20/nov/2014...
Edição 39 > _vultos da república > Dezembro de 2009
Pão e glória
De vereador de província a ministro da Justiça, do apoio ao
golpe militar ao petismo, da defesa de ACM à de Lula - e de Chico Mendes, Edir
Macedo, Roger Abdelmassih, Camargo Corrêa e Eike Batista - as muitas causas de
Márcio Thomaz Bastos
por Luiz Maklouf Carvalho
Da grande janela de sua sala de trabalho, no 14º andar de um
prédio na avenida Faria Lima, o advogado Márcio Thomaz Bastos contemplava, lá
embaixo, duas grandes mulheres nuas, de costas uma para a outra. Eram estátuas
de bronze do escultor Galileo Emendabili. "Olha o monumento das
musas", apontou o primeiro ministro da Justiça de Luiz Inácio Lula da Silva.
Quem o conhece bem, e sabe de seu entusiasmo pelas formas artísticas, diria que
o endereço foi escolhido pelo único motivo de tê-las sempre à vista.
Embevecido, ele disse: "Olhar como proprietário é muito diferente de olhar
como inquilino." Era uma tarde de setembro. Naquela manhã, o advogado e
seus dois sócios no escritório trocaram os 25 mil reais de aluguel pelos 2,8
milhões que os transformaram em donos do 14º andar inteiro no prédio. Para o
criminalista, que concentra seus investimentos em imóveis de alto padrão, foi
mais um na coleção. "Fiz um bom negócio", disse, roçando a mão
direita na esquerda. "Sede própria!", exclamou, com uma risada curta.
Ao se afastar da janela, deu mais uma olhadela no monumento das musas.
Márcio Thomaz Bastos tem 74 anos, 72 quilos e 1,75 metro de altura. A
primeira impressão que ele passa é de calma. Parece ter todo o tempo do mundo
para dedicar ao interlocutor e é tranquilo ao andar, ao falar, ao gesticular.
Mas, com alguma frequência, seu semblante fica opaco, e então é difícil saber
em que ele está realmente pensando.
Elegância é outra palavra que serve para defini-lo. Ela começa nos sapatos -
manda engraxar todos os dias, no escritório, o par que está usando, enquanto
fica de meias - e prossegue nos ternos Armani, ou de alfaiates portugueses.
Usa-os sempre abotoados, nunca os tira em público e muito menos em
restaurantes. "Acho deselegante, e se insistirem digo que estou com a
camisa rasgada", explicou, cortando um robalo grelhado no Magari, um
restaurante caro da rua Amauri. O toque final está nas gravatas que coleciona -
elas são 200, pouco mais que os imóveis que possui. É raro que repita alguma,
mas não gosta de se desfazer delas.
Thomaz Bastos almoça nas redondezas do escritório, em restaurantes aonde vai a pé,
frequentemente em companhia dos sócios: o sobrinho José Diogo Bastos Neto e
Marcos Chiaparini. No Forneria San Paolo, onde vai mais, pede invariavelmente
vitela empanada. O maître do Magari o recepciona com ministro para lá, ministro
para cá, avental sobre o terno, e a cortesia de uma saladinha de 34 reais (sem
tomate, que ele odeia, assim como feijão, cebola e alho).
"Venha ver o closet dele", convidou, numa tarde de sábado, Maria
Leonor de Castro Bastos, com quem Thomaz Bastos está casado há 43 anos. Eles
são pais de Marcela, que tem um menino e uma menina pequenos. "Ele é um
entojo com a filha e com os netos, estraga os três", disse Maria Leonor,
bem-humorada, no terraço ajardinado do apartamento de 300 metros quadrados
em que os dois moram com os empregados fixos e o cachorro Marcelinho,
ultimamente adoentado. O prédio se chama Palazzo Reale e faz jus ao nome.
"Esse até que não dá muito trabalho", comentou ela, enquanto mostrava
as quatro salas da parte social. O apartamento anterior, um triplex de 600 metros quadrados ,
era bem mais trabalhoso de administrar.
O ex-ministro chegou, no começo da entrevista, de tênis branco e jogging
azul-marinho. Disse que vinha do escritório - o das musas, ali perto -, onde
trabalhara por algumas horas. Beijou-a e se recolheu à sala de leitura. Maria
Leonor percebeu quando ele fechou a porta. "Não quer nos atrapalhar",
disse. Perguntei se ele era comportado. "É", ela respondeu. "Ou
então faz muito bem feito."
Meia hora depois, a caminho da área íntima, avisou-o: "Vou mostrar o seu
closet." Thomaz Bastos lia numa chaise-longue. "Eu quero ver é você
mostrar o seu", disse a ela. No dele, com impecável arrumação,
destacavam-se 25 pares de sapatos, a coleção de gravatas e os trinta ternos que
o fazem implicar com as empregadas, quando acha que estão passados demais ou de
menos.
"Mostra o seu!", provocou ele novamente, da sala de leitura. Maria
Leonor mostrou: o closet dela, de fato, é bem maior do que o dele. Os armários,
com incontáveis divisórias, vão do chão ao teto, com escadas corrediças para
alcançar os que ficam em cima. "Parece uma boutique, não é?",
perguntou ela, já entrando no quarto do casal. Na cabeceira da cama há um
painel grande e colorido do pintor Martins de Porangaba. É peça dileta da
coleção de quadros do advogado - esta, menor que a dos imóveis -, quase todos
de artistas nacionais. No escritório e no apartamento, há trabalhos de
Portinari, Di Cavalcanti, Rebolo, Bonadei, Tomie Ohtake e uma pitoresca coleção
de 37 miniaturas de advogados em diversos materiais e situações.
A cidade de Cruzeiro, no Vale do Paraíba, à beira da serra da Mantiqueira, tem
80 mil habitantes. Fica em São Paulo, perto das divisas com Minas Gerais e o
Rio. Continua de pé, numa das ruas centrais, o casarão em que Márcio Thomaz
Bastos nasceu e cresceu. Ele é filho do médico José Diogo Bastos e da
descendente de libaneses Salma, de quem herdou o nariz proeminente. Dos seus
quatro irmãos, dois são falecidos. As irmãs - Maria Isabel e Maria Amélia -
moram em São Paulo, em apartamentos diferentes de um mesmo edifício.
Mais do que médico, Diogo Bastos foi um chefe político conservador. Começou
como prefeito indicado, na década de 30, e, com a medicina ajudando o voto,
tornou-se líder local do Partido Social Progressista, o psp de Ademar de Barros,
governador paulista que entrou para a crônica política associado ao lema
"Rouba mas faz".
As irmãs contam que Thomaz Bastos, a quem apelidaram de "Grilo Seco",
tinha um jeito especial para cativar pessoas difíceis. Era o caso da empregada
que serviu a família por mais de cinquenta anos. "Ela era primitiva, um
terror, mas tinha paixão por ele e fazia o que ele quisesse", contou Maria
Amélia.
Com a queda da ditadura getulista, Diogo Bastos elegeu-se deputado estadual.
Passou a movimentar-se na ponte rodoviária Cruzeiro-São Paulo, onde montou
apartamento. Reelegeu-se em 1954, foi secretário de Ademar de Barros, depois
presidente da Caixa Econômica Estadual e, no fim da carreira, ministro do
Tribunal de Contas do Estado.
Márcio Thomaz Bastos estudou em escolas públicas e foi aprovado no vestibular
para a Faculdade de Direito do largo São Francisco. Gosta de contar que foi
estimulado por um júri de crime passional a que assistiu em Cruzeiro aos 11
anos, escondido, até que o juiz o mandasse sair. Não se lembra de qualquer
momento mais destacado nos quatro anos de faculdade: "Eu ficava mais na
biblioteca." Saiu bacharel, na turma de 1958, e foi aprender a advogar em
Cruzeiro, primeiro como assistente de um rábula, e depois no escritório que montou
na casa do pai.
A Câmara Municipal de Cruzeiro, um velho palacete amarelo e branco, ostenta
numa parede dezenas de placas onde estão gravados, por ordem de legislatura, os
nomes dos vereadores que lhe fizeram a história. O de Márcio Thomaz Bastos está
nas placas da 16ª legislatura, de janeiro de 1964 a fevereiro de 1969. O
filho do dr. Diogo foi candidato pelo psp nas eleições de 13 de outubro de
1963.
"O Márcio era bom de palanque e não tinha medo de cara feia",
relembrou, em Cruzeiro, seu amigo Carlos Antico, delegado de polícia
aposentado, também ele eleito naquela campanha. Advogado batalhador, namorador
emérito, pé de valsa, boêmio e bom de conversa - Antico o chama carinhosamente
de "Bico Doce" -, Thomaz Bastos era tão popular que chegou em primeiro
lugar (com 670 votos) na eleição. Maria Amélia lembrou com alegria a votação do
irmão: "Foi uma festa. A fila na porta de casa dobrava o quarteirão. Os
eleitores queriam receber o prometido, como remédios e alimentação."
