Foram os piores anos da minha vida.” A
frase ainda é dita com sofrimento pela estudante carioca Chanel de
Andrade Rodrigues, de 18 anos. Ela está no 1o ano da faculdade de artes,
mas não esquece o período em que estudou no Santo Agostinho, do Rio de
Janeiro, um dos colégios mais tradicionais e bem-conceituados do país.
Do 7o ano do ensino fundamental ao 1o ano do ensino médio, passou seus
dias perdida entre aulas que não acompanhava, um enorme volume de
conteúdos para memorizar, provas difíceis, notas baixas e um séquito de
professores particulares a cada final de ano letivo. Na escola, não
gostava de sair para o recreio e não comia nada. Em casa, compensava a
ansiedade comendo demais. Na escola anterior, menos rígida, onde tirava
boas notas, costumava nadar e fazer aulas de dança. No Santo Agostinho,
evitava as aulas de educação física. Chanel entrou em depressão e
engordou 20 quilos.
A mãe tentou
convencê-la a fazer terapia, mas ela se recusava. “Eu só queria ser
invisível”, afirma. “Odiava a competitividade que estava sempre no ar.”
Só depois que Chanel foi reprovada, no 1o ano, sua mãe decidiu trocá-la
de escola. (Procurado por ÉPOCA, o Santo Agostinho não respondeu aos
pedidos de entrevista.) O caso de Chanel é apenas um entre centenas que
revelam uma realidade incômoda: o custo emocional alto – muitas vezes
altíssimo – do modelo de eficiência adotado naquelas escolas que exigem
alto desempenho dos alunos e garantem todo ano boas colocações nos
melhores vestibulares.
Consideradas
as melhores do país, quase sempre campeãs nas provas nacionais de
avaliação, as escolas de ensino tradicional representam, na mente de
muitos pais, uma esperança de sucesso para a vida dos filhos num mercado
de trabalho competitivo. Apesar de seus resultados inquestionáveis e da
procura crescente por escolas desse tipo, esse modelo agora começa a
ser mais e mais questionado por seus efeitos colaterais.
SOB MEDIDA Giulianna
Freitas, de 12 anos, no colégio tradicional em que estuda, em São
Paulo. Ela tira de letra regras como uniforme impecável e contato
restrito com meninos
O
ensino tradicional surgiu na Europa do século XVIII como um modelo em
que os alunos são ensinados e avaliados de forma padronizada. Ele se
inspira na ideia de que a mente das crianças é uma tabula rasa, um
espaço em branco sobre o qual os diversos conteúdos – gramática,
matemática, ciências, história etc. – devem ser inscritos seguindo um
método rigoroso de exposição e avaliação. Mais do que qualquer outra
aptidão, valoriza o acúmulo de conhecimento: quanto mais fatos e
fórmulas o aluno aprende, mais bem avaliado ele é.
Há,
ainda, uma forte pressão por desempenho nas provas e um grande volume
de conteúdo a estudar. As escolas tradicionais também costumam ser mais
rígidas em regras de comportamento, como respeito ao horário, frequência
às aulas, uso de uniforme e atitude no recreio. Apesar de ter
incorporado conceitos pedagógicos mais modernos, a essência do modelo
tradicional de ensino permanece a mesma – e a educação tradicional está
em alta no mundo, com filas de espera para matrículas e salas
abarrotadas de alunos.
A grande
procura por uma vaga numa dessas escolas se explica pelo desempenho
acima da média de seus alunos. No Brasil, o Exame Nacional do Ensino
Médio (Enem), que classifica as escolas públicas e particulares a partir
das notas tiradas numa prova feita pelos alunos, é decisivo para a
família na hora de escolher onde matricular seus filhos. Há anos, os
colégios mais tradicionais e rígidos ocupam o topo da lista. “É comum
hoje em dia pais e mães compararem as posições das instituições em que
seus filhos estudam. Se os resultados das escolas não são bons, bate o
sentimento de que se está fazendo algo errado”, afirma Quézia Bombonato,
presidente da Associação Brasileira de Psicopedagogia.
Em Vinhedo, no interior de
São Paulo, uma escola aberta em 2001 mostra essa tendência. O Colégio de
Vinhedo, que busca alunos de classe média alta, reproduz uma escola
tradicional europeia. Os alunos usam uniformes formais, os professores
vestem ternos e tailleurs. A própria decoração da escola parece de outro
tempo – embora, dentro da sala de aula, haja lousas interativas,
câmeras e laptops para cada aluno. Há ênfase no conteúdo e na
disciplina. “Nossa ideia é resgatar valores que são esquecidos”, diz o
diretor, Eduardo Cumone. “Também temos uma carga horária maior, para que
haja melhores resultados.” A proposta da escola encontra eco nos pais. A
procura triplicou nos últimos cinco anos. Em 2001, havia uma única
turma por série; em 2012, haverá duas ou três.
