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06/06/2014;
Delitos Tributários e Criminologia: um Estudo da Extinção Punitiva pelo Pagamento da Dívida Fiscal
06/06/2014;
Autor: BUONICORE, Bruno Tadeu
RESUMO:
O presente estudo tem o escopo de analisar a extinção da punibilidade
pelo pagamento do tributo nos delitos fiscais. Essa análise propõe
realizar-se por meio de uma perspectiva criminológica, sustentando
sempre uma posição crítica em face das decisões de política criminal.
Acredita-se que análises criminológicas do universo da delinquência
econômica são escassas e que este estudo pode auxiliar na compreensão
dos mecanismos de seleção criminal, presentes no sistema punitivo
contemporâneo. A existência de mecanismos seletivos refinados, como a
extinção punitiva nos crimes tributários, aponta para a presença de
outras forças e interesses que transcendem a lógica materialista. Essas
outras variáveis parecem contribuir para uma leitura mais adequada do
fenômeno seletivo. É por meio do arcabouço teórico representado pelos
avanços da Criminologia Contemporânea que se pretende trabalhar o objeto
proposto.
PALAVRAS-CHAVE: Criminalidade Econômica. Direito Penal Tributário. Criminologia. Extinção Punitiva pelo Pagamento.
1 Introdução
A
sociedade pós-moderna, ou contemporânea, é marcada por profundas
mudanças estruturais que alteraram, de forma importante, toda
configuração das relações humanas. Essas mudanças têm provocado
movimentos em todas as áreas de conhecimento, no direito não é
diferente, e a emergência de novas relações sociais provoca a
efervescência no mundo jurídico. Tema que tem movimentado os debates na
dogmática penal atualmente é a questão da legitimidade de tutela em bens
jurídicos difusos. Diálogos, tanto no Brasil, na América Latina, como
no Velho Mundo, têm cuidado de problematizar se o direito penal deve
ater-se a comportamentos que, em searas, como a econômica, a ambiental e
a genética, causam danos a bens jurídicos difusos ou supraindividuais,
de difícil demonstração empírica no que diz respeito ao nexo de
causalidade entre a conduta e o dano.
Dentro desse
panorama de tutela de interesses difusos está a tutela penal da ordem
econômica e nesta se encontra a tutela penal da ordem tributária que, no
Brasil, hoje, se instrumentaliza pela Lei nº 8.137/90. Nesse ponto,
posicionamentos, quanto à constitucionalidade e à legitimidade do
direito penal tributário, têm sido defendidos com energia, surgindo,
assim, diversas controvérsias em relação aos institutos que integram
esse ramo jurídico. Entre os institutos do direito penal tributário que
causam dissenso, o presente estudo delimitou como objeto a extinção da
punibilidade, mediante o pagamento do tributo, prevista nos delitos
fiscais. Esse fenômeno tem provocado, na última década, além de uma
enorme confusão legislativa e jurisprudencial, um intenso debate na
seara acadêmica, sobretudo no âmbito penal.
Percebe-se,
no entanto, que tem prevalecido nesse debate, assim como, de um modo
geral, em todo debate que envolve a tutela penal supraindividual, uma
perspectiva predominantemente legal e dogmática. Por essa razão,
entende-se que carecem compreensões que levem em conta a complexidade
das estruturas sociais que circundam o sistema jurídico e envolvem o
fenômeno punitivo. Desse modo, a presente pesquisa indaga a
possibilidade de construir, ao lado do ponto de observação legal e
dogmático, uma perspectiva de análise criminológica dos delitos
econômicos, especialmente do instituto da extinção da punibilidade, por
meio do pagamento do tributo, nos crimes tributários (1).
O
presente artigo propõe desenvolver-se no sentido de, primeiramente,
contextualizar o leitor dentro do universo do direito penal econômico e
do direito penal tributário, se aproximando, em seguida, do instituto da
extinção punitiva, pelo pagamento, nos delitos fiscais. Busca-se, dessa
maneira, a delimitação do objeto a ser analisado. Após explicitar as
mais relevantes noções normativas e jurisprudenciais desse instituto,
procura-se sustentar e justificar a possibilidade de contribuição que um
estudo criminológico pode oferecer ao tema. O artigo pretende, então,
esboçar a construção de uma análise criminológica da extinção punitiva,
pelo pagamento, nos crimes tributários. Objetiva-se, nesse ponto,
indicar como a análise desse instituto, sob a óptica de uma corrente
criminológica sofisticada, pode contribuir para um entendimento
particular sobre a lógica do sistema penal, contextualizada na realidade
do espaço social que a envolve.