Antes mesmo de tomar posse, o vereador mais votado brigou com o jornal da
cidade, o Correio Popular. Como Thomaz Bastos defendia um sindicato operário
contra os laticínios Vigor, colunistas do jornal o criticaram por "buscar
votos sofregamente", e ele mandou uma carta à redação. Publicada na primeira
página, a carta dizia que para ele era uma honra ser advogado dos operários
"não apenas na afirmação lírica dos comícios, mas no dia a dia concreto de
um exercício profissional constante". Além de cancelar a assinatura do
jornal, Thomaz Bastos atacou um político com quem viria a ter boas relações:
"Buscar sofregamente votos é fazer, por exemplo, como o deputado Ulysses
Guimarães, que nomeia para altos postos federais os seus cabos eleitorais,
cobrando em cobertura da imprensa e votos tais nomeações."
Na resposta, também estampada na primeira página, o Correio o chamou de
"moço irresponsável e leviano" e apontou-lhe contradições: "Aqui
em Cruzeiro é o amigo dos operários. A favor de todas as greves. Contra
qualquer despedida. No âmbito estadual justifica a repressão às greves e as
despedidas em massa. Quer fazer o impossível: servir a dois senhores. Sem
sinceridade, já se vê."
Márcio Thomaz Bastos foi um dos oradores da solenidade de posse dos novos
vereadores, no 1º de janeiro de 1964. Em 19 de março, o governador Ademar de
Barros comandou, em São Paulo, uma enorme manifestação contra Goulart, a Marcha
da Família com Deus pela Liberdade. Os Bastos, pai e filho, foram à capital
participar da passeata. Doze dias depois veio o golpe que derrubou o presidente
e instalou a ditadura militar.
As atas da 16ª legislatura de Cruzeiro estão preservadas em quatro volumes
grossos na Câmara Municipal. A de 1º de abril de 1964 registra que a sessão
começou às 22h15 e teve caráter "permanente, devido à situação do país".
Um requerimento de Márcio Thomaz Bastos, em nome da bancada do psp, da qual era
líder, propôs um ofício ao governador Ademar de Barros, "exprimindo seu
apoio à atuação dessas dignas autoridades". Oito vereadores
manifestaram-se contrariamente, entre eles Zélio de Paula Aguiar, do PTB. A ata
informa que Thomaz Bastos foi à tribuna e defendeu o apoio ao golpe.
"Foi uma sessão tensa, com muito bate-boca, que entrou pela
madrugada", recordou o advogado Zélio Aguiar no escritório de sua casa, em
São José dos Campos. "O Márcio falava bem, era enfático, mas nós
conseguimos ganhar." Aguiar é filho da lavadeira que servia a família
Bastos, e brincava com o garoto Márcio quando a mãe ia entregar ou buscar a
roupa. "Tenho muito orgulho de tê-lo conhecido", disse. Na vereança,
viu de perto o sangue-frio do futuro ministro: "Teve um dia em que o
vereador Aurélio Novaes, grandalhão, partiu para cima dele. Pois sentado ele
estava, e sentado ficou. Logo depois, na tribuna, desancou o Novaes. Não se
acovardou."
Em 15 de maio de 1964, Márcio Bastos pediu que a Câmara nomeasse uma comissão
de três vereadores para representá-los numa outra Marcha da Família com Deus
pela Liberdade, agora de comemoração. Dessa vez, o requerimento foi aprovado.
Na sessão de 1º de abril de 1965, aniversário do golpe, Bastos assinou um
requerimento pedindo a inclusão, nos anais, de um manifesto do psp. Um trecho
dizia assim: "Os homens do Partido Social Progressista acreditam na brava
ação construtiva do eminente presidente Castelo Branco, que o Congresso
Nacional, como emanação da vontade do povo que representa, indicou naquele
momento conturbado da vida brasileira para a todos nos conduzir à meta segura,
além do caos em que maus patrícios pretenderam nos atirar."
Em outubro de 1965, o Ato Institucional nº 2 extinguiu todos os partidos. As
restrições impostas levaram ao bipartidarismo, com a criação da Arena, de apoio
ao regime militar, e do mdb, a oposição oficial. "O Márcio ficou na Arena,
com o pai", disse Carlos Antico. "Eu fiquei com o mdb e ele com a
Arena", informou Auxibio Novaes, também vereador na época. A única mulher
entre eles era Aurora Motta. Ela tem 78 anos e, recentemente, lançou um livro
de memórias em que aparece, em uma foto, ao lado de Thomaz Bastos quando ele
era ministro. "História é história: eu era do mdb e ele era da
Arena", disse ela, na cozinha de sua casa, servindo café e pão de queijo.
Thomaz Bastos tem outra lembrança. "Não me filiei em nenhum dos dois
partidos", disse.
As atas da Câmara mostram que ele foi um vereador assíduo nos primeiros dois
anos e meio do mandato, até meados de 1966. Casara-se em janeiro daquele ano
com Maria Leonor, sua vizinha, e em agosto pediu licença de seis meses para
servir na Secretaria do Interior do governador Laudo Natel - substituto de
Ademar, que a ditadura havia cassado. O secretário era o seu pai, Diogo Bastos.
Sua última assinatura de presença na Câmara foi em 1º de janeiro de 1968. O pai
o colocou como consultor da Companhia de Melhoramentos de Paraibuna e, depois,
da Companhia Energética de São Paulo, a Cesp. Mudou-se para São Paulo e abriu,
com dois colegas mais velhos, um escritório, voltado para a advocacia criminal.
Passou a fazer júris. Como às vezes enfrentava até três por semana, foram
dezenas na década de 70. Num, em Lorena, absolveu um réu que matou a esposa a
tiros, dentro de um ônibus. Bastos leu para os jurados a carta que a mulher
havia mandado ao amante, encontrada pelo marido na manhã do crime. Arguiu
legítima defesa da honra e ganhou por sete a zero. Defendeu vários maridos como
o de Lorena, postulou por policial acusado de pertencer ao Esquadrão da Morte,
por réu que confessara homicídio sob tortura policial, por mulher que matou o
marido. Em setembro de 1976, no caso em que defendeu o policial Massaro Honda, acusado
de pertencer ao Esquadrão da Morte, e de torturar e matar três acusados de
roubo, fez um apelo dramático aos jurados. Apontando a cruz, na parede, disse:
"Em nome de Deus, não condenem um inocente. O processo tem 1 080 folhas e
1 080 falhas." Honda foi absolvido por sete a zero.
O desembargador aposentado Marino Júnior, hoje com 84 anos, conheceu Thomaz
Bastos em júris, quando era promotor. "A mim ele nunca venceu", disse
com um sorriso maroto, na sala de seu apartamento, em Higienópolis. "Era
um bom advogado, mas empolado e metido a besta." Bateram-se em três casos
- e Thomaz Bastos perdeu todos. O que ganhou mais destaque nos jornais foi o
júri de um ex-soldado da Aeronáutica que matara, pelas costas, um menino de 15
anos. Thomaz Bastos alegou embriaguez do réu, que configuraria homicídio sem
intenção de matar. Não adiantou: o soldado foi condenado a 21 anos de prisão.
Marino foi o único promotor a abalar a frieza profissional de Thomaz Bastos.
Fez tantos apartes verbais numa sessão que o juiz, acatando os protestos do
advogado, pediu que o promotor o deixasse falar. Marino disse então que
levantaria o braço toda vez que o advogado falasse uma mentira. E assim fez, em
silêncio, a cada minuto. "Ele realmente me tirou do sério", admitiu o
criminalista, com um esgar, ao ser lembrado do caso.
Em junho de 1972, o colunista social Tavares de Miranda, da Folha de S. Paulo,
noticiou que a Ordem dos Advogados do Brasil, a oab, designara Márcio Thomaz
Bastos, "que vem despontando de forma brilhante no fórum criminal de São
Paulo", como examinador de novos candidatos. Como conselheiro da Ordem,
juntou-se a três outros criminalistas que viajavam pelo interior, fazendo
palestras a serviço da entidade. Dois deles foram ministros da Justiça do
governo de Fernando Henrique Cardoso: José Carlos Dias e Miguel Reale Jr. O
outro, Arnaldo Malheiros Filho, poderia ter sido juiz do Supremo Tribunal
Federal quando Bastos foi ministro, mas preferiu ficar com a banca. Depois das
palestras, o quarteto divertia-se à larga em cabarés de província.
"Cigarro, sim; celular, não", avisa uma plaqueta na mesa de vidro de
seis lugares em uma das salas do escritório de José Carlos Dias. Nos anos do
quarteto, seu apelido era "Menino Jesus". "O Márcio já tinha
liderança e era um grande advogado de júri", disse Dias, de 70 anos.
"A brincadeira, entre nós, era dizer que ele era Arena, no interior, e mdb
na capital. Ele tem uma habilidade tremenda." Pedi que explicasse melhor.
