Postagem 05/jul/2015...
Como é possível ensinar processo penal depois da operação "lava jato"?
Depois
do acolhimento da delação premiada e da leniência precisamos repensar
como ensinamos Processo Penal. Isto porque falamos em princípios do
processo penal, em jurisdição, ação e processo. Podemos continuar, por
exemplo, a falar que a ação penal é indisponível? Com a Transação Penal
da Lei dos Juizados Especiais Criminais já se criou o “jeitinho” da
disponibilidade regrada, embora Geraldo Prado tivesse demonstrado que
não cabia na tradição do Direito Continental, da qual, em princípio,
somos herdeiros. Depois disso veio a delação premiada e a leniência.
Ocupam um lugar tolerado. Entretanto, atualmente, viraram manchete. Daí
que não podemos mais fingir que possuímos um processo penal único. Hoje,
se quisermos ser professores minimamente sérios, precisamos rever o que
ensinamos. Delação não é exceção e, acolhida, muda o sentido do
processo brasileiro.
Conforme apontam Allard e Garapon: “O Direito
tornou-se num bem intercambiável. Transpõe as fronteiras como se fosse
um produto de exportação. Passa de uma esfera nacional para outra, por
vezes infiltrando-se sem visto de entrada.”[1]
Neste contexto e articulando as repercussões desta constatação no campo
do Processo Penal, bem assim da Criminologia, influenciadas ainda
discurso da Law and Economics[2], baseado em Posner[3],
pretende-se delinear que coexistem, a partir de critérios
diferenciados, sistemas processuais inconciliáveis em território
nacional.
Não podemos ser mais professores românticos e muito menos cínicos. Delação premiada homologada pelo STF, prisão para delação, na mais lídima aplicação do Dilema do Prisioneiro no Processo Penal[4], leniência
extintiva de responsabilidade penal e negociação do objeto e pena da
ação penal, no mínimo, transformaram os pilares daquilo que ensinamos
como “ação penal”.
Coexistem, atualmente, duas frequências de
Processo Penal, com incongruências marcantes, incapazes de formar um
sistema coeso. São tantos institutos incompatíveis com a nossa antiga
maneira de pensar que, atualmente, diante da profusão de fontes e
tradições, encontramo-nos com sérias dificuldades de ministrar aos
alunos um Direito que possa minimamente ser próximo das novidades.
Buscamos propiciar coerência que, todavia, torna-se insustentável dada a
perplexidade. Elencaremos, assim, algumas dificuldades:
a) a ação penal é mesmo indisponível depois da delação premiada ou podemos simplesmente dizer que é uma exceção?
b)
O juiz pode produzir prova, tendo papel de protagonista, inclusive na
negociação do acordo? Existe algum resto de imparcialidade? Quais as
funções reais do juiz?
c) A oralidade e o cross-examination foi (mesmo) adotada pelo 212 do CPP diante do deslocamento (matreiro) da questão para ausência de prejuízo?
d)
Como compatibilizar a chamada de corréu e a confissão depois da
validade da delação premiada? Qual o lugar e estatuto das declarações do
delator?
e) As normas de processo penal são mesmo irrenunciáveis
ou podemos falar em direitos processuais como privilégios renunciáveis
pelo acusado? Em que hipóteses?
f) Como fica a conexão probatória
nas cisões arbitrárias entre acusados em face do foro privilegiado? Os
acusados que foram cindidos podem se habilitar para formular perguntas
aos do foro privilegiado? Podem ser arrolados como informantes os
acusados cindidos?
g) qual o regime da interceptação telefônica
diante da volatilidade dos prazos, regras e do Ministério Público poder
executar o ato? Há garantia dos dados brutos? Quem fiscaliza as
possíveis interceptações frias?
h) a prisão é processual ou não é
mecanismo para aplicação do dilema do prisioneiro ao Processo Penal
brasileiro? Qual o papel da mídia nos vazamentos taticamente fomentados?
i)
qual o limite de negociação que o Ministério Público possui nos acordos
de delação? Pode negociar a imputação, perdoar crimes, fixar teto de
pena por todas as condutas? Pode fixar taxa de êxito na repatriação de
recursos e lavar dinheiro sujo? (se o dinheiro repatriado não tinha
origem, ao se dar a comissão ao delator, não se estaria lavando dinheiro
sujo, via delação?) O Juiz pode não homologar o acordo de delação, a
partir de quais critérios? E, caso rejeitada, as informações já
prestadas serão desconsideradas? Como?
j) se os indiciados devem
ter acesso ao que já está produzido contra eles, na linha da Súmula
Vinculante 14 (“É direito do defensor, no interesse do representado, ter
acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em
procedimento investigatório realizado por órgão com competência de
polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa”)?