OPOSTOS
Os irmãos Gustavo e Leonardo, de 15 e 12 anos, no bairro onde moram, em
São Paulo. Gustavo pediu um colégio mais rigoroso. Leonardo se deu bem
em uma escola com menos cobrança
Os
rankings de avaliação também puxam a educação para o lado mais rígido
em outros países. “Nos Estados Unidos, está havendo um retorno à
tradição, amparado na crença de que pontos na competição internacional
são importantes”, diz o psicólogo americano Howard Gardner, criador da
Teoria das Inteligências Múltiplas, que propõe vários tipos de
inteligência além daquela medida por testes de Q.I. Na Europa, acontece o
mesmo. O Reino Unido é um bom exemplo. No fim de 2010, a Secretaria de
Educação anunciou uma reforma no ensino que inclui o “retorno aos
valores tradicionais”: mais conteúdo, mais disciplina – e até a
obrigatoriedade de roupas s mais formais na rede pública, com aventais
para as meninas e terno e gravata para os meninos. No anúncio, o
secretário Michael Gove mostrou sua preocupação com a queda do país nos
rankings mundiais de educação. “Vamos voltar ao topo”, disse.
O
ensino tradicional ganhou ainda mais adeptos recentemente com o
lançamento do livro Grito de guerra da mãe tigre. Nele, a advogada
sino-americana Amy Chua relata sua experiência na criação de duas filhas
com rigidez e exigências que beiravam o absurdo. Ambas eram proibidas
de ficar abaixo do 1o lugar na classe e tinham de realizar atividades
extracurriculares dificílimas escolhidas pela mãe – uma se tornou exímia
violinista e a outra pianista. Pela defesa desses padrões quase
marciais de ensino, Amy chegou a ser ameaçada de morte na internet. Mas
seu livro entrou rapidamente na lista dos mais vendidos nos Estados
Unidos. Isso expõe o medo de toda a nação de se ver rebaixada nas listas
internacionais de melhores alunos.
Para
quem consegue seguir em frente e encarar tantas exigências, o ensino
tradicional pode dar certo. Giulianna Freitas, de 12 anos, cursa o 7o
ano do colégio Dante Alighieri, um dos mais antigos e tradicionais de
São Paulo. Está lá desde os 3 anos. Ela diz que adora. Afirma tirar de
letra as regras rígidas da escola, entre elas uniforme impecável e as
restrições ao contato afetivo entre meninas e meninos. “Não me vejo em
outro colégio”, diz. Sua mãe, a dentista Ana Claudia Garcia de Freitas,
afirma ter escolhido o Dante pelos ótimos laboratórios e pelas
bibliotecas. E também por ter sido sua escola – e a de sua mãe. “É uma
tradição na família.”
Mas os
educadores têm visto com ceticismo cada vez maior o sucesso desse
modelo. Eles alertam sobre vários problemas que decorrem da estratégia
convencional, baseada na combinação de competitividade e pressão por
notas. A primeira limitação é a seleção natural que põe em prática.
Esses colégios selecionam os alunos na hora da matrícula – com os
famosos “vestibulinhos” – e, depois disso, acabam selecionando, pelo
grau de dificuldade em acompanhar o ritmo, aqueles que ficam.
“Valorizamos o conteúdo e somos inflexíveis em nossa filosofia de foco
no professor, cultura clássica e disciplina”, diz Maria Elisa Penna
Forte, supervisora do colégio carioca São Bento, que só aceita meninos e
foi quatro vezes campeão nacional do Enem. “Os pais querem que os
filhos se saiam bem aqui, mas, em muitos casos, isso não acontece. Aí o
melhor é mudar de escola.”
A pressão por boas notas pode causar estresse e doenças emocionais. E não garante sucesso no futuro
São
escolas que, naturalmente, funcionam para os melhores. E os melhores,
por motivos óbvios, não são todos. Nem sequer são a maioria. “No caso
das escolas tradicionais e seus vestibulinhos, não são os pais que
escolhem a escola. É a escola que acaba escolhendo os alunos que quer”,
diz Victor Paro, professor da Faculdade de Educação da Universidade de
São Paulo. Para ele, essa situação põe em xeque a própria qualidade
desse tipo de ensino. Essas instituições têm as melhores médias de
desempenho por terem a melhor pedagogia ou porque os alunos que passam
pelo funil são os mais inteligentes, portanto serão os melhores,
independentemente do método de ensino? “Certamente, elas têm valor. Mas é
fato que, para entrar, os alunos já têm de ser bons”, diz Paro.