Dias olhou para as gravuras francesas com a história de dom Quixote, penduradas
na parede do escritório, e respondeu: "O Márcio é bagre de barriga
ensaboada. Tanto que conseguiu chegar lá, e foi um ministro de grande
coerência. Nunca o vi como um petista, mas como um advogado doPT, um petista
atucanado."
José Carlos Dias era advogado de presos políticos e atuava na Justiça Militar.
Thomaz Bastos nunca advogou nessa área. No restaurante Magari, ele falou que
teve apenas um caso na Justiça Militar. Mas não quis dizer qual. "Eu não
entrei porque havia um monopólio", justificou-se. "O que havia era
carência", disse Dias.
Na década de 70, os jovens bacharéis eram fãs de um advogado mais velho e
experiente, Kleber de Menezes Dória. Ele havia até cumprido pena pelo
assassinato de um policial, mas, carismático, era figura catalisadora do grupo
que se reunia na chamada "Praça da Alegria" - na verdade um banco de
madeira que ficava na antessala do tribunal do júri do Fórum João Mendes.
"Era uma grande figura", disse Thomaz Bastos. Ele batiza as salas do
seu escritório com o nome de criminalistas falecidos que foram seus amigos. Uma
delas é a Kleber de Menezes Dória.
Thomaz Bastos também é nome de sala, mas no escritório da advogada e
ex-deputada tucana, hoje nos Democratas, Zulaiê Cobra Ribeiro, sua amiga desde
os anos 70. "Eu era a motorista e assistente dele quando tínhamos casos no
interior", contou. "Cansamos de viajar juntos e eu o ajudei em muitos
júris. O Márcio é uma potência, um craque, e por isso merece ser nome de
sala."
O criminalista Mauro Nacif tem 64 anos, dez a menos que Thomaz Bastos. Foram
parceiros de advocacia e de farra, e dividiram um pequeno e movimentado
apartamento no centro de São Paulo. O único mobiliário era um tatame.
"Estudávamos muito, cada um no seu dia", lembrou-se Nacif, em seu apartamento
nos Jardins. "Naquela época, o Márcio não tinha dinheiro sobrando.
Trabalhava muito e vivia bem, mas sem folga. Uma vez me pediu uma boa quantia
emprestada, mas pagou tudo direitinho."
Num certo dia de fevereiro de 1983, o general Manoel Augusto Teixeira, comandante
da 11ª Brigada de Infantaria Blindada, em Campinas, retirou-se, ofendido, de
uma sessão solene da oab local. Instalando os novos conselheiros da seção
campineira, Márcio Thomaz Bastos, presidente da Ordem em São Paulo, fizera um
discurso criticando "a ilegitimidade dos que ocupam o poder desde o golpe
de 1964". Foi um ponto de inflexão na sua participação política - uma
autocrítica implícita e discretíssima do seu apoio ao golpe de 1964. A mudança começou em
1974, com a participação na oab. Deu um passo à frente quatro anos depois,
quando se elegeu secretário-geral da entidade. "Na Ordem, começamos a nos
aproximar dos movimentos sociais", contou Thomaz Bastos. "Lembro-me
de uma frase que eu criei, e depois se espalhou: 'A greve é um direito, não é um
delito.'"
Perguntei ao ex-ministro, em uma das quatro entrevistas no seu escritório, o
que o fizera se aproximar, vagarosamente, da centro-esquerda. Ele me disse que
o processo começou antes, pois tivera um "deslumbramento adolescente"
com Marx - "Contribuição à Crítica da Economia Política me encantou"
- e porque leu o Freud de O Mal-estar na Civilização. "Fiz
cinco anos de terapia freudiana", revelou. Mauro Nacif contou: "O
Márcio me disse uma vez, feliz da vida, que seria a primeira pessoa a fazer
análise por estar muito bem, e não o contrário."
A Ordem solidarizou-se com as greves do abc no começo dos anos 80. Foi quando
Thomaz Bastos conheceu Luiz Inácio Lula da Silva. "Estive a primeira
vez com o Lula em 1979, numa palestra de sindicato", disse. "Me
colocaram para falar depois dele. Era uma gelada falar depois do Lula. Até pedi
desculpas por isso. E ele riu, brincou, e daí para a frente a gente foi se
aproximando. Fomos nos encontrando muitas vezes em eventos contra a ditadura, e
ficamos mais próximos politicamente, mais ainda não afetivamente." Nas
eleições de 1982, para governador de São Paulo, com Lula candidato pela
primeira vez, ele votou no emedebista Franco Montoro.
Uma palmeira artificial alegra a sala de pé-direito alto do apartamento do
promotor aposentado Antônio Visconti. Em agosto de 1984, ele fez o júri mais
famoso de sua carreira - o do cantor Lindomar Castilho, acusado de assassinar a
tiros a ex-mulher, Eliane de Gramont, e de tentar matar o namorado dela. Seu
assistente na acusação foi Thomaz Bastos. "A grande figura daquele
julgamento foi ele, sem favor", disse o promotor, entre esfihas e quibes,
na mesa da sala de jantar. Os repórteres registraram que Bastos foi aplaudido
de pé ao concluir sua tréplica. Não era pouca coisa quando o advogado de defesa
chamava-se Waldir Troncoso Peres, tido como o melhor entre todos (e nome de
outra sala do escritório da Faria Lima). Desta vez, a tese da legítima defesa
da honra - tantas vezes usada por Bastos em outros casos - foi arguida por
Peres. E perdeu: o cantor foi condenado a doze anos de reclusão. Como se dizia
então, o criminalista galgou mais alguns degraus na escada da fama.
Dinheiro, do grosso, iria entrar a partir do ano seguinte. "De mim ele
levou uns 250 mil dólares, o que naquele tempo era muita coisa", contou o
empresário Mário Garnero em seu cinematográfico escritório, numa torre envidraçada
de um edifício da Faria Lima. Naquele 1985, começo do governo Sarney, o dono do
Grupo Brasilinvest, acusado de ter provocado um rombo nos cofres públicos, foi
indiciado pela Polícia Federal e estava ameaçado de prisão. "Ele foi muito
corajoso", afirmou o empresário. Garnero contou também que, dado o sucesso
de sua intervenção, o advogado quis reajustar os honorários. "Mas aí eu já
estava mais esperto", disse, sorrindo. O "caso Brasilinvest"
inaugurou, na advocacia criminal paulista, o ramo dos grandes crimes
financeiros que faria, e faz, a fortuna de uma dúzia de grandes escritórios.
"Havia muita pressão para a prisão preventiva do Mário, à qual eu me opus
com muita convicção porque não havia nenhum cabimento legal", disse Thomaz
Bastos. "Eu já tinha uma reputação de homem de esquerda e era candidato a
vice-presidente da oab nacional. Fui muito patrulhado. 'Por quanto o senhor se
vendeu?', me perguntaram, em um programa de televisão. Eu respondi que estava
cumprindo o meu dever, o sagrado direito de defesa. Aquela causa me jogava
muita adrenalina no sangue, era o sonho de qualquer advogado." Perguntei
se recebera 250 mil dólares com a causa. "Fui bem remunerado",
respondeu, no Magari.
Nesse mesmo almoço, em que bebeu água mineral sem gás, contou que a primeira
causa que o enriqueceu foi a de Ivo Morganti, em 1982, na qual defendeu a viúva
e o filho do fazendeiro e usineiro, acusados de assassiná-lo. "Se fossem
condenados, perderiam uma herança calculada em 140 milhões de dólares",
disse o advogado. "Pedi 20% disso se ganhasse a causa. Foi trabalhoso,
demorado, mas nós ganhamos." Boa parte dos 20% que cobrou foi paga, para
usar sua expressão, "com uma puta fazenda de 1 200 alqueires", em
Ribeirão Bonito. Ele tem outra fazenda, em Piracicaba, e estão ambas arrendadas
para o grupo canavieiro de Rubens Ometto. "Se eu fui nas fazendas umas
três vezes, é muito", disse, ao tomar seu segundo café expresso. "Eu
sou do interior, mas não sou rural." Hoje ele toma três cafés expressos
por dia. Quando ministro, chegou a catorze xícaras diárias. Sempre sem açúcar.
Nos três escritórios que teve antes de se mudar para perto das musas, Thomaz
Bastos encerrava a semana de trabalho com drinques eventuais com os colegas. Às
vezes jogava-se um baralhinho. Ele gosta de jogar, pela fissura do desafio. Já
frequentou cassinos pelo mundo afora. E uma vez, só uma, como estivesse perto
de fronteira, foi a um cassino no Paraguai. Perdeu, na roleta e no 21, os 10
mil reais que levara. Tomou emprestado outro tanto com o gerente, e recuperou
parte do prejuízo. Os poucos amigos a quem contou a aventura comentaram que
pedir emprestado a gerente de cassino paraguaio era algo que só Thomaz Bastos
faria.
