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terça-feira, 3 de março de 2015

Gratuidade judicial, sua presunção, sua comprovação e o novo CPC (Antônio Carvalho Filho)

Postagem 03/mar/2015...

Gratuidade judicial, sua presunção, sua comprovação e o novo CPC – Por Antônio Carvalho


Por Antônio Carvalho Filho - 20/02/2015
A gratuidade judicial ou simplesmente a “justiça gratuita” (em seu sentido mais lato) gera debates e discussões intensos, principalmente na prática forense.
Não há dúvida que o tema mais palpitante neste particular diz respeito à necessidade, ou não, da comprovação da alegação de necessidade do requerente do benefício.
O NCPC inaugura nova disciplina a respeito do ponto e é disso que passamos a nos ocupar neste momento de ebulição e efervescência doutrinária, no qual existem muito mais dúvidas do que certezas.
De pronto, o art. 99[1] estabelece que o pedido poderá ser formulado na primeira manifestação da parte no processo, tais como, a petição inicial, a contestação, a petição para ingresso de terceiro etc. Todavia, surgindo hipossuficiência financeira da parte no curso do processo, ela poderá requerer a concessão do benefício através de simples petição, sem suspensão do processo, como se vê da segunda parte da regra, eliminando, assim, a excessiva burocracia do art. 6º, da Lei nº 1.060/50, que exige a provocação judicial em autos em apartado pelo interessado.
O parágrafo 2º[2] do dispositivo estabelece a tradicional presunção de insuficiência quando alegada em favor de pessoa natural.
Todavia, seu § 1º[3], 2º parte, possibilita ao Juiz determinar à parte interessada a comprovação dos requisitos para a concessão da gratuidade, sendo que somente poderá indeferir o pedido após esta oportunidade.
A regra cristaliza a mais recente e vencedora jurisprudência do STJ, já que possibilitava ao magistrado verificar, no caso concreto, a condição de hipossuficiente econômico da parte, como se vê nos arestos AgRg no AREsp 136.756/MS, AgRg no REsp 1206335/SP, AgRg no AREsp 98143/SP, AgRg no REsp 1185351/RJ dentre outros.
Mesmo que não existisse a previsão do art. 99 § 1º do NCPC, quer nos parecer que ainda assim o Juiz poderia exigir a comprovação da necessidade do benefício, tendo em vista o dever de cooperação de todos sujeitos do processo (art. 6º[4] do NCPC).
A própria Constituição da República de 1988 prevê, no artigo 5º LXXIV, que a assistência jurídica integral e gratuita será concedida para àqueles que comprovarem insuficiência de recursos.
O problema que se coloca neste momento é o seguinte: segundo a regra do art. 99 § 1º do NCPC, o Juiz deverá determinar a comprovação dos requisitos para a concessão da gratuidade se existirem elementos que aparentem a falta dos pressupostos legais para seu deferimento.
Neste primeiro momento, na análise do caso concreto, o magistrado deverá declinar quais são tais elementos que aparentam o descumprimento dos requisitos para a concessão da gratuidade?
Entendemos que não. Cabe ao Juiz, neste momento processual, simplesmente provocar a parte para convencê-lo que os requisitos para o deferimento do pedido estão presentes, sendo que somente na decisão, que virá na sequência, deverá declinar de forma fundamentada, quais são as circunstâncias que demonstram a inexistência dos requisitos autorizadores.
O pronunciamento de emenda do pedido de gratuidade, sob essa ótica, tem natureza jurídica de despacho (art. 201 § 3º do NCPC), diante da inexistência de carga decisória.
Mas quais seriam esses elementos que aparentam a falta dos pressupostos legais para o deferimento da gratuidade? Em rol exemplificativo, entendemos que algumas circunstâncias do processo ou mesmo sobre a parte são suficientes para trazer dúvida ao julgador. Por exemplo, a expressão econômica do bem jurídico debatido em Juízo, a sua natureza e destinação, os valores da obrigação e das respectivas prestações que o requerente ou o requerido se obrigou, o comportamento do postulante do pedido em redes sociais, a notoriedade do patrimônio do requerente do pleito (circunstância muito comum em cidades de médio e pequeno porte) etc. são elementos suficientes para gerar dúvida sobre insuficiência do interessado.
Neste sentido, parece adequado, muito embora não seja obrigatório, que o Juiz indique quais são os documentos, em rol exemplificativo, que devem ser acostados pela parte autora para a comprovação da hipossuficiência, em decorrência do já mencionado princípio da cooperação.
Os advogados diligentes devem promover a comprovação da situação de necessidade da parte interessada quando do próprio pedido da gratuidade.
Caso esta providência torne-se regra, certamente os processos terão sua análise inicial acelerada, já que o Juiz terá condições de avaliar os requisitos legais exigíveis para o deferimento do pedido (binômio impossibilidade-necessidade) desde o início, não havendo necessidade de emendas nas hipóteses em que estiver devidamente demonstrada a insuficiência de recursos do interessado.
E mesmo assim, se o julgador entenda que o pedido não deve ser deferido, terá que oportunizar ao interessado a comprovação de sua condição financeira, como estabelece a regra acima mencionada. Entretanto entendemos que com a providência de instrução inicial do pedido, estas determinações serão cada vez mais raras, já que aqueles que merecem o benefício terão o deferimento de plano.