2 A Tutela Penal da Ordem Econômica e o Direito Penal Tributário
2.1 O Direito Penal Econômico, a sua Natureza e o seu Surgimento
O
surgimento da ciência econômica moderna ocorreu, segundo consenso
doutrinário, em 1776, com a publicação da obra A Riqueza das Nações, de
Adam Smith. Esse momento marca a transição definitiva da economia feudal
para a econômica capitalista. Smith sustenta as bases de uma economia
liberal, nas quais os movimentos que constroem o mercado se dariam de
forma espontânea. Para esse autor, a indústria e o comércio deveriam ser
totalmente livres, sem qualquer interferência estatal, guiados apenas
pelo que chamou de "mão invisível" (2).
Em
que pese a importância histórica do surgimento do Estado Liberal para o
desenvolvimento da economia, esse modelo passou a sofrer sérias críticas
a partir do século XIX. Os modos de produção, inerentes ao processo de
industrialização, trouxeram desdobramentos sociais importantes, como a
concentração de capital e as péssimas condições de vida dos
trabalhadores. Essas consequências, produzidas pela industrialização,
geraram uma série de movimentos e revoltas que ficaram conhecidas como
reações socialistas (3).
Pode-se dizer que
esse movimento, contrário à lógica liberal, teve início com as ideias de
Stuart Mill e atingiu seu ápice em obras extremamente elaboradas, como a
de Karl Marx. Em face desse contexto social de inquietação e
descontentamento, as reações socialistas adquiririam grande projeção e
acabaram por desestabilizar as bases ideológicas do Estado Liberal.
Houve uma forte pressão no sentido de o Estado sair de sua posição
inerte e passar a intervir na livre-iniciativa do mercado, promovendo a
igualdade material e protegendo os hipossuficientes.
É
somente nesse momento, quando o Estado começa a intervir nas atividades
econômicas, que surge o direito econômico moderno como disciplina
autônoma. Existem vários marcos históricos para esse ponto de transição e
ruptura com o Estado Liberal, entre eles: a Primeira Guerra Mundial, a
quebra da bolsa de Nova York, em 1929, e a Segunda Grande Guerra.
Elementos, como as novas relações entre capital e trabalho, a revolução
dos meios de transporte e produção, a complexidade dos mercados
financeiros, entre outros, contribuíram, também, para o desenvolvimento
da economia dirigida. A crise do modelo Liberal, que envolve todo esse
momento histórico, leva o Estado a rever a sua postura passiva frente ao
sistema econômico, e, diante disso, surge o dirigismo econômico (4).
Seguindo
essas transições históricas, a "mão invisível" do modelo Liberal é
sucedida pela interferência do Estado e é por meio do direito econômico,
de normas reguladoras de direitos e deveres no âmbito da economia, que o
Estado vai intervir. Nessa intervenção, o Estado busca equacionar os
interesses individuais liberais com os interesses públicos do novo
modelo. Desse modo, o surgimento do direito econômico é, por
conseguinte, o instrumento pelo qual o Estado vai romper com o dogma
liberal da autorregulação (5).
Nas palavras
de Martos Nuñez, "o direito econômico é o conjunto de normas jurídicas
que instituem, modificam, proíbem ou restringem atividades econômicas
dos particulares em favor do interesse geral da sociedade" (6), sendo que o núcleo desse direito está na regulação da ordem econômica. A ordem econômica, compreendida em um sentido amplo (7),
é o conjunto de normas que institucionaliza e regula as relações
econômicas em um determinado ordenamento, englobando o sistema
financeiro, o sistema cambial, o sistema de proteção aos consumidores e a
ordem tributária.
Após serem esclarecidas a
natureza jurídica e histórica do direito econômico, segue-se com a
conceituação do direito penal econômico. Ambos os ramos jurídicos têm em
comum o mesmo objeto de tutela, a ordem econômica, enquanto bem
jurídico coletivo. No entanto, o direito penal econômico direciona todo
aparato burocrático do sistema penal no sentido dessa proteção,
tipificando comportamentos que venham a agredir esse bem jurídico e
cominando sanções de natureza criminal.
Em face do
crescimento das relações humanas e as transformações relativas à sua
qualidade, no que tange à ordem econômica, à internacionalização destas
relações e ao surgimento de inúmeras fraudes nessa seara, o Estado
entendeu necessária a tão polêmica intervenção penal na ordem econômica.