O terceiro endereço - um andar inteiro na avenida Liberdade, número 65, próximo
ao fórum central de São Paulo - foi comprado do advogado Paulo José da Costa.
"O Márcio já era um advogado de prestígio", disse Costa, no
escritório que divide com o filho. Nas muitas fotos pelas paredes, Bastos
aparece em festas de aniversário de Costa.
Quando o ex-ministro voltou a advogar, no ano passado, pai e filho o convidaram
para um almoço. Foi no Parigi, outro restaurante estrelado da rua Amauri. Costa
lhe disse que ficaria feliz se seu escritório pudesse compartilhar algumas
causas com ele. Em conversas desse gênero, é difícil que Thomaz Bastos diga
diretamente um não. Disse que ia ver. Até o final de outubro não tinha dado
resposta. "Talvez ele ache o Fernando muito novo e eu muito entrado nos
anos", especulou Costa.
No novo endereço, Bastos consolidou sua carreira. Criou hábitos como a graxa
diária nos sapatos e a soneca depois do almoço. Manteve as reuniões sociais de
vez em quando, e começou a apostar em estagiários que considerava inteligentes,
nem um pouco preguiçosos, serenos e sedentos por dinheiro e sucesso
profissional. "Gosto de apostar em pessoas, de estimular vocações",
disse. "Não tenho medo de sombra, nem de emulação."
Alberto Zacharias Toron foi um dos primeiros desses iniciantes. O aprendizado
lhe deu fôlego para o voo próprio e ele montou sua própria banca. Tiveram uma
encrenca, há algum tempo. Toron era advogado do juiz Nicolau dos Santos Neto, o
Lalau. Sentiu-se ofendido quando o jornalista Boris Casoy disse, no Jornal da
Record, que réus como Lalau "têm bons advogados, pagos, aliás, com
dinheiro rapinado de todos nós, e acabam saindo ilesos". Toron entrou com
uma queixa-crime contra Casoy e chamou Thomaz Bastos para tocar a causa. Os
advogados do jornalista entraram com um habeas corpus pedindo o trancamento da
ação. Toron dava como certo que Thomaz Bastos faria a sustentação oral em sua
defesa. Mas, para alegria de Casoy, Bastos mandou Dora Cavalcanti, outra das
estagiárias que formou, àquela altura já uma respeitada criminalista. Toron
perdeu, mudou de advogado no recurso ao STJ, e perdeu novamente. E não
desculpou o amigo por não ter feito a sustentação.
Dora Cavalcanti tinha 22 anos, e estava no 4º ano da faculdade do largo São
Francisco, quando foi pela primeira vez à avenida Liberdade, 65. "O que eu
sei aprendi com o Márcio", disse ela. "Mas trabalhava como uma
camela." Deu um exemplo: quando amamentava sua primeira filha, nem sempre
podia ir para casa. "Eu tirava o leite no escritório, colocava numa
mamadeirinha e pedia para o boy levar para a bebê", contou. O que ela viu
em Thomaz Bastos ao longo de quase dez anos como sócia minoritária (ganhava 2%
do faturamento)? "O cara é bom em tudo. E sempre muito calmo. Pode estar
caindo o mundo e chovendo canivete, ele não se mexe. Só fica triste quando acha
que cobrou barato."
Luiz Fernando Pacheco é outro que começou como estagiário e virou sócio. Ficou
dez anos com Thomaz Bastos e hoje tem um escritório de andar inteiro no mesmo
edifício que dá para o monumento das musas. Das boas frases que ouviu do dr.
Márcio, como o chama, se lembrou de uma: "Um caso tem que dar pão ou tem
que dar glória. Se der os dois, melhor."
Na campanha de Luiza Erundina à prefeitura paulistana, em 1988, Thomaz Bastos
abriu seu triplex para ajudar os cofres do PT. "Fiz um jantar para
arrecadar fundos", disse. No ano seguinte, apoiou publicamente a
candidatura de Lula à Presidência. "Fiz uma frase de efeito num comício
que foi aplaudidíssima: 'Será que um operário pode ser presidente da República?
Não só pode, como deve.'" Ao apoiar o petista, desagradou dois amigos:
Ulysses Guimarães, do PMDB, e o tucano Mário Covas.
A ligação ficou mais forte depois de um escândalo que envolveu a prefeitura de
Erundina e a empresa Lubeca, que teriam negociado uma suposta propina de 200
mil dólares. O acusado de negociá-la, para a campanha de Lula, era o então
vice-prefeito de Erundina, o advogado Luiz Eduardo Greenhalgh. No imbróglio
apareceu uma fita, gravada por Eduardo Carnelós, na qual o advogado da Lubeca,
José Firmo Ferraz Filho, dizia que Lula sabia da propina. No diálogo, Carnelós
afirmava não acreditar nas acusações.
Hélio Bicudo e Plínio de Arruda Sampaio, dirigentes petistas, pediram, em nome
de Lula, que Thomaz Bastos entrasse no caso. "Eu sei que o senhor é um
advogado muito caro", disse-lhe Bicudo. O advogado respondeu que aceitava
o caso e não cobraria nada. Brinquei com Thomaz Bastos dizendo que ele deve ter
prescindido da remuneração com lágrimas nos olhos, e ele deu uma das suas raras
gargalhadas.
Qualquer advogado optaria por um processo de calúnia e difamação contra Firmo -
que afinal era o acusador, sem provas, do candidato a presidente. Mas não
Thomaz Bastos. Ele sugeriu, e Lula aprovou, uma queixa-crime contra Carnelós.
Era perder por antecipação, já que Carnelós não cometera nenhum crime. Mas
assim se evitava a disputa com Firmo, potencialmente mais danosa.
Foi com um sorriso plácido que Thomaz Bastos justificou a sua estratégia:
"Tecnicamente, era o necessário. Mas avisei antes: 'Isso aqui está
perdido, mas temos que fazer.'" De fato, Carnelós foi absolvido em todas
as instâncias, e não houve desavença com Firmo.
Ele passou a ser o advogado mais ilustre do e de Lula. Ficaram amigos
durante a campanha de 1989, e mais de uma vez o candidato foi o convidado de honra em festas na cobertura triplex. Alguns de seus bons clientes
compareciam. Se algum pudesse contribuir para a campanha, como de fato
aconteceu, ele fazia a intermediação. "Nunca me envolvi diretamente com
isso", disse. "Mas, se queriam ajudar, eu encaminhava para a área de
finanças."
Foi naquela campanha, antes do segundo turno contra Fernando Collor, que Bastos
ouviu pela primeira vez uma sondagem para compor o ministério: "O Plínio
de Arruda Sampaio e o Zé Dirceu me perguntaram: 'Você quer ser ministro da
Justiça se o Lula ganhar?' 'Quero', eu disse. Topei na hora."
"E u defendo os meus clientes da culpa legal. Julgamentos morais eu deixo
para a majestosa vingança de Deus." A frase, em tradução livre de Márcio
Thomaz Bastos, é de Edward Bennett Williams. Está na biografia do advogado
americano, The Man to See, de Evan Thomas. Williams defendia de mafiosos a presidentes. "I defend my clients
against legal guilt. Moral judgments I leave to the majestic vengeance
of God", repetiu o criminalista, baixinho, se lembrando do original.
Estufou o peito quando perguntei se ele é "o nosso" Williams.
"Não sei se chego a tanto", respondeu.
A frase explica a variadíssima gama de clientes que passaram pela banca da
avenida Liberdade, 65, em dezoito anos de atividade. Um dos mais notórios foi o
senador Antonio Carlos Magalhães - que uma vez reclamou publicamente dos altos
honorários do advogado. Outro foi o bispo Edir Macedo, quando preso, em 1992,
sob a acusação de charlatanismo e arrecadação criminosa de dízimo.
"Quando ele pegou o Edir Macedo, eu esperneei", disse sua filha
Marcela. "Disse: 'Pai, não faça isso.' Ele falou, com a tranquilidade de
sempre: 'E você acha que a Igreja Católica fez o quê durante todos esses anos?'
Eu entendi." Marcela trabalha em marketing e propaganda e faz doutorado em
semiótica. "Ele pega uns casos meio cabeludos", comentou ela,
lembrando-se de outro esperneio, quando o pai defendeu o cacique Paulinho
Paiakan, acusado de estupro. Do temperamento do pai, ela destaca a fleuma. Se
houve exceção, foi no dia em que ele se irritou com um namorado ciumento
demais. "Eu te criei numa democracia e você escolhe a ditadura",
repreendeu-a.
Bastos defendeu acusados de tráfico, corrupção, sonegação fiscal, atentado
violento ao pudor, assassinato, uso de drogas. Recebeu procuração de
empreiteiras, bancos, multinacionais, políticos e empresários de todos os
calibres. Sempre cobrou honorários salgados de quem podia pagar. "Você
sempre cobre caro", ensinou ao sobrinho e sócio José Diogo Bastos Neto.
