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sábado, 31 de janeiro de 2015

As aventuras do último tropeiro (René Ruschel)

31/jan/2015...


As aventuras do último tropeiro

Na trilha das mulas escreveu-se uma história de vida
por René Ruschel — publicado 29/01/2015 06:07, última modificação 29/01/2015 11:47

Aos 101 anos, Otávio Reis, para muitos “o último tropeiro vivo”, segue dono de uma memória ímpar. Recorda de fatos em detalhes. Nome de pessoas e locais por onde passou ou viveu há 90 anos surgem com facilidade na ponta da língua, confiantes, fazendo de sua saga pessoal uma fábula fluente. “Sempre fui magro e isso ajudou muito a cavalgar sobre o lombo de mulas e cavalos”, diz, os olhos acesos a mirar o tempo que se foi, a voz pausada a contar com precisão as histórias do menino nascido em 23 de janeiro de 1914, à beira do Rio Iguaçu, hoje Porto Amazonas, a 80 quilômetros de Curitiba.
Filho de agricultores, Reis passou a infância no campo entre 12 irmãos, embalado pelos apitos de trens e vapores que moviam a economia da região. Aos 10 anos vendia leite, queijo e laranja para os viajantes na estação e no cais do porto. Mas o espírito de aventura o fez sonhar com um mundo sem fronteiras. Nessa época, um de seus cunhados levou-o para aquela que seria sua maior experiência de vida. Ajudou-o a guiar 30 mulas entre as cidades de Ponta Grossa e Castro, no interior do Paraná. “Fiquei deslumbrado e descobri que era isso que eu queria fazer”, lembra com ar de nostalgia.
Não demorou a viver sua primeira grande aventura. Em 1928, aos 14 anos, incorporou-se a um grupo de tropeiros para percorrer aquela que era a rota mais importante do comércio de mulas do País: o trajeto Viamão, no Rio Grande do Sul, a Sorocaba, interior de São Paulo. “Eu era o madrinheiro”, recorda. Ou seja, ia à frente da tropa montado na “madrinha”, a fim de regular o passo dos animais. Foram três meses de viagem, levando 800 mulas.
Cavalgar por trilhas e picadas naqueles sertões era árdua missão, principalmente no inverno. “Como eu não tinha blusa de lã para me agasalhar, os companheiros fizeram uma abertura num cobertor ‘corta-febre’, enfiaram no meu pescoço e virou um poncho.”  À noite, acampavam em fazendas. E, para proteger o menino, os mais velhos o cercavam à beira de uma fogueira para que pudesse dormir. “Ainda hoje, quando recordo esse gesto dos meus amigos, fico emocionado. Eles queriam me cuidar, fazer com que não sofresse tanto com os rigores do inverno.”
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'Foi difícil, mas não me arrependo de nada', diz Reis aos 101 anos
Entre elas, dormir em rede. “A onça só ataca pelas costas. Se a gente dormia na rede, o animal não sabia qual lado estava a cabeça do tropeiro e ia embora.” Cruzar os rios com a tropa era outro temor, pois a qualquer momento podia surgir uma sucuri. Na divisa do Rio Grande do Sul com Santa Catarina, era preciso pagar pedágio aos índios. “A gente pagava 2 mil réis e o cacique soltava um longo assovio. Aquilo fazia um eco pela trilha que cortava a Serra Gaúcha e toda a tribo sabia que a gente ia passar. Se não pagasse, era problema na certa.”
Com a queda do comércio de mulas, o jeito foi mudar a sua rota. Primeiro, trabalhou na própria região fazendo “tropeadas domésticas”. Mas era muito pouco para quem queria aventura e liberdade. Na década de 1940, o norte do Paraná era o novo eldorado. Casado, foi morar em Jacarezinho, na região norte pioneira do Estado. Agora sua missão era levar boiadas de Mato Grosso ao Paraná e São Paulo. A vida errante fez com que morasse “na estrada”, em acampamentos, e só retornava para rever a família a cada dois meses, “ou às vezes até mais”.
Dos sete filhos, cinco nasceram no norte do Paraná. Desses partos, dois foi ele quem fez. Quando nascia a criança, ele a amparava e, com uma tesoura comum, cortava o cordão umbilical. “Enfaixei o nenê e entreguei à mãe para amamentar. Depois acendi uma vela e cauterizei o corte. Assim, os dois, mãe e filho, dormiram como anjos.”
Em 1984, aos 70 anos, retornou às origens para viver em uma chácara dentro da cidade. Viúvo, mora com um filho e tem uma fiel escudeira, Maria. “Não sei se faria tudo outra vez. Foi muito difícil chegar até aqui. Mas não me arrependo de nada. Vivi cada minuto bem vivido. Fiz amigos e tenho uma imensa saudade de todos. Sou muito feliz.” Ao final da conversa, o velho tropeiro olha fixamente e diz: “Posso fazer uma pergunta? Como você soube de mim? Por que se interessou? Minha história é tão simples!”
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Do Rio Grande do Sul ao interior de São Paulo, enfrentando frio, onças e sucuris nas picadas, Otávio Reis guiou o caminho de tropas por anos a fio

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