fato na sociedade brasileira.
É sabido que a inspiração para a edição do primeiro Código Civil (na França napoleônica) foi retirada do Direito Canônico, com sua metodologia de regras públicas e privadas e correlatos institutos. E o Código Civil francês, redigido para dar segurança jurídica à nova composição política e social, serviu, por sua vez, de inspiração para o resto do mundo ocidental.
No Brasil, inclusive, em que o próprio poder político se confundia com a autoridade eclesiástica (não é demais relembrar as lições de história sobre a mistura entre Estado e Igreja na construção da sociedade e das instituições brasileiras), as regras sobre a vida civil eram ditadas pela comunhão de interesses das autoridades políticas e das autoridades eclesiásticas.
Durante o período em que o Brasil foi regido pelas Ordenações (colonização), já é possível vislumbrar interessante registro dessa comunhão de interesses:
Ordenações Filipinas
Livro V
"38. Do que matou sua mulher por a achar em adultério.
Achando o homem casado sua mulher em adultério, licitamente poderá matar assim a ela como o adúltero, salvo se o marido for peão e o adúltero fidalgo ou nosso desembargador, ou pessoa da maior qualidade. Porém, quando matasse alguma das sobreditas pessoas, achando-a com sua mulher em adultério, não morrerá por isso mas será degredado para África com pregão na audiência pelo tempo que aos julgadores bem parecer, segundo a pessoa que matar, não passando de três anos.
Como bem aponta Osvaldo Hamilton Tavares[5], a doutrina dos impedimentos matrimoniais foi arquitetada à luz dos princípios formulados pelos canonistas e teólogos italianos. O Direito Canônico, com acentuada preocupação moralizadora, não condescende com o ilícito e o desonesto. Daí o impedimento matrimonial resultante do adultério.
O Código de Direito Canônico chegou até a dispor a respeito de sanções particulares contra os concubinos, e o legislador brasileiro de 1916, baseado em razões de moralidade familiar, não se mostrou imune à influência do Direito Canônico, o que se mostrava nítido na proibição de doações do cônjuge adúltero ao seu cúmplice, da nulidade da instituição da concubina como beneficiária do contrato de seguro de vida, e na proibição de reconhecimento de filhos adulterinos (artigos 1.177, 1.474 e 358 do Código Civil de 1916)[6].
Em decorrência dessa inspiração, o casamento religioso era a única forma válida para constituição de uma"família", sendo vedado de proteção estatal e espiritual qualquer arranjo informal que fugisse dessa fórmula.
Porém, em uma época em que a maior parte da população não detinha os recursos necessários para cumprir a burocracia e a solenidade do
casamento, a regra acabou sendo não o casamento, mas o" ajuntamento "- decorrendo desse fato inúmeras qualificações pejorativas, como amancebamento, amasiamento, concubinagem, quando deveriam ser chamados apenas de" famílias ".
Concubinato, assim, era um termo plurissignificativo: significava não só os relacionamentos adulterinos - em que um ou ambos os consortes era (m) casado (s) - como também os relacionamentos entre pessoas solteiras, desimpedidas ao casamento, mas que não eram casadas formalmente.
Contribuía a essa plurissignificância o fato também de que pessoas casadas, mesmo não desejando mais estar casadas, eram obrigadas pela Lei e pela Bíblia a manter o vínculo conjugal mesmo sem o desejo. E as pessoas que se separavam de fato e constituíam novos relacionamentos só tinham a fórmula do concubinato para recompor seus afetos e seus projetos de vida.
Com o passar do tempo, a transformação da mentalidade da sociedade e a ruptura entre Igreja e Estado, que pretendeu tornar-se laico apesar de
Estado do Maranhão
Poder Judiciário
_
continuar carregando diversos signos da autoridade eclesiástica, passou-se a vislumbrar uma tênue diferenciação entre os chamados" concubinato puro "e o" concubinato impuro ". O primeiro servia às famílias constituídas por pessoas desimpedidas ao casamento, mas que não se casavam ou por não ter acesso ou por não desejar se submeter a essa formalidade, e o segundo servia aos relacionamentos imorais e proibidos (adultério, incesto, entre outros).
Com a promulgação da Constituição de 1988, o"concubinato puro"foi sacralizado e purificado de uma vez em nosso ordenamento jurídico, sendo"equiparado"a uma família pelo artigo 226, § 3º da Constituição Federal, recebendo o nome de"união estável":
§ 3º - Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.