"Se o cliente ficar assustado, podemos dividir. Se ficar impassível,
podemos conversar." Ele também ouviu do tio, algumas vezes, uma resposta
típica a clientes que falaram coisas como "Não sei como lhe
agradecer". Nessas ocasiões, Thomaz Bastos responde, com um sorriso
conquistador: "Depois que os fenícios inventaram a moeda, esse problema
ficou simples de resolver."
De graça, ou a preço apenas das despesas, ele trabalhou para Lula e o PT, além
de casos de grande repercussão, como o julgamento dos assassinos de Chico
Mendes, no Acre, no qual atuou como assistente da acusação, vitoriosa. No final
de 1992, participou na articulação de juristas pró-impeachment do presidente
Fernando Collor. "Olha o nariz dele ali", disse em sua casa, no Lago
Sul de Brasília, o advogado Marcello Lavenère, presidente da oab naquele
momento. O nariz estava numa grande foto, na parede do escritório caseiro,
mostrando uma passeata contra Collor. Bastos está na sexta fileira.
Entre os imóveis, o predileto do advogado é a casa de praia em Iporanga, no
Guarujá. Há vários anos, sempre em dezembro, ele convida dúzia e meia de bons
amigos - só advogados e desembargadores - para um almoço interminável. A casa,
desenhada por Ruy Ohtake, tem sauna na mata, adega e quatro quartos para
hóspedes. Os encontros tiveram origem numa "confraria dos homens da
lei" da qual fazem parte, entre outros, o presidente da Câmara dos
Deputados Michel Temer, os ministros do Supremo Tribunal Federal, Cezar Peluso
e Eros Grau, e os advogados Antônio Carlos Mendes (conhecido na roda como
"acm do Bem"), Luiz Carlos Aranha e Mário Sérgio Duarte Garcia.
"É impossível ter encrenca com o Márcio: ele é um conciliador, um
político, uma pessoa de coração enorme", disse Fernando Menezes, outro
integrante da confraria, em seu apartamento, mostrando algumas fotos dos
confrades na casa de Iporanga. Algumas ocorrências na casa entraram para o
folclore. Uma conta que Menezes, algumas caipirinhas depois, desceu do carro,
que mal saíra da porta da casa, despedindo-se dos amigos e elogiando a rapidez
da volta para São Paulo. Outra não foi tão engraçada: um carro bateu fortemente
numa lombada, machucando a cabeça do acm do Bem.
"O Márcio é um homem que não tem medo de mostrar que está de bem com
a vida", disse Antônio Carlos Mendes, elogiando a hospitalidade do
anfitrião. Thomaz Bastos contou que Cezar Peluso quase foi ministro do Supremo
Tribunal Federal nos tempos da confraria, durante o segundo mandato de Fernando
Henrique. "Montamos uma estratégia para tentar colocar o Peluso no
Supremo, e resolvemos que primeiro ele deveria ir falar com o Serra, que era o
ministro da Saúde. O Peluso foi. E o Serra disse: 'Mas se o Fernando souber que
o Márcio está apoiando, ele não vai nomear. Tirem o Márcio da lista de
apoio.'" Fernando Henrique soube, e Peluso ficou na espera.
Quando o criminalista engajou-se na quarta campanha de Lula, em 2002, o seu
faturamento mensal estava em torno de 250 mil reais. Com mais os 200 mil que
entravam da carteira imobiliária, e mais as aplicações na Bolsa de Valores (que
faz pessoalmente), ele era um dos advogados mais bem-sucedidos de São
Paulo.
No dia em que Lula ganhou a eleição, Maria Leonor achou estranho que o marido
estivesse em casa. "Você não vai comemorar com eles?", perguntou.
"Não vou", disse. "Ele ficou tímido", relatou ela.
"Não queria que parecesse que estava interessado em alguma coisa. Mas um
dia o Lula encontrou com ele, e brincou: 'Olha lá, Marcito, você vai ficar fora
do balaio.'" Thomaz Bastos não se lembra desse detalhe. Semanas antes da
posse, ele estava na casa da filha, visitando a neta recém-nascida, e o celular
tocou. O presidente queria falar com ele.
Marcaram um almoço no dia seguinte, no restaurante do hotel Blue Tree. Marisa,
a mulher do presidente, participou do almoço, e Gilberto Carvalho ficava
entrando e saindo. "No primeiro prato o Lula já falou: 'Você vai ser o meu
ministro da Justiça. Mas ainda não quero que você comente com ninguém.' Eu
falei: 'Está bom, presidente'", disse o advogado. "Expliquei que não
queria interferência política nas indicações, e ele disse: 'Você tem toda a
liberdade.'"
Das poucas interferências que o ministro teve, uma foi um veto de José Dirceu
ao antropólogo Luiz Eduardo Soares para ocupar a Secretaria Nacional de
Segurança Pública. "Não nomeia que ele vai criar problemas",
disse-lhe Dirceu. Bastos não aceitou o conselho. Não por morrer de amores por
Soares - longe disso -, mas por reconhecer sua experiência no setor. Dirceu não
se importou muito. Continuam amigos.
Aceita a indicação, ele vendeu sua parte no escritório da avenida Liberdade, já
então com dois andares, para os sócios Dora Cavalcanti, Sônia Ráo e Luiz
Fernando Pacheco. Cobrou 5 milhões de reais, parcelados em curto prazo.
"Ele não teve dó, não", contou Pacheco. Bastos levou dois dias
assinando o que estimou em mil termos de desistência dos processos em que
atuava. Para evitar eventuais conflitos de interesse, passou sua fortuna para a
administração do Unibanco, sob o regime de fundo blindado, em que o banco é
autônomo para tomar decisões.
"O Larry Rother estragou a minha festa na Suíça", disse o
ex-ministro, ocupando um dos oito lugares da mesa, desenhada por Ruy Ohtake, de
sua sala de reuniões. A má notícia de que o presidente Lula queria expulsar do
Brasil o correspondente do New York Times - que escrevera que ele bebia demais
- chegou a ele, pelo telefone, na voz do ministro Luiz Gushiken. Lula ligou
pouco depois, em Berna. "Ele estava puto", contou. "E eu disse
que ia tentar negociar uma saída."
Como o advogado do New York Times, Celso Mori, frequentara a confraria dos
homens da lei, Thomaz Bastos ligou para ele. Surgiu a ideia de uma carta de
retratação de Larry Rother. "Naquele fuso horário do cão, as minutas iam e
vinham, por fax ou e-mail", disse o ex-ministro. "O Mori mandava, eu
mexia, mandava de volta, e assim foi, naquela tensão. De volta ao Brasil, no
aeroporto, eu já tinha uma última versão da carta, aceitável. Mandei para o
presidente. E liguei para ele de São Paulo, para saber a resposta. Ele disse
que não ia aceitar a minuta. 'Eu não gostei da carta', falou." Disciplinado,
o ministro aceitou a decisão do presidente, mas a considerou errada.
Para desanuviar, convidou Cezar Peluso - agora finalmente ministro do STF, com
a sua unção - para almoçar no restaurante do hotel Cad'Oro, onde a confraria se
reunia. O presidente ligou novamente. "Marcito, pensei bem e vou aceitar a
carta", disse-lhe. Quem fez Lula mudar de ideia sobre a retratação de
Rother foi o publicitário Duda Mendonça. Ele fez uma leitura dramática da
carta, enfatizando a mais não poder as frases de retratação. (Em outubro de
2004, Mendonça foi preso numa rinha de galos. Seu primeiro telefonema foi para
Thomaz Bastos.)
Fora o caso Rother, Thomaz Bastos é econômico (ou simplesmente emudece) nos
comentários sobre crises do primeiro governo Lula. O mensalão e a queda do
ministro José Dirceu? "Não tive papel de grande relevo", respondeu.
Mas foi seu amigo Arnaldo Malheiros quem defendeu Delúbio Soares,
acompanhando-o até na CPI. Quebra do sigilo do caseiro Francenildo dos Santos
Costa e saída do ministro Palocci? "Isso já foi muito explorado."
Thomaz Bastos estava em Rondônia quando o sigilo do caseiro foi quebrado, mas
foi ele quem levou Arnaldo Malheiros a uma reunião na casa de Palocci quando
voltou a Brasília.
No episódio, o ministro foi criticado por um dos seus grandes amigos, o jurista
Miguel Reale Jr. "Todos os fatos levam a crer que a alma do advogado
prevaleceu sobre a alma do ministro Márcio Thomaz Bastos", disse Reale Jr.
numa entrevista. Bastos, que defendeu a lisura da reunião, nunca o perdoou. Por
outro lado, até hoje há ruído na sua relação com Palocci. O que não impediu que
Thomaz Bastos tivesse acesso à sua defesa no Supremo duas semanas antes do
julgamento que o inocentou. Palocci foi ao escritório levar o cartapácio do
advogado José Roberto Batochio, seu defensor, o único que não é do time de
Bastos a atuar em defesa de ex-integrantes do governo. "Nem eu faria
melhor", disse ele a Palocci.