Muitos advogados sentem-se incomodados com as determinações de comprovação da necessidade, mas perguntamos, qual é o problema de apresentar, juntamente com o pedido, alguns documentos que denotem o modo de vida do postulante da gratuidade? Declaração por instrumento particular a respeito da propriedade de bens móveis (principalmente veículos) e imóveis, a juntada de holerite, ou no caso de pessoas com remuneração eventual da Declaração de IRPF, ou afirmação de que é isento, por exemplo, são documentos que, na prática, auxiliam o julgador a verificar, caso a caso, a necessidade do postulante.
Esses documentos são de fácil produção e acesso e permitem ao Juiz aquilatar com elementos concretos a alegação de gratuidade.
A comprovação da insuficiência de pagamento das despesas e dos honorários pela parte tem o potencial de desfazer esse estado de desconfiança instalado em decorrência, principalmente, dos abusos praticados. Quem realmente necessita do benefício não terá dificuldade alguma em demonstrar os requisitos legais (impossibilidade-necessidade).
É induvidoso que atualmente inúmeros litigantes pedem a gratuidade judicial mesmo tendo condições de arcar com o pagamento das despesas respectivas e dos honorários advocatícios. O processo, nestes casos, já começa com uma mentira.
O exemplo mais recente e gritante do abuso nos pedidos de justiça gratuita ocorreu com famoso jogador de futebol que se afirmou, em ação milionária em face de tradicional clube do futebol brasileiro, pobre conforme declaração de miserabilidade juntada nos autos.
Voltando do extremo ora apresentado, o dia-a-dia forense mostra inúmeros exemplos de pessoas, embora menos afortunadas do que o bem pago jogador, que gozam de plena condição para pagamento das despesas e mesmo assim “tentam” a gratuidade, como se estivessem em um jogo de esperteza.
Todos os atores processuais (Juízes, promotores, advogados e partes) devem saber que o Poder Judiciário necessita das custas e taxas judiciais para funcionar. Não se olvide que cada processo onera sobremaneira o erário público e as despesas processuais visam fazer frente aos gastos da máquina, como pagamento de servidores por estes recursos, inclusive.
Portanto, é responsabilidade de todos nós a manutenção da higidez do sistema da gratuidade.
Existem aqueles que sustentam que os Juízes que exigem a comprovação da hipossuficiência da parte estão interessados em barrar os processos que lhes são distribuídos.
De pronto tal posição decorre de preconceito inadmissível e de assoberbada falta de respeito com nossos magistrados. Demonstraremos que o argumento em questão é mero esperneio de quem não tem argumentos suficientes para debater em alto nível.
Suponhamos que o Juiz determine à parte autora, requerente da gratuidade, a comprovação da necessidade com a instrução de documentos. A parte, todavia, deixa escoar em branco o prazo e o Juiz, fundamentadamente, indefere o pedido e determina o recolhimento das custas iniciais.
Caso a parte não recolha as despesas processuais, o processo terá sua distribuição cancelada (art. 257 CPC/73; art. 288 NCPC). Na prática, isso significa que o Juiz receberá outro processo dentre os que serão distribuídos em compensação ao cancelado.
Ou seja, este magistrado terá um processo a mais em relação aos demais colegas, diante do cancelamento da distribuição. Isso significa mais trabalho e não menos!
Ao contrário do que propala o (maldoso) senso comum forense, os Juízes que controlam a concessão do benefício da gratuidade não estão preocupados em “barrar processos” como se porteiros fossem (como já ouvimos alguns). Os processos virão em escala geométrica. Não há como “barrar” a criatividade humana e tampouco a litigiosidade sem a implementação de políticas públicas eficientes de prevenção de litígios com foco nos grandes litigantes e profusão da cultura da mediação extrajudicial e da arbitragem.
O que os Juízes pretendem é o equilíbrio do sistema de despesas processuais, nada mais. É zelar para que os beneficiários da gratuidade judicial sejam efetivamente aqueles que necessitam do auxílio.
No final das contas, somos nós, os operadores do direito em conjunto, que daremos o sentido para as normas ora analisadas. A prevalecer entendimento diverso pelo deferimento automático da gratuidade, teremos que enfrentar as consequências decorrentes, mormente porque os que hoje pagam as despesas irão passar a se declarar necessitados e todos nós, contribuintes, suportaremos indiretamente por meio de impostos os custos da Justiça em participação superior do que ocorre atualmente.
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Referências:
[1] Art. 99. O pedido de gratuidade da justiça pode ser formulado na petição inicial, na contestação, na petição para ingresso de terceiro no processo ou em recurso. Se superveniente à primeira manifestação da parte na instância, o pedido poderá ser formulado por petição simples, nos autos do próprio processo, e não suspenderá seu curso.
[2] Art. 99 …
  • 2º Presume-se verdadeira a alegação de insuficiência deduzida exclusivamente por pessoa natural.
[3] Art. 99 …
  • 1º O juiz somente poderá indeferir o pedido se houver nos autos elementos que evidenciem a falta dos pressupostos legais para concessão da gratuidade; neste caso, antes de indeferir o pedido, deverá o juiz determinar à parte a comprovação do preenchimento dos pressupostos para a concessão da gratuidade.
[4] Art. 6º Todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva.
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Antonio2

Antônio Carvalho Filho é Juiz de Direito (TJPR), Professor de Processo Civil, Coordenador do site www.falandodeprocesso.com.br.

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