Apesar deste relator defender que a união estável É uma família - ao contrário daqueles que defendem que o uso da expressão" entidade familiar "posiciona a união estável como família de segunda categoria (afinal, o que seria de uma redação legal sem sinônimos?) como se algo, em seu âmago, faltasse para tal identidade - o certo é que o constituinte resolveu longa querela histórica ao reconhecer a união estável como uma das formas de família que o Estado pode ser demandado a proteger.
E, com isso, inaugurou em nosso ordenamento jurídico o princípio da pluralidade das formas de família , ao prever rol exemplificativo de famílias, que não exclui as demais formas de configuração de uma entidade familiar (como a família anaparental e a família extensa, não arroladas no artigo 226 da CF).
Isto significa que a Constituição Federal de 1988 estabelece, sob os mesmos auspícios da dignidade da pessoa humana, um vetor maior para a concretização dos direitos e garantias fundamentais nela previstos: a valorização do sujeito e da sua realização pessoal sobre todos os pormenores patrimoniais e institucionalistas.
E se a família é a base da sociedade, como diz o caput do artigo 226 da Carta Magna, não é possível validar interpretações restritivas e excludentes que firam a própria dinâmica fática
Como bem registra Paulo Iotti[7]:
Como não há limite semântico no texto constitucional (uma proibição) que impeça o reconhecimento da família conjugal paralela a prévio casamento ou prévia união estável (o limite está na lei, não na Constituição), surge a necessidade de se entender qual a proteção constitucional da família para se ver se as restrições legais seriam constitucionalmente válidas.
Na doutrina familiarista já se fala há considerável tempo sobre o conceito (ontológico/material) de família. Segundo a já clássica lição de Paulo Lôbo, o artigo 226, caput, da CF/88, ao não repetir a redação do artigo 175 da CF/67-69 (que se entendia que condicionava a proteção da família à sua consagração ao casamento - dito dispositivo aduzia que"a família é constituída pelo casamento e terá direito à proteção...") para falar agora que"a família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado", gera como consequência que"a cláusula de exclusão"desapareceu, deixando a CF de proteger apenas um tipo de família para se proteger toda e qualquer família .
Entendimento em sentido contrário ou que interprete a CF vendo como"taxativos"os modelos de família ali consagrados configuraria o que o ministro Roberto Barroso, do STF, chama de interpretação retrospectiva, a interpretação de um novo texto normativo da forma o mais próxima possível com o antigo, contrariando a lógica segundo a qual a mudança do texto denotaria um desejo [objetivamente aferível] de mudança da norma jurídica dele decorrente . Daí a necessidade de se entender qual o conceito material de família para se saber
que agrupamentos humanos merecem tal proteção. Assim, a também já clássica lição de Paulo Lôbo no sentido de que a família (conjugal) se forma onde houver uma união pautada pela afetividade, ostensibilidade, publicidade e estabilidade da união, ou seja, os requisitos legais da união estável (art. 1.723 do CC)- e isso não por" solipsismo "ou algo equivalente, ele isto compreende ante pesquisa de âmbito nacional sobre o formato da família brasileira (PNAD/IBGE), que apurou que, no mundo dos fatos, a família só se forma e se mantém unida se presentes tais
circunstâncias.
A tais requisitos Rodrigo da Cunha Pereira, presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família, também há tempos diz que há outro, que na verdade (diz ele) congrega todos os de Paulo Lôbo: estruturação psíquica, a saber, os integrantes se identificarem reciprocamente como uma família. Eis assim o conceito material (logo, constitucional) de família conjugal: união pautada pela afetividade, publicidade, continuidade, durabilidade e identificação recíproca como integrantes de uma família . (grifos nossos)
Na Constituição de 1988, pretendeu o constituinte revolucionar o Direito Privado Brasileiro, inserindo-o em uma ótica de dignidade e de valoração do homem e dos relacionamentos humanos sobre todos os demais institutos e bens jurídicos. Tanto o é que a dignidade da pessoa humana é inscrita como um dos fundamentos da própria República Federativa do Brasil (artigo 1º, inciso III).
Por essa dignidade é que devem ser lidos, interpretados e reinterpretados todos os institutos do Direito, a fim de conformar a esse macroprincípio todos os regramentos da vida civil.