Em maio de 2006, a
revista Veja noticiou que o banqueiro Daniel Dantas tinha uma lista de contas
bancárias em paraísos fiscais do presidente Lula e de outros integrantes da
cúpula do governo, entre eles o ministro da Justiça. Todos desmentiram,
inclusive Thomaz Bastos. Dias depois da publicação da reportagem, o ministro
teve um jantar com Daniel Dantas, na casa do senador Heráclito Fortes, aliado
do banqueiro, para o qual levou os advogados e deputados petistas Sigmaringa
Seixas e José Eduardo Cardozo. O ministro disse que foi Daniel Dantas quem
organizou o jantar. Já o banqueiro falou que foi Thomaz Bastos quem tomou a
iniciativa de marcar o encontro.
O grupo jantou na varanda da casa de Heráclito. No bate-papo inicial, Thomaz
Bastos comentou os ataques, na véspera, do Primeiro Comando da Capital, o pcc.
E disse que o governo não negociaria com os chefes do bando que estavam presos,
para não correr o risco de ficar refém de criminosos. Daniel Dantas entendeu
que a afirmação era uma referência indireta às supostas contas ilegais nos
exterior - ou seja, o governo não negociaria nada com o banqueiro - e
imediatamente concordou com o raciocínio, até mesmo porque não tinha certeza da
existência das tais contas. E entregou uma carta ao ministro negando ter sido
ele quem entregou o dossiê à revista.
Thomaz Bastos disse, no Parigi, que jamais pensou em negociar o quer que fosse
com Dantas. E disse ao banqueiro que o governo acreditava que fora ele, sim, a
fonte da revista. No mais, na lembrança de Bastos, "a comida estava cheia
de alho e cebola, tinha todo o jeito de ter sido encomendada num restaurante, e
o vinho era ruim".
O advogado contraiu o semblante ao ouvir, na sala onde guarda sua coleção de
miniaturas de advogados, que ele poderá entrar para a história como um ministro
da Justiça que foi principalmente defensor do presidente Lula. Mas, se
esforçando por parecer indiferente, disse: "Daqui a cinquenta, 100 anos,
vou entrar para a história como o ministro que fez a reforma do Poder
Judiciário e uma revolução na Polícia Federal." Cinquenta anos é o prazo
que deu para a abertura do diário que escreveu quando era ministro. O relato,
segundo ele, compromete alguns amigos.
O escritório do advogado Luiz Olavo Baptista ocupa dois andares de um prédio da
avenida Paulista. Numa tarde fria, ele vestia calça de veludo e uma malha sobre
a camisa xadrez verde e branca. Baptista, que tem 71 anos e 45 de carreira,
defendeu presos políticos durante o regime militar. Em junho de 2005, policiais
federais chegaram ao seu escritório às seis horas da manhã. Tinham um mandado
judicial de busca e apreensão - e o cumpriram com grande estrépito. Baptista
estava em Paris, de férias. "Quando me avisaram da invasão, tive a
sensação de ter voltado aos tempos da ditadura", contou, emocionado.
Observei que, tecnicamente, não fora uma invasão, mas o cumprimento de um
mandado judicial. "Chamar puta de hetaira não vai mudar as coisas",
respondeu Baptista, sério. "A responsabilidade pela invasão foi do
ministro Thomaz Bastos".
Os advogados ficaram em pé de guerra, o que foi um problema para o seu sobrinho
José Diogo Bastos, que era o presidente da associação da categoria. Durante uma
reunião na oab, que exigia o fim das chamadas "invasões", foi
apresentada uma moção para a retirada do retrato de Thomaz Bastos da galeria
dos presidentes da entidade. O sobrinho ligou na hora para o ministro-tio e lhe
relatou a situação. Ouviu de volta um "Puta que o pariu!" não muito
frequente, e bateu-se em sua defesa num discurso candente. "O importante é
que não tiraram o retrato", disse-me o ministro.
Dias depois da assembleia, Thomaz Bastos assinou portarias que pretenderam
coibir o exibicionismo da Polícia Federal. Houve colegas que o perdoaram, como
Jorge Eduardo Prada Levy, cujo escritório também foi revistado. E houve quem
não o perdoasse, caso de Luiz Olavo Baptista e Zulaiê Cobra Ribeiro.
"Aquilo foi um absurdo, e a responsabilidade foi do Márcio", disse a
advogada.
"Eu sabia que reestruturar a Polícia Federal implicava riscos", disse
o ex-ministro na sala onde guarda, entre outras condecorações, um diploma de
agradecimento do Sindicato dos Delegados da pf de São Paulo. "Sei que
houve excessos e abusos, que procurei coibir. Mas entendo a mágoa do Luiz Olavo
Baptista."
Cruzeiro se beneficiou com a passagem do filho ilustre pelo Ministério da
Justiça. Lá ele instalou uma sede da Polícia Federal, que foi inaugurar pessoalmente
em setembro de 2005, apesar de a região ter quatro municípios bem maiores -
Taubaté, Pindamonhangaba, Jacareí e Guaratinguetá. A sede da pf fica em um
prédio de dois andares, pintado de preto e azul, no qual trabalham três
delegados, dois escrivães e vinte agentes. "Temos 600 inquéritos
tramitando aqui", informou o delegado Dércio José Carvalheda Jr. "A
maioria é por sonegação fiscal." Acha que a cidade merecia ter a sede,
quando outras maiores não têm? "Aí eu não sei, só se eu tivesse a visão macro
que um ministro deve ter", respondeu o delegado.
O ministro também influiu para levar a Cruzeiro uma sede da Justiça Federal.
Pediu a gentileza à desembargadora Diva Malerbi, sua amiga, quando ela era
presidente do Tribunal Regional Federal da 3ª Região. Foi ela quem criou o
Juizado Especial Federal Cível de Cruzeiro, em dezembro de 2006, também
inaugurado por Thomaz Bastos.
Um ano e um mês depois - quando ele não era mais ministro - a desembargadora
Marli Ferreira, nova presidente do tribunal da 3ª Região, mandou fechá-lo. Ali
transitavam, na ocasião, 3 600 processos. Hoje, funciona uma distribuidora de
pescados.
"O ministro Márcio realmente me pediu para pensar a respeito",
contou a desembargadora Diva Malerbi. "Eu pensei, mandei pesquisar, vi que
ia beneficiar 27 municípios, com um total de 1 milhão de habitantes, e
preencheria os claros do atendimento da Justiça a esse povo tão
precisado." Neste momento, a desembargadora emocionou-se. Foi às lágrimas,
e aos lenços de papel, quando lhe perguntei por que sua sucessora mandou
fechá-lo. "Foi uma desumanidade, mas isso eu não posso lhe dizer",
respondeu.
A desembargadora Marli Vieira não quis dar entrevista. Mas mandou a nota
técnica que embasou sua decisão. Ela tem dois pontos: custo elevado de manutenção
de uma estrutura jurisdicional não prevista por lei e inexpressiva demanda
judicial local devido à dificuldade de acesso dos jurisdicionados das cidades
do entorno. Diz, ainda, que a manutenção do órgão acarretou "o dispêndio
de recursos públicos diretamente contrários aos princípios constitucionais
orçamentários da legalidade, legitimidade e economicidade". Em visita que
fez à cidade depois de ter deixado o Ministério, Bastos reclamou publicamente
do fechamento do Juizado Federal de Cruzeiro.
Às dez da manhã de uma segunda-feira, o ministro Carlos Ayres Britto, do
Supremo Tribunal Federal, estava em seu apartamento funcional, em Brasília.
Vestia blazer sem gravata, e não disfarçava a cara de sono. Fora dormir às
cinco e meia da manhã, quando terminou de escrever um artigo jurídico.
"Nós, os poetas, tocamos na palavra como quem toca na realidade",
disse, no sofá de sua sala de visitas. Britto, sergipano, é poeta com cinco
livros publicados. O último tem o título de Varal de Borboletras - ele é um
craque em trocadilhos. "O Brasil ainda não chegou na idade da ração",
lê-se, por exemplo, no Varal, além de achados como "Que danosa
persistência: a influência do tráfico e o tráfico de influência".
Foi Thomaz Bastos que fez Ayres Britto ministro do Supremo - um dos sete que
avalizou, dos onze que hoje integram a Cote. Conheceram-se na oab, quando
Bastos era presidente. Indicou Britto, como conselheiro, para uma Comissão de
Estudos Institucionais que abastecia a discussão constituinte. Reencontraram-se quando Bastos virou ministro.
"Ele me chamou no gabinete para dizer que eu me preparasse
psicologicamente para a possibilidade de ser indicado a ministro do
Supremo", contou Britto. As palavras do ministro da Justiça, na sua
memória, foram: "Carlinhos, o Celso Antunes, o Fábio Comparato e outros
intelectuais estão patrocinando sua candidatura a ministro do Supremo. O
difícil é saber quem gosta mais de você: se o presidente da República ou o
ministro da Justiça."