SENSIBILIDADE
A estudante de artes Chanel Rodrigues, de 18 anos, faz desenhos em
casa, no Rio. Ela entrou em depressão nos anos em que estudou em um
colégio tradicional
Uma
das grandes dificuldades dos pais é aceitar que a maioria dos filhos
não se enquadra ou não tem condição de acompanhar o grau de exigência
das escolas mais competitivas. Alguns pais acreditam que tirar o filho
da escola mais conceituada é sinal de fracasso. Insistem nela – e isso
acaba pesando ainda mais sobre os ombros do estudante. “A criança sofre
porque não tem o perfil para aquele tipo de colégio”, diz Fábio
Barbirato, chefe do setor de Neuropsiquiatria da Infância e da
Adolescência da Santa Casa, no Rio de Janeiro. “Os pais precisam
conhecer o perfil de seus filhos.”
A
política de seleção dos melhores não pode servir para educar a média das
crianças, uma exigência social. Não há nada a opor a uma política de
seleção rigorosa. Mas um país que precisa oferecer educação de qualidade
para todos precisa se preocupar com aqueles que não passam por esse
funil – a ampla maioria.
O ambiente
de alta pressão tem ainda um custo emocional para aqueles que não se
adaptam. Em geral, aumenta o nervosismo da criança, que fica exposta a
um grau elevado de exigência antes de ter amadurecido. Os sintomas são
noites maldormidas ou mesmo crises nervosas antes de algumas provas. Em
alguns casos, o peso da cobrança pode gerar traumas. O médico Barbirato
tem promovido uma cruzada contra os transtornos de ansiedade causados
pela vida escolar. Diz que, diariamente, na clínica e em seu consultório
particular, atende crianças em sofrimento decorrente da pressão dos
estudos. Para Jorge Harada, chefe da área de Saúde Escolar da Sociedade
Brasileira de Pediatria, o estresse dessas escolas desencadeia um
processo orgânico que pode levar à perda da imunidade e causar até
anemia. “Vivemos numa sociedade competitiva, mas a escola não pode ser
uma fábrica de pessoas em série. É preciso respeitar as singularidades
de cada um”, diz.
MOTIVAÇÃO Artur
e Olívia na Escola Parque, de linha construtivista, no Rio de Janeiro. A
mãe deles os tirou de uma escola tradicional, embora tivessem boas
notas. Ela diz que eles estavam “no automático”
Nos
Estados Unidos, a mãe de uma adolescente que recebeu diagnóstico de
estresse agudo não se conformou em reclamar com a escola sobre o ritmo
puxado das aulas e lições de casa. A advogada Vicki Abeles, depois de
perceber que o drama de sua filha era vivido também em outras famílias,
fez um documentário sobre o que chamou de massacre do ensino
competitivo, imposto em quase todas as redes de escolas públicas
americanas graças a incentivos do governo. O documentário, que ouviu
dezenas de alunos e famílias que desenvolveram doenças emocionais por
causa da alta pressão, virou sensação. Já arrecadou mais de R$ 10
milhões (custou R$ 800 mil), sem exibições em cinemas, apenas em escolas
ou auditórios. “Quero que minhas filhas cresçam saudáveis e criativas.
Não acredito no ensino que educa para tirar boas notas em rankings”,
afirma Vicki (leia a entrevista na página 95).
Apesar
da expectativa dos pais, o ensino tradicional, também não garante
sucesso na carreira. “Mesmo no caso de crianças que suportam a pressão
das escolas tradicionais, não existe certeza de que serão adultos
bem-sucedidos”, diz Quezia Bombonato. “Muitas vezes são alunos com
capacidade de absorção de conteúdos e boa memória, mas cujos dons
específicos não são devidamente explorados.” Segundo Quezia, o processo
completo de aprendizado de um jovem é formado de muitas variáveis. Se o
que ele aprende não faz sentido para a vida, isso poderá ser percebido
num futuro mais distante, quando ele estiver frente a frente com suas
decisões profissionais. “As pressões que ele sofreu nos bancos escolares
podem se transformar em problemas de percepção ou relacionamento na
vida adulta, comprometendo o sucesso de suas realizações”, diz ela.
Diante
dos efeitos colaterais da pressão educacional, muitos pais se voltam
para as escolas com propostas alternativas. Elas não têm uma fórmula
única e vêm se desenvolvendo desde os anos 1960, com propostas
pedagógicas modernas. Esses métodos de ensino começaram a ganhar
relevância nos anos 1970, quando novas teorias sobre como as crianças
aprendem começaram a ser usadas pelas escolas. No geral, elas priorizam o
estímulo aos talentos pessoais, as artes, o contato com a natureza e o
lado emocional dos alunos. O método mais difundido no Brasil é o
construtivista, inspirado nas ideias do psicólogo suíço Jean Piaget,
segundo o qual as crianças aprendem em conjunto e sempre usando a
realidade de cada um como referência. A linha montessoriana, proposta
pela pedagoga italiana Maria Montessori, foi uma das primeiras a inserir
questões afetivas na educação. Na pedagogia Waldorf, do filósofo alemão
Rudolf Steiner, o aprendizado anda de mãos dadas com atividades
corporais e artesanais. Com resultados não tão satisfat ios em
avaliações nacionais, muitas dessas escolas se reorganizaram para
melhorar sua competitividade. Hoje, tentam combinar o melhor dos dois
mundos, incorporando parte da disciplina e da exigência de bom
desempenho das escolas tradicionais.