E não existe medida mais violadora da dignidade da pessoa humana do que o Estado impor restrições na vida privada que é exercida autonomamente pelas pessoas. É dizer: se no campo das relações privadas impera a liberdade e a autodeterminação, uma vez inexistindo prejuízo a qualquer bem jurídico, não se pode abalizar intervenções do Estado.
O Estado deve intervir na vida privada sob uma ótica de garantir o respeito a direitos fundamentais, e não restringi-los. O Estado deve se fazer presente para solucionar conflitos de interesses com o condão de lesionar bens jurídicos, e não para escolher - na ausência de riscos ou perigos -quais bens jurídicos são mais importantes do que outros.
E na constatação de famílias simultâneas, por certo a dignidade das famílias envolvidas nessa querela não pode jamais ser sobrepujada por meros interesses de proteção patrimonial. A regra constitucional é a valorização da pessoa, e não mais do patrimônio. O Direito existe para garantir a dignidade, e não mais a transmissão de bens apenas.
E, nessa visão, não vislumbro qualquer regramento constitucional ou infraconstitucional proibitivo ou impeditivo da constituição de FAMÍLIAS PARALELAS.
Vejamos.
O Código Penal, ao estabelecer o crime de bigamia, veda que ocorra no país mais de um casamento. Uma pessoa casada, conforme prescrição do artigo 235 do Código Penal, não poderá contrair novo casamento.
E os penalistas são uníssonos em afirmar que nem a união estável nem o casamento religioso sem registro civil não são relevantes para a
configuração do crime de bigamia, pois este crime possui forma vinculada: só pode ser praticado se contraído um segundo casamento após um
primeiro casamento válido, e todos estes atos dependem do cumprimento de diversas formalidades legais.
Estado do Maranhão
Poder Judiciário
_
Ora, a instituição do casamento possui normativas próprias - de forte inspiração religiosa, como visto - e o Direito Penal assentou em nosso
ordenamento esta regra jurídica: na vida do indivíduo só pode ocorrer um casamento válido por vez. Novo casamento, só havendo a formalização da dissolução do anterior.
E contra esta regra não cabe qualquer discussão, eis que consta expressa proibição em texto legal.
Porém, não se pode confundir : esta regra penal visa à preservação do instituto do" casamento ", com suas formalidades legais e caráter solene, e não da" família ". Pois a" família "é um fato social e cultural que não se encerra nem se resume no casamento.
Passando à normatização da união estável, temos que esta é definida como um relacionamento entre homem e mulher com os requisitos de"
convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família"(artigo 1.723), não se configurando quando ocorrerem os impedimentos do artigo 1.521[8], salvo se a pessoa casada estiver separada de fato.
E quanto ao concubinato impuro, hoje apenas denominado de"concubinato", reza o Código Civil em seu artigo 1.727 apenas que"As relações
não eventuais entre o homem e a mulher, impedidos de casar, constituem concubinato."
Que interessante. Na definição jurídica do concubinato, o legislador aponta um importante parâmetro conceitual: concubinato são as relações não eventuais entre um homem e uma mulher impedidos de casar.
Qual seria a preocupação do legislador em inserir no ordenamento jurídico apenas a definição legal do que seria o concubinato, qualificando-o
como o relacionamento constituído por relações não eventuais, ou seja, dotados de certa estabilidade?
Interpretando logicamente o dispositivo legal, como diz Ihering, procurando o pensamento da lei na alma do autor, passando por cima das
palavras, tenho que é forçoso reconhecer que aqui instituiu o legislador uma CATEGORIA, e não uma proibição.
Conforme a moral da época e correspondendo aos anseios de Igreja e sociedade, o legislador civil de 2002 (que finalmente aprovara o projeto de um código que tramitava desde a década de 1970) inseriu no texto legal o reconhecimento expresso de uma categoria de entidade familiar,
embora não tenha ousado o suficiente para indicar quais os efeitos jurídicos decorrentes.
Mas, interpretando sistematicamente o artigo 1.727 com o teor do artigo 1.708 (" Com o casamento, a união estável ou o concubinato do credor, cessa o dever de prestar alimentos "), vemos que o legislador não nega a dinâmica da vida real, de que, mesmo sendo moral e religiosamente
discutível, a formação do concubinato é um fato social e cultural, tão antigo quanto a própria instituição do casamento.