"A coisa tem futuro", achou Britto. Era abril de 2003. Em junho, o
presidente Lula o indicou. "Eu e o Márcio somos democratas sociais, irmãos
de ideias e de ação", disse o autor de DNAlma, o provável título de seu
próximo livro.
Ambos os ministros - um do Executivo, outro do Judiciário - amiudaram a relação
na convivência brasiliense. "Nós passamos a tomar os nossos vinhos em
alguns jantares", disse Ayres Britto. "Ele cuida do físico, e eu
também. Não como carne, nem peixe, nem frango. Teve olho, eu não como. O Márcio
sempre me perguntava: 'Carlinhos, e essa sua calma, esse seu modo zen de ser?'
Eu respondia: 'Márcio, eu faço meditação oriental há dezessete anos.'" E
foi assim que o ministro da Justiça aprendeu meditação, como também me contou.
"Expliquei a posição budista de lótus, a ficar ereto, numa postura de
atenção, olhos fechados como quem está acordado, e de relaxamento como quem
está dormindo, atento, mas não tenso. Aos poucos você vai percebendo que o seu
papel é observar o que vai passando na passarela da sua mente", explicou
Ayres Britto. Thomaz Bastos não chegou a todo esse entusiasmo. Experimentou por
uns tempos, se animou mais quando Britto acrescentou que os exercícios eram
vasodilatadores, mas, pragmático como um fármaco de ação instantânea, nunca
passou de um simpatizante.
Thomaz Bastos não tem mais idade para ser ministro do Supremo. E disse que não
gostaria de ter sido: "Não tenho vocação de juiz. Eu nunca ia ser um bom
juiz. Eu sou parcial. Eu escolho lado. Não tenho aquela distância dos
fatos."
Eros Grau, outro juiz do Supremo, ficou amigo de Thomaz Bastos nos anos 60,
quando trabalhavam para a Companhia de Melhoramentos de Paraibuna. Em novembro
de 2002, hospedaram-se no mesmo hotel, em Salvador, durante uma conferência da
oab. Já escolhido ministro, Bastos o chamou ao apartamento que ocupava e lhe
disse: "Haverá três vagas no STF e o seu nome está na cabeça do presidente
da República." Eros Grau pediu para não ser indicado naquele ano - quando
acabou entrando Cezar Peluso, que Fernando Henrique não indicara.
Na Semana Santa de 2004, Grau descansava em Tiradentes, em Minas, e o ministro
da Justiça ligou. "Você é o novo ministro do STF, mas ainda não conta para
ninguém", disse. O novo juiz tomou posse em junho. "Tive dificuldades
de me acostumar com as formalidades", contou. Exemplo foi a visita que lhe
fez um velho amigo de mesa de bar. "Excelência!", saudou-o, quando
Eros Grau o recebeu no gabinete do STF. "Excelência é a puta que o
pariu!", respondeu.
"O Márcio é um cara agudo e sereno", disse Grau. "É um sujeito
capaz de equacionar todos os dados de um problema. Ele fez isso para o
presidente da República. Foi ao mesmo tempo ministro, advogado e conselheiro.
Conseguiu ser as três coisas, quando uma coisa normalmente anula a outra."
Cármem Lúcia Antunes Rocha foi convidada, no início de 2006, para um almoço em
Belo Horizonte com o ministro da Justiça, que fez algumas perguntas, mas não
falou nada de concreto. "Ele é discreto como os mineiros, até o silêncio
dele fala", disse a ministra em sua mesa de trabalho. Cármen Lúcia entendeu
que era uma sondagem, mas também ficou calada. Num telefonema posterior, o
ministro disse que havia uma cogitação sobre o nome dela. Em maio, avisou-lhe
que seria indicada juíza do STF. "Ele e o presidente Lula me ofereceram
uma oportunidade única, pela qual eu sempre vou ser grata", afirmou.
"Gostei demais de ser ministro, mas estava na hora de sair", disse
Márcio Thomaz Bastos sobre sua saída do governo, em março de 2007, no começo do
segundo mandato de Lula. O presidente pediu que ele ficasse, até insistiu, mas
ele não quis. "Fui para fazer uma coisa que sabia o que era - a reforma do
Judiciário, por exemplo. E voltei para fazer o que eu gosto. Estou muito mais
alegre agora do que eu estava quando era ministro."
Quando vai a Brasília a trabalho, o ex-ministro passa no Planalto para um
abraço em Gilberto Carvalho, na ministra Dilma e, quando possível, no
presidente. Ligou poucas vezes para falar com ele. Acha mais adequado que o
presidente telefone, na eventualidade de querer lhe falar. Se foi chamado para
alguma questão relevante, Thomaz Bastos não conta. Também não comenta a atuação
do seu sucessor, Tarso Genro, mas não esconde que não foi ele quem o indicou.
Já com Dilma conversa com frequência. Levou-a para jantar no Vecchio Torino,
outro restaurante nas imediações da Faria Lima.
Como influi na indicação de oito ministros do STF - incluindo o falecido Carlos
Alberto Menezes Direito* - e de vários do Superior Tribunal de Justiça - , sem
contar seu prestígio, sem contar seu prestígio em setores da Polícia Federal,
ele resolveu não advogar durante alguns meses. "A quarentena não era
obrigatória, mas eu me impus isso", falou. O plano era passar uma
temporada na Europa. Embarcaria em maio de 2007.
Bastos é hipocondríaco. Não dos que vivem tomando remédios, mas dos que não
perdem oportunidade de fazer exames médicos. "Faço toque de próstata desde
1990, sem maiores traumas e sem maiores atrações", disse. Antes da viagem
à Europa, fez um check-up. No dia 24 de abril, ao conferir o resultado de uma
radiografia, leu: "Concavidade espessa de 3 centímetros no
lóbulo superior esquerdo." Assustou-se. "Eu já estava me sentindo
fodido", contou.
Uma tomografia confirmou a suspeita: tumor no pulmão. No começo de maio, uma
biópsia feita por Isidio Calich completou o diagnóstico. "Deu maligno e
você vai ter que operar", disse-lhe o médico. "Mas as células são
grandes e a chance de metástase é pequena." O oncologista Riad Yunes, do
Hospital Sírio-Libanês, optou por uma ablação total do lado atingido do pulmão,
o esquerdo.
Yunes fez a cirurgia no dia 9 de maio. Foram quatro dias de hospital, um deles
na terapia intensiva. "O tumor saiu inteiro, a sorte foi o check-up",
disse o ex-ministro. Ele não aceitou a opinião médica de que a quimioterapia
não era necessária. "Vou fazer assim mesmo", disse para Malheiros
Filho. "Márcio, o médico disse que não é preciso!", retrucou o amigo.
"Se bem não fizer, mal não vai fazer", decidiu. A quimio foi feita
sob os cuidados de Drauzio Varella.
Retomou a advocacia no final de 2007. Poderia ter voltado à velha turma da
avenida Liberdade, 65, mas achou que seus mais de quatro anos de ausência
mudaram hábitos e métodos no escritório. Optou por um sistema diferente:
advocacia com parcerias. "Pego os casos e trabalho com alguns escritórios",
explicou. Entre os seus parceiros estão Dora Cavalcanti, Sônia Ráo & Luiz
Fernando Pacheco e Arnaldo Malheiros Filho.
O ex-ministro sempre emposta a voz ao atender o telefone. Mesmo um simples
"Alô" sai com ponto de exclamação. Sendo um "Ministro!",
nem se fala. Foi assim, numa tarde de setembro, quando atendeu uma ligação do
advogado-geral da União, José Antonio Dias Toffoli. Ele mencionara o nome de
Toffoli no início do mês. Bastos abriu com cuidado a porta da sala em que seu
sobrinho José Diogo me dava uma entrevista, e perguntou: "Vocês viram que
o Direito morreu?", referindo-se ao ministro do Supremo Carlos Alberto
Menezes Direito, que falecera naquela madrugada. Quem será o substituto?,
perguntei. "O Toffoli", respondeu sem hesitar. Agora, passados uns
dias, era Toffoli quem ligava.
"Ministro!!!", saudou-o Thomaz Bastos. "Agora é força total.
Pode deixar que eu vou cuidar. Qualquer avanço você me liga, está bom? Abração,
querido." Minutos depois, nova ligação de Toffoli. O ex-ministro ouviu e
só falou no final: "Tudo bem. Eu vou falar com o nosso baixinho." É
como ele se refere a Gilberto Carvalho. Toffoli foi nomeado ministro semanas
depois.
O carioca Luis Felipe Salomão, de 46 anos, é o ministro mais novo do Superior
Tribunal de Justiça. Quando tinha 23, em 1986, foi transferido para Cruzeiro,
onde foi promotor. Thomaz Bastos não morava mais lá há décadas, mas foi
advogado de um médico local que Salomão indiciara em inquérito por suposto erro
durante um parto. O médico foi preso. "Você é um bom promotor, tem muito
futuro, mas nesse caso específico, tomado pela paixão, está cometendo um
erro", disse-lhe o advogado no intervalo de uma audiência. Thomaz Bastos
conseguiu a soltura e a absolvição do médico.