Qual o estatuto de sigilo da delação?
Pode-se adotar duas
posturas. A primeira é passar por cima destas questões e simplesmente
continuar a ensinar como sempre se ensinou. A segunda é reconhecer que
não possuímos mais um Processo Penal, mas várias versões simultâneas de
Processo Penal e que a compreensão a ser utilizada dependerá dos
personagens envolvidos, como já defendemos no livro da Teoria dos Jogos
aplicada ao Processo Penal.
O momento é de perplexidade
acadêmica já que o modo de aplicar e ensinar o Processo Penal herdado da
tradição continental se foi. Aos poucos, sem que tenhamos nos
apercebido, ainda que alguns tenham escrito sobre o tema (Geraldo Prado,
Rubens Casara, Elmir Dulcrec, Rômulo Moreira, Gustavo Badaro,
Fauzi Hassan Choukr, Diogo Malan, João Gualberto Garcez, Jacinto Nelson
de Miranda Coutinho, Aury Lopes Jr, Nereu Giacomolli, Lenio Streck,
Salah Khaled, Flaviane Barros, dentre outros), continuamos fingindo que
as coordenadas em que pensamos os institutos do Processo Penal são
atuais.
Nesse contexto há uma manifesta tensão entre o Direito
Continental e o Direito Anglo-Saxão. Os institutos próprios de cada um
dos sistemas acabam sendo intercambiados sem a devida aproximação
democrática, isto é, as novidades legislativas são implementadas em tradições filosóficas distintas,
daí a perplexidade de muitas das alterações legislativas recentes. Não
se trata de reconhecer que a tradição Continental é melhor ou pior, dado
que esta discussão é inoperante. O que importa é que as tradições
implicam em práticas e modos de pensar diferenciados.
Essa lógica
do acontecimento e de diálogo entre tradições precisa ser questionada,
já que continuamos a ensinar um Processo Penal que anda em descompasso
com os novos institutos. Para os crimes de todos os dias (furto,
tráfico, roubo, estupro etc.), de fato, temos o mesmo processo penal da
“ação penal indisponível”, da Jurisdição como poder-dever, incapaz,
todavia, de se conformar aos novos institutos, especialmente delação e
leniência. Podemos, então, aceitar acriticamente a situação? Não
deveríamos nos indagar se podemos ensinar parcialmente e não seria nosso
dever ético mostrar aos acadêmicos que possuímos versões em frequências
diferentes?
O tema nos angustia porque estamos em frequências
antagônicas que convivem sem possibilidade de coerência. Fechar os olhos
sempre foi a saída mais fácil e arbitrária. Mas chegamos a um ponto de
virada, do qual não podemos mais fingir, nem fugir. Ou podemos? Agosto é
novo semestre.
[1]
ALLARD, Julie; GARAPON, Antoine. Os juízes na Mundialização: a nova
revolução do Direito. Trad. Rogério Alves. Lisboa: Instituto Piaget,
2006, p. 07.
[2] MORAIS DA ROSA, Alexandre; AROSO LINHARES, José Manuel. Diálogos com a Law & Economics. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.
[3]
POSNER, Richard A. Economic Analysis of Law. New York: Aspen, 2003;
Overcoming Law. Cambridge: Harvard University Press, 1995, Law and Legal
Theory in the UK and USA. New York: Oxford University Press, 1996; Law
and Literature. Cambridge: Harvard University Press, 1998; The Little
Book of Plagiarism. New York: Phatheon, 2007; Problemas de filosofia
do direito. Trad. Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes,
2007.
[4] MORAIS DA ROSA, Alexandre. A Teoria dos Jogos Aplicada ao Processo Penal. Lisboa: Rei dos Livros, 2015.
Alexandre Morais da Rosa é
juiz em Santa Catarina, doutor em Direito pela UFPR e professor de
Processo Penal na UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) e na
Univali (Universidade do Vale do Itajaí).
Revista Consultor Jurídico, 4 de julho de 2015, 8h00
Leia mais no original: (http://www.conjur.com.br/2015-jul-04/diario-classe-possivel-ensinar-processo-penal-depois-lava-jato#author).
Acesso em: 05/jul/2015.
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