E, sobre a constituição simultânea de uniões estáveis, apontam parte dos julgadores e doutrinadores que não é possível reconhecer uniões estáveis paralelas pois, segundo o artigo § 1º do artigo 1.723 do CC[9], a categoria de família"união estável"não admite que seus componentes tenham
algum impedimento ao casamento - como o fato de um deles já ser casado.
Porém, de fato e de direito, o ordenamento jurídico não impede o reconhecimento de FAMÍLIAS SIMULTÂNEAS, sendo assim, é juridicamente viável o reconhecimento de um concubinato em paralelo a um casamento ou a uma união estável.
E, da mesma forma como foi equiparada a categoria da união homoafetiva à união estável (ADI 4277 e ADPF 132), deve ser equiparado, para
produção de efeitos jurídicos, o concubinato à união estável, devendo ser discutidos apenas os requisitos para esta equiparação.
E, nesse contexto, a doutrina tem se encarregado de fazer a distinção entre o que seria o concubinato adulterino (e, portanto, sem o interesse de
constituição de uma família) e o concubinato puro (aquele em que, mesmo havendo impedimento ao casamento, o casal vive como uma família, e se apresenta à sociedade como tal).
Cito, a título de exemplificação, uma classificação doutrinária pautada pela publicidade e boa-fé do relacionamento paralelo, como apto a ser
reconhecido ou não como uma entidade familiar[10]:
a) Relações clandestinas de má-fé : relacionamentos paralelos que não são considerados uma entidade familiar por se constituírem às
escondidas, sem publicidade nem ostensividade, sem oportunizar à família prévia a chance de romper ou continuar com a situação de
simultaneidade, o que demonstra o não interesse da relação paralela em ser reconhecida como uma família, mas apenas a configuração de namoro ou relação de amantismo, que não tem o condão de produzir efeitos próprios do Direito de Família;
b) Relações clandestinas de boa-fé : relacionamentos paralelos que são considerados uma entidade familiar por possuírem grau de publicidade, ostensividade da condição de uma família, e o desconhecimento da existência de uma família prévia, equiparando-se ao casamento e à união
estável putativa, logo, sendo protegidos com a produção de efeitos jurídicos no campo do Direito de Família;
c) Relações públicas de boa-fé : relacionamentos paralelos que são considerados família por possuírem todos os requisitos legais de uma
composição familiar, principalmente a ostensividade e a publicidade, com a transparência devida ao primeiro núcleo familiar formado e a aceitação tácita ou expressa à convivência simultânea.
Afinal, não é todo relacionamento amoroso que pode ser considerado uma família: o gênero" família "também importa no preenchimento de
requisitos para sua configuração. É família toda união de pessoas em respeito e consideração mútuos, com ostensividade e publicidade, com o objetivo de comunhão de vida, mútua assistência moral e material, e de serem reconhecidos pela comunidade como uma família.
Assim, sempre que um núcleo for formado por pessoas que se enquadrem em tais requisitos, deve ser reconhecida a configuração de uma família, independente da qualificação que se dê a esta: se formada por um casamento, por uma união estável ou por um concubinato estável (espécies do gênero" família ").
Em analogia a Pontes de Miranda, a família é instituto que pertence ao plano da existência[11], enquanto as modalidades de concubinato, casamento e união estável pertencem ao plano da eficácia[12].
Inexistindo, portanto, qualquer vedação legal ao reconhecimento jurídico do concubinato como modalidade de constituição de família, o problema jurídico insere-se apenas na definição dos efeitos que possa produzir. E, nesse aspecto, tenho que os efeitos já regulados, em sentindo proibitivo, são os seguintes:
Art. 1.642. Qualquer que seja o regime de bens, tanto o marido quanto a mulher podem livremente:
V - reivindicar os bens comuns, móveis ou imóveis, doados ou transferidos pelo outro cônjuge ao concubino, desde que provado que os bens
não foram adquiridos pelo esforço comum destes, se o casal estiver separado de fato por mais de cinco anos ;
Art. 1.708. Com o casamento, a união estável ou o concubinato do credor, cessa o dever de prestar alimentos.