Na
compreensão do estudioso latino-americano Gustavo Barroetaveña: "(...) o
direito penal econômico pode definir-se como a disciplina que, dentro
do direito penal, cuida da análise daqueles comportamentos descritos nas
leis penais, principalmente em leis penais em branco, que lesionam ou
distorcem o ordenamento econômico em vigor. Seja em caráter geral ou em
algumas de suas instituições em particular, colocando em risco sua
própria existência (...)" (8).
No dizer de
Francisco de Assis Betti, "direito penal econômico é o conjunto de
normas jurídico-penais que protegem a intervenção jurídica estatal na
economia". Nesse desiderato, "é o corpo normativo que protege a
regulação legal da produção, distribuição e consumo de bens" (9).
2.2 O Direito Penal Tributário
Quanto
à natureza jurídica do direito penal tributário, no ensinamento dos
autores Alecio Adão Lovatto e Susana Aires de Sousa, existem quatro
correntes teóricas, quais sejam as teorias administrativa, tributária,
dualista e, por fim, penalista. A teoria administrativa entende que o
ilícito fiscal preenche todas as características próprias do ilícito
administrativo, dessa maneira, o direito penal tributário cuidaria,
fundamentalmente, de infrações administrativas.
As
condutas, reguladas pelo direito penal tributário, seriam ofensivas
meramente a normas instrumentais, não havendo subversão ao ordenamento
nem ofensa de bens jurídicos fundamentais, por isso a sua natureza
administrativa. As infrações fiscais, ao atingirem bens coletivos do
Estado, não teriam nada de semelhante com as infrações penais comuns,
que atingem bens individuais, estas seriam imorais, enquanto aquelas
apenas infrações de ordem. Desse modo, as consequências jurídicas dos
ilícitos tributários, pela óptica da teoria administrativa, deveriam ser
apenas sanções pecuniárias e jamais penas privativas de liberdade.
Segundo
a teoria tributarista, o direito tributário possuiria uma unidade e
especificidade que impediriam a sua desintegração em ramos autônomos. O
direito penal tributário, por ser um ramo do direito tributário, seria
parte integrante dessa unidade, e a tipificação dos delitos fiscais, com
a consequente cominação de penas, seria mera derivação do poder
tributário do Estado. Sob a visão dessa teoria, o direito penal
tributário seria, por natureza, um direito tributário penal, e não ao
contrário, na medida em que tem raízes tributárias, e não penais (10).
A
teoria dualista propõe uma ponderação entre a teoria administrativa e a
penal, ao entender que os delitos fiscais são ora de natureza criminal,
ora de natureza administrativa. A leitura tecida por esta teoria é a de
que existem infrações fiscais que violam interesses essenciais da vida
em sociedade e, por possuírem relevância ética, se afastam das infrações
administrativas comuns. De outro lado, existem infrações que carecem de
dignidade penal e devem se situar no âmbito da ilicitude
administrativa.
Por fim, temos a corrente teórica
que percebe o direito penal tributário como direito dotado de natureza
eminentemente penal. Para essa corrente, o direito penal tributário nada
mais é do que um direito penal especial. A legislação penal especial
tipifica as condutas que ofendem a ordem tributária e, com isso,
configuram o direito penal tributário. No entanto, como ocorre com
qualquer outra lei penal especial, essas normas se submetem totalmente
às garantias e aos princípios previstos no Código Penal. Nesse diapasão,
o direito penal tributário seria um ramo do direito penal estanque do
direito tributário, já que não sanciona com penas as tipificações do
Código Tributário, mas apenas aquelas previstas em normas penais
especiais. Vale dizer que a legislação pátria adota a corrente
penalista, de modo que os delitos fiscais, no Brasil, se subsumem as
normas e os princípios do direito penal e processual penal (11).
Esclarecida
a sua natureza, pode-se concluir que, em que pese algumas
particularidades, ontologicamente o delito penal tributário não se
diferencia do delito penal comum. O direito penal tributário é, nesse
desiderato, no entendimento de Emerson Lima Pinto, "o conjunto de normas
que regulam os delitos tributários e as respectivas sanções", sendo
certo que o adjetivo "tributário pretende apenas dizer que as normas
penais, que fazem parte da disciplina matriz, colocam sob sua tutela
matéria tributária" (12). O autor Roberto Decomain invoca Hector
Villegas, ao conceituar o direito penal tributário como sendo a ciência
que regula e estuda todo o concernente às infrações e sanções
tributárias (13).
Em face desses
ensinamentos, observa-se que o direito penal tributário é um ramo da
ciência penal que normatiza, estuda e aplica sanções àquelas condutas
que agridem o sistema tributário nacional e são dignas de tutela penal. A
sanção é a pena privativa de liberdade, e a proteção é feita pela
tipificação precisa de comportamentos, positivos ou negativos, que se
traduzem no não cumprimento das obrigações do cidadão, contribuinte,
para com o Estado, Fisco.