Para alguns pais, só o ensino de alto desempenho garante um futuro de sucesso para os filhos
Essas
alternativas também podem ser um caminho para o sucesso na vida real.
Os americanos Larry Page e Sergei Brin, fundadores do Google, estudaram
em escola montessoriana. Eles afirmam que a escola é um dos principais
fatores de seu êxito empreendedor. Lá, segundo eles, aprenderam a
trabalhar sozinhos, com ideias próprias. Dizem que a educação
montessoriana lhes deu liberdade para perseguir seus sonhos e paixões.
Outros inovadores da era digital, como Jeff Bezos, fundador da loja
virtual Amazon, e Jimmy Wales, criador da Wikipédia, também vieram de
escolas montessorianas. s
Um dos
apelos dessas linhas alternativas é oferecer um ensino que pretende
despertar mais iniciativa e a criatividade das crianças. Isso pode ser
salutar mesmo para os alunos que, aparentemente, se dão bem no esquema
das escolas competitivas. Foi o que percebeu a empresária carioca
Tatiana Queiroz, mãe de Artur, de 15 anos, e Olívia, de 12. “Eles
tiravam boas notas, mas faziam tudo no automático. Sentia que não
estavam motivados. O conteúdo era muita memorização e pouca análise”,
diz. Quando os filhos entraram no ensino fundamental, Tatiana optou pelo
tradicional Colégio Santo Inácio, pelos bons resultados nos rankings e
pela disciplina que complementava os limites que ela estabelecia em
casa. Com o tempo, sentiu falta de mais estímulo criativo para os
filhos.
A maioria dos colégios
tradicionais tem classes numerosas, e, por isso, o diálogo casa-escola
fica difícil. Há dois anos, ela transferiu os dois filhos para um
colégio alternativo. A coordenadora pedagógica do Santo Inácio, Ana
Maria Loureiro, diz que a tradição dá segurança a quem procura a escola.
Segundo ela, 70% dos alunos são filhos de ex-alunos. Um sinal de
sucesso da instituição. “Mas estamos buscando a modernidade,
especialmente no que diz respeito às novas tecnologias e à necessidade
de formar professores antenados com a realidade”, afirma.
Diante
das críticas, as escolas tradicionais tentam se renovar. Para conciliar
educação de qualidade sem sofrer as consequências indesejadas, começam a
buscar o caminho do meio. O colégio marista São José, no Rio, mantém
suas aulas de religião, mas introduziu aulas especiais para ensinar os
alunos a associar o mundo atual ao que é estudado. A ideia reforça a
tendência de que mais importante do que decorar informação é saber
analisá-la. No Dante, segundo seu diretor, Lauro Spaggiari, há a
filosofia de que é preciso trabalhar apenas com o essencial do conteúdo e
muita discussão, mas sem abrir mão do rigor na disciplina. “Não vivemos
mais no tempo em que o professor era o único provedor da informação”,
diz Spaggiari. “Sabemos que, em tempos de internet, a informação está ao
alcance de todos. Nosso papel principal é ensinar ao aluno o que fazer
com ela.”
Mesmo que essas escolas
consigam se atualizar, ainda assim não serão o modelo ideal para todas
as crianças. A família da auxiliar administrativa Fernanda Sato
descobriu de forma inusitada que não há um único caminho para a educação
dos filhos. Há cinco anos, mudou-se para um bairro em São Paulo onde os
filhos, Gustavo e Leonardo, na época com 10 e 7 anos, iriam a pé para o
novo colégio, de estilo tradicional e dirigido por freiras. Por quatro
anos, o plano funcionou. No fim de 2010, os meninos procuraram os pais
com um pedido: queriam mudar de escola. Para complicar, cada um pediu um
colégio. Leonardo, o mais novo, não gostava do método tradicional. “Ele
não reagia bem às cobranças dos professores e começou a perder o
interesse pelos estudos”, diz Fernanda. Gustavo, fã da área de exatas,
pediu para estudar num colégio ainda mais rigoroso, com carga horária
pesada, muita competição e voltado para o vestibular. “Penso em ser
engenheiro e queria uma escola que me preparasse melhor”, afirma. Hoje, a
logística da família ficou mais complicada, mas Fernanda não se
arrepende. “Descobri que cada filho é de um jeito.”
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