Art. 1.801. Não podem ser nomeados herdeiros nem legatários:
III - o concubino do testador casado, salvo se este, sem culpa sua, estiver separado de fato do cônjuge há mais de cinco anos;
Estado do Maranhão
Poder Judiciário
_
Art. 1.803. É lícita a deixa ao filho do concubino, quando também o for do testador.
Quanto aos efeitos positivos, devem ser aplicados os regramentos da união estável, por analogia e/ou interpretação analógica, de acordo com cada caso concreto , afinal, em Direito Privado, tudo o que não é proibido, é permitido, cabendo ao aplicador da norma a concretização dos direitos no caso de lacuna da lei.
E os efeitos jurídicos do concubinato puro (resgatando este termo para contrapô-lo ao"concubinato adulterino") é lacuna da lei que não impede a concretização da prestação jurisdicional, diante das técnicas existentes para seu suprimento.
Afinal, o Código Civil de 2002 importa na aplicação do Direito tridimensionalizado, não bastando apenas a subsunção do fato à norma, mas a inclusão do" valor "como elemento de ponderação e preenchimento da própria subsunção.
Digo isto porque, não muito distante, há algumas décadas atrás, os filhos nascidos fora de um casamento" válido "eram considerados ilegítimos e discriminados social, cultural e juridicamente. O paulatino reconhecimento de sua dignidade, com a produção de efeitos jurídicos à sua condição, foi atacado como" ruína da família "e desestruturador do ordenamento jurídico. Todas essas críticas foram superadas pela noção dignificadora e principiológica de que todos filhos são iguais, independente da sua origem.
Creio que esta mesma noção - ou este VALOR - irá, enfim, alcançar também as famílias simultâneas: todas as famílias são iguais, independente da origem da sua formação.
Longe de representar a ruína da família ou desestruturar o ordenamento jurídico, este reconhecimento jurídico representa a inclusão da
RESPONSABILIDADE na pauta das relações privadas, tornando os homens mais responsáveis em suas escolhas de viver suas vidas, ou as
mulheres mais responsáveis em suas escolhas do que aceitar viverem.
Destacada, assim, a possibilidade jurídica do reconhecimento de famílias paralelas, passo a analisar a natureza do relacionamento do falecido com a apelante.
III. DA NATUREZA DO RELACIONAMENTO DO FALECIDO COM M. R. C. C.
Por se tratar a presente demanda de uma ação declaratória, há, portanto, que se analisar se o relacionamento da requerente e do de cujus revestem-se, realmente, dos requisitos necessários à configuração de uma entidade familiar, para então ser analisada a respectiva modalidade.
Das provas dos autos extrai-se que M. R. C. C. iniciou relacionamento afetivo com J. R. C. em 1964,
vindo com ele a residir em 1970. Em 1999, J.R. C. ajuizou ação de oferta de alimentos nos seguintes termos:
"o Requerente manteve relacionamento com a Requerida há mais de 20 (vinte) anos, tendo nascido desse relacionamento um filho, hoje de maioridade"(fl.15)
"O Requerente por não ser casado com a Requerida, pretende regularizar a situação da mesma, pagando a esta uma pensão definitiva, na importância de 40% de sua remuneração, bem após os descontos obrigatórios e que a referida pensão permaneça enquanto a Requerida existir"(fl.16)
"O procedimento do Requerente, trata-se de dever de reconhecimento para a Requerida, que ao longo dos anos prestou-lhe respeito, amor,
carinho e fidelidade"(fl.16).
Portanto, de 1970 a 1999, não dá dúvidas nos autos de que a apelante o falecido mantiveram comunhão de vida, que culminou com a oferta voluntária de pensão alimentícia à recorrente.
Como seu endereço residencial, indicou J. R.C na exordial da referida ação de alimentos a Rua da Vitória, nº 36, Bairro João Paulo, nesta capital, constando como endereço de M. R. C. Cardoso o seguinte: Rua D, quadra 07, casa 18, Planalto Anil II (onde se situa o imóvel objeto da disputa atual entre os herdeiros).
Ocorre que também foi provado nos autos, em sede de contestação, que o falecido J. R. C. havia casado no religioso, em 1971, com a senhora M. G. S., sem, porém, que tivessem realizado o registro para produção de efeitos civis a essa cerimônia.