Reencontraram-se muito tempo depois, quando Thomaz Bastos era ministro da
Justiça e Salomão, já desembargador, presidia a Associação dos Magistrados do
Rio de Janeiro. "O senhor se lembra de um rapaz que era promotor em
Cruzeiro?", perguntou Salomão. "É claro que lembro de você,
Salomão", respondeu o ministro.
O ministro deixou de ser ministro, o desembargador continuou desembargador e,
no ano passado, Salomão entrou na lista quádrupla dos que poderiam ser
indicados para o Superior Tribunal de Justiça, a critério do presidente Lula.
Salomão foi ao escritório da Faria Lima. "Estou na lista e queria o seu
apoio", disse. "Vou falar com o presidente", prometeu o
ex-ministro da Justiça.
No começo de junho, Bastos ligou de volta. "Já dei meu depoimento a seu
favor, está tudo bem encaminhado", disse-lhe. Três dias depois, Salomão
foi nomeado ministro do STJ. Voltou à Faria Lima, para agradecer, e lhe deu de
presente uma gravata azul-clara da Elle et Lui (no valor
de 85 reais, das mais baratas da coleção de Thomaz Bastos). "Fiz o que
achei melhor para o país e para o Tribunal", respondeu o criminalista ao
desembargador.
Salomão depois homenageou o ex-ministro com um jantar. "O vinho tem que
ser bom", brincou Thomaz Bastos ao ser convidado. O escolhido foi o
argentino Catena Zapata. Tomaram algumas garrafas, comeram um cordeiro de
forno, e o advogado, um divertido contador de histórias, foi o centro das
atenções. Usava a gravata azul-clara.
É no escritório da Faria Lima que Thomaz Bastos tem passado boa parte de seu
tempo - advogando como nunca, prestando consultoria e cobrando, assumidamente,
honorários superiores aos de qualquer outra banca criminalista. Para a
construtora Camargo Corrêa, que tem diretores e funcionários como alvos de
inquérito na Polícia Federal - na Operação Castelo de Areia -, ele cobrou 15
milhões de reais, um recorde. A empreiteira aceitou e se comprometeu a pagá-los
no período de um ano. A cifra não inclui os honorários dos escritórios que o
próprio Thomaz Bastos escolheu para atuar na causa: Malheiros Filho, Celso
Vilardi, Dora Cavalcanti, Luiz Fernando Pacheco e Sônia Ráo. Cada um deles
levará, em média, 1,5 milhão de reais.
No final de novembro, o repórter Fausto Macedo publicou, n'O Estado de S.
Paulo, que a investigação da Polícia Federal sobre a Camargo Corrêa indicava
pagamentos da empreiteira a políticos e administradores públicos. Entre 1995 e
1998, os pagamentos chegaram a 178 milhões de reais, em valores da época. Um
dos beneficiados, segundo o Estadão, foi o deputado Michel Temer. Hoje
presidente da Câmara dos Deputados, ele teria recebido quase 300 mil dólares.
Temer não quis me dar entrevista.
O caso Camargo Corrêa provocou um dos raros atritos do ex-ministro. Ele se deu
com outro totem da advocacia criminal paulista - Antônio Cláudio Mariz de
Oliveira, afamado pelo pavio curto, que ganhou até neologismo nos meios
jurídicos: as "marizadas". Eles eram bons colegas desde tempos
imemoriais e Bastos, ministro, o nomeou para a presidência do Conselho Nacional
de Política Criminal e Penitenciária, cargo não remunerado. Mariz o exerceu sem
uma única trombada com o ministro.
Advogado criminal da Camargo Corrêa desde os anos 90, Mariz assumiu o caso
Castelo de Areia. Entrou com habeas corpus para soltar os diretores presos e
fez reuniões com os soltos, que viviam em pânico. Um deles, engenheiro, lhe
disse numa reunião na sede da empresa: "Doutor Mariz, eu acordo às sete da
manhã, faço a barba, tomo café, ponho o terno e fico aguardando a polícia
chegar." Até com duas das herdeiras de Sebastião Camargo ele esteve,
acalmando-as e orientando sobre o que fazer. Pediu 1,8 milhão de honorários.
Mas ocorre que Carlos Pires, o presidente da Camargo Corrêa, é amigo de Márcio
Thomaz Bastos, que o chama de Caco. Foi ele quem contratou o ex-ministro para
entrar no caso e avisou Mariz que trabalhariam juntos. Mariz concordou.
Em junho passado, quando os diretores da empresa foram denunciados pelo
Ministério Público, Carlos Pires, Thomaz Bastos e Mariz combinaram um almoço,
no restaurante Freddy, para definirem uma estratégia. A conversa tratou da
necessidade de novos advogados, já que os réus eram sete. Pires citou os nomes
que já estavam escolhidos: Arnaldo Malheiros Filho, Celso Vilardi e Sônia Ráo.
Todos ligados ao ex-ministro. Mariz abespinhou-se e perguntou a Pires de que
cartola ele tirara aqueles nomes. O empresário enrolou-se. "Ora, é
evidente que quem indicou foi o Márcio, não foi Márcio?", perguntou ele ao
amigo. "Não fui eu, não", respondeu Thomaz Bastos com veemência.
Aborrecido, Mariz disse que estava fora do caso - e efetivamente saiu.
Findo o almoço, Mariz deu carona para Thomaz Bastos. Reiterou sua contrariedade
por terem vindo com a lista pronta de novos advogados, e o ex-ministro
continuou negando responsabilidade pela indicação dos nomes. No dia seguinte,
Thomaz Bastos ligou para Mariz e perguntou se queria que ele saísse do caso.
Mariz disse que não.
"Achei que o Márcio me desconsiderou, e fiquei realmente magoado",
disse no seu escritório, onde as balas e os chocolates têm invólucro
personalizado. "Houve uma descortesia, e ele sabe." Thomaz Bastos não
quis se estender sobre o caso. Mas disse: "O único sujeito que vai falar
mal de mim é o Mariz. Nós fomos grandes amigos, mas tivemos um mal-estar, e ele
acabou saindo da causa." Os 15 milhões de reais que o ex-ministro está
ganhando da empreiteira são mais do que o dobro do faturamento do escritório de
Mariz no ano passado.
Desde que reabriu a banca, o ex-ministro conseguiu quase cinquenta novos
clientes. Entre eles estão o empresário Eike Batista, a dona de lojas de luxo
Tania Bulhões, a Federação Brasileira de Bancos (num proveitoso desvio cível,
em parceria com o advogado Ives Gandra Martins) e a advogada Carla Cepollina,
denunciada pelo assassinato do coronel Ubiratan Guimarães. Defende Cepollina
gratuitamente, pelo desafio e pelo potencial de repercussão do caso.
Um dos novos clientes fez Marcela Bastos dar outro esperneio - o do médico
Roger Abdelmassih, denunciado e preso por estupro e abuso sexual de dezenas de
pacientes. "Senti um friozinho na barriga quando soube", disse a
filha do ex-ministro. O caso já tinha dono. Era José Luis Oliveira Lima, de 43
anos. No seu escritório, no Edifício Itália, Oliveira Lima, que os amigos
chamam de Juca, tem fotos de um cliente famoso abraçando seus filhos, o
ex-ministro José Dirceu.
Thomaz Bastos telefonou para Oliveira Lima, em setembro, e disse: "Juca,
querido, fui convidado para entrar no caso do Roger. Você se importa?"
"Imagina, dr. Márcio, é uma honra", respondeu o colega. O ex-ministro
entendeu que Oliveira Lima não gostou. Passaram a trabalhar juntos para tirar
Abdelmassih da cadeia. Não conseguiram, e o caso subiu para o Supremo Tribunal
Federal.
Na sala de onde contempla as musas esculturais da Faria Lima, Márcio Thomaz
Bastos tem, num cabideiro, duas becas. Uma ele comprou em Paris, por 500 euros,
e nunca usou. A outra, surrada, é a de estimação. Para um supersticioso como
ele - não pode ouvir a palavra azar que bate na madeira -, a velha beca lhe dá
sorte. Uma vez, a esqueceu antes de um júri e Luiz Fernando Pacheco teve que ir
buscá-la, na avenida Liberdade 65. Thomaz Bastos lhe disse que queria ser
enterrado com a beca velha. É a tradução indumentária de uma de suas frases:
"Eu fui ministro quatro anos e uns meses, e advogado por 45 anos. O que eu
sou mesmo é advogado."
* Alteração em relação à versão impressa.
Disponível em: (http://revistapiaui.estadao.com.br/edicao-39/vultos-da-republica/pao-e-gloria). Acesso em: 20/nov/2014.
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