Ressoa do arco probatório dos autos, assim, que desde a década de 1970 o falecido mantinha relacionamento afetivo estável tanto com Maria das Graças Saraiva quanto com M. R. C. C., não vindo a se casar civilmente com nenhuma destas senhoras.
Resta, porém, saber, se após o ajuizamento da ação de alimentos em 1999, perdurou o relacionamento entre a apelante, M. R.
Chaves Cardoso, e o de cujus.
Nesse sentido, são esclarecedores os depoimentos das testemunhas arroladas pela autora, ora recorrente, aliados à farta documentação fotográfica anexada aos autos, quanto à manutenção do relacionamento estável do casal, como passo a destacar.
Disse Adalcina Nascimento Soares (fl.234):
Que, desde 1974, conhece a autora quando a mesma chegou para ser sua vizinha. Que, quando chegou, foi devidamente acompanhada com o falecido. Que a autora estava grávida. ... Que o falecido morava com a autora. ... Que o falecido apresentava a autora no meio social como sua esposa. Que a união foi ininterrupta.
Disse R. N. C. D. (fl.234):
Que conhece a autora e o falecido aproximadamente há 34 anos. Que nunca foi na casa do casal, entretanto, na condição de protético, o depoente chegou a fazer alguns serviços para o falecido, e o mesmo se fazia acompanhado da esposa. Que o depoente ainda está na ativa da Polícia
Rodoviária Federal e que o telefone para contato com o falecido era da casa da autora. ... Que chegou a ver nas festividades da Polícia rodoviária Federal, salvo engano no ano de 2008 a autora acompanhando o falecido. Que nunca chegou a ver a requerida, M. G., nas festividades da Polícia Rodoviária Federal. ...
Disse M.N. G. R. (fls.234/235):
Que, de 1996 a 2000, morou em frente à casa da autora que residia com o falecido. Que o relacionamento do casal era público e foi ininterrupto. Que o falecido apresentava a autora no meio social como sua esposa. Que, por várias vezes, chegou a ver o falecido chegar de farda. Que não
sabe informar se o falecido tinha outras mulheres.
Disse Flavio Roberto Castro (fl.235), ouvido como informante:
Estado do Maranhão
Poder Judiciário
_
Que o falecido era seu tio. ... Que a autora é quem participava das festividades que ocorria na família na casa de sua avó. E que até hoje a autora freqüenta a casa do seu pai e é a própria que é tido como referência em relação ao falecido. ... Que depois do falecimento do seu tio é que soube que o mesmo tinha outros relacionamentos.
Cotejando tais depoimentos com o relato das testemunhas arroladas pela parte ré, é cristalina a constatação de que o falecido soube manter com discrição dois relacionamentos paralelos, não misturando os círculos sociais de entorno a cada composição familiar, apesar de, para as testemunhas da ré M. G., aqui apelada, se extrair a informação de que o de cujus era dado a múltiplos relacionamentos - informação esta que não se observa no relato das testemunhas da autora M. R..
Consta do depoimento de M. G. R. S. (fl.235):
Que a depoente foi testemunha do casamento da requerida, M. G., com o falecido em Caxias. ... Que, antes do falecido se casar com a d. Graça, ouvia falar que o mesmo namorava a autora. Que não tem conhecimento de que o falecido depois disso tenha tido algum relacionamento com a autora. ... Que antes de casar com a d. Graça o falecido era muito mulherengo, depois não.
Disse Maria das Graças Martins Nogueira (fl.235):
Que há 40 anos conhece a requerida, M. G.. Que quando a conheceu já era casada com J. R., hoje falecido. Que tem conhecimento de que o falecido era muito mulherengo e que seu óbito ocorreu em um motel. Que não tem conhecimento e não ouviu falar de que o falecido tivesse tido algum relacionamento com a autora. ... Que não sabe informar sobre as atividades sociais do falecido com d. Graça. Que tem conhecimento de que o falecido era mulherengo através de comentários.
Assim, o conjunto probatório dos autos demonstra que houve verdadeira simultaneidade conjugal entre o falecido com M. G. e M. R., residindo ele no Planalto Anil com a apelante, e no Monte Castelo e depois no Residencial Pinheiros, com a apelada.
Por tudo que dos autos consta, tenho que o presente caso é de verdadeira configuração simultânea de uniões conjugais, que perdurou da década de 1970 (constituição formal dos relacionais conjugais) até a data da morte do de cujus, em 2010.
O cerne da questão reside em estabelecer qual seria a primeira união formada, para ser classificada como união estável, a fim de que a segunda seja classificada como união paralela.
Porém, nesse tocante, torna-se por demais dificultoso reconhecer um termo inicial temporal a ambos os relacionamentos, pois tudo indica que os namoros transformaram-se em convivência marital também simultaneamente, de tudo tendo ciência ambas as companheiras, eis que é pouco
crível acreditar que dois relacionamentos com tal grau demonstrado de publicidade, estabilidade e envolvimento familiar e profissional fossem desconhecidos um do outro.
Tanto mais após a oferta da pensão em 1999, quando se tornou concreta a existência de um vínculo afetivo e obteve-se a prova documental definitiva da assistência material.
Posto isso, voto pelo provimento do recurso, para, anulando a sentença recorrida, julgar procedente o pedido para declarar a existência de união conjugal equiparada a uma união estável, entre José de Ribamar Castro com Maria dos Remédios Chaves Cardoso, no período de 1970 a 2010.
Sala das Sessões da Terceira Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão, em São Luís, 12 de março de 2015.
Des. JAMIL DE MIRANDA GEDEON NETO
Relator
[1]SILVA, Rinaldo Mouzalas de Souza e. Processo civil. 3ª ed. rev. ampliada e atualizada. Salvador: JusPodivm, 2010, p.517.
[2]SILVA, Rinaldo Mouzalas de Souza e. Processo civil. 3ª ed. rev. ampliada e atualizada. Salvador: JusPodivm, 2010, p.518.
[3]SILVA, Rinaldo Mouzalas de Souza e. Processo civil. 3ª ed. rev. ampliada e atualizada. Salvador: JusPodivm, 2010, p.519.
[4]Apud SILVA, Rinaldo Mouzalas de Souza e. Processo civil. 3ª ed. rev. ampliada e atualizada. Salvador: JusPodivm, 2010, p.518.
[5]A Influência do Direito canônico no Código Civil brasileiro. In Revista Justitia. out./dez.1985,disponível
em:http://www.revistajustitia.com.br/revistas/zwaz5b.pdf Acesso em: 23 dez. 2014
[6]TAVARES, Osvaldo Hamilton. A Influência do Direito canônico no Código Civil brasileiro. In Revista Justitia. out./dez.1985,disponível
em:http://www.revistajustitia.com.br/revistas/zwaz5b.pdf Acesso em: 23 dez. 2014
[7]Famílias paralelas e poliafetivas devem ser reconhecidas pelo Judiciário. In Conjur. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2014-ago-05/paulo-iotti-familias-paralelas-poliafetivasreconhecidas. Acesso em: 23 dez. 2014.
[8]Art. 1.521. Não podem casar:
I - os ascendentes com os descendentes, seja o parentesco natural ou civil;
II - os afins em linha reta;
III - o adotante com quem foi cônjuge do adotado e o adotado com quem o foi do adotante;
IV - os irmãos, unilaterais ou bilaterais, e demais colaterais, até o terceiro grau inclusive;
V - o adotado com o filho do adotante;
VI - as pessoas casadas;
VII - o cônjuge sobrevivente com o condenado por homicídio ou tentativa de homicídio contra o seu consorte.
[9] Art. 1.723. É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família.
§ 1 A união estável não se constituirá se ocorrerem os impedimentos do art. 1.521; não se aplicando a incidência do inciso VI no caso de a pessoa casada se achar separada de fato ou judicialmente.
Estado do Maranhão
Poder Judiciário
_
[10] WAQUIM, Bruna Barbieri. Relações simultâneas conjugais: o lugar da Outra no Direito de Família. Café & Lápis, 2010.
[11] No qual não se avaliam a invalidade ou eficácia do fato jurídico em análise, mas tão somente se averigua a presença dos fatores existenciais mínimos.
[12] O estudo das repercussões jurídicas do fato no plano social, a produção de efeitos jurídicos quanto às partes e terceiros.
Original disponível em: (http://ibdfam.org.br/jurisprudencia/3828/Fam%C3%ADlias%20simult%C3%A2neas.%20Possibilidade.%20Dignidade%20da%20pessoa%20humana).
Acesso em 23/jan/2016.
Nenhum comentário:
Postar um comentário