No Brasil, hoje, a norma
que regula esse ramo jurídico e tipifica os delitos fiscais é a Lei nº
8.137/90, que revogou a Lei nº 4.729/65. O antigo diploma tinha algumas
particularidades e diferenças frente à nova Lei. A norma de 1965,
primeira previsão penal da sonegação fiscal, trazia figuras típicas que
já estavam descritas no Código Penal da época; todavia, o entendimento
desenvolvido foi de que as fraudes fiscais não se enquadravam nos
conceitos gerais do Código Penal, apesar de se subsumirem igualmente a
ele. Outra particularidade é de que a lei antiga não definia delito
fiscal, limitando-se, apenas, a trazer um rol exemplificativo, por meio
de uma técnica legislativa ultrapassada (14).
Diversa
é a técnica utilizada pela Lei nº 8.137/90, que considera como delitos
contra a ordem tributária duas situações fáticas precisas e distintas: a
primeira é "suprimir tributo ou contribuição ou acessório", mediante as
condutas que consigna como "supressão" ou "redução", e a segunda é a
previsão, numerus clausus, das condutas que podem levar à sonegação (15).
Os avanços da nova regulamentação podem ser observados com clareza. As
situações fáticas, acima descritas, que se traduzem nos crimes
tributários, estão dispostas nos arts. 1º e 2º da Lei nº 8.137/90.
3 A Extinção da Punibilidade, pelo Pagamento do Tributo, nos Crimes Fiscais
3.1 Natureza Jurídica
No
que tange à natureza jurídica das causas de extinção da punibilidade,
dentro da concepção analítica tripartida do fato delituoso, Luiz Regis
Prado leciona que o elemento da punibilidade seria externo à construção
do conceito de crime. Com a realização de um injusto culpável, o direito
de punir do Estado torna-se concreto, e surge a categoria da
punibilidade. Entretanto, a punibilidade seria uma condicionante ou um
pressuposto da consequência jurídica do delito, não fazendo parte da
noção de delito propriamente dita. Enquanto elemento, alocado entre o
injusto culpável e a reação do Estado, a punibilidade pode ser extinta
quando sobrevierem determinadas causas que eliminem a possibilidade
jurídica de imposição do jus puniendi (16).
Sobre as causas de extinção da punibilidade, o pesquisador Andrei Schmidt discorre que, in verbis:
"são causas extintivas da punibilidade os atos ou fatos que impedem a
aplicação da sanção penal, podendo ocorrer de eventos naturais, da
vontade do Estado ou da vontade do ofendido ou do agente. Podem ocorrer,
ainda, durante ou após o fato (...)" (17).
Ainda
a esse respeito, Schmidt esclarece que as causas de extinção da
punibilidade podem ser cogentes ou discricionárias. No primeiro caso,
são impostas pela lei, e, no segundo, aplicadas pela discricionariedade
do juiz. A concessão de perdão judicial seria uma situação de causa
extintiva discricionária, e a extinção da punibilidade pelo pagamento
nos crimes tributários seria exemplo de causa extintiva cogente, uma vez
que é, objetivamente, prevista pela legislação (18).
Buscando
a compreensão desse instituto na melhor doutrina alemã, lança-se mão
dos ensinamentos de Hassemer e Von Liszt. Segundo Hassemer, entre o
injusto culpável e as consequências jurídico-penais do crime, existiria
um estágio reservado às decisões de política criminal. Desse modo, nos
últimos estágios da estrutura punitiva, se expressa a vontade do
legislador penal de não reagir com pena frente a qualquer comportamento
culpável. Nesse sentido, as causas de extinção da punibilidade ocorrem
quando, apesar de existir um comportamento ilícito e culpável,
considera-se conveniente renunciar à pena. Assim como a falta de
pressupostos e outros obstáculos à pena, as causas extintivas da pena
são frequentemente excluídas da estrutura do conceito de delito, por
possuírem como característica a autonomia e a independência frente à
culpabilidade (19).
O autor Von Liszt
conceitua as circunstâncias extintivas da pena como a existência de
fatos que ocorrem depois da prática de uma ação punível e que conferem o
efeito previsto em lei de aniquilar o direito à pena já originado.
Sobre
esse tema, nas palavras do autor: "(...) em uma série de casos, o
legislador faz depender a efetividade da sanção penal da existência de
circunstâncias externas, independentes do fato punível em si mesmo (...)
quando ocorrerem essas circunstâncias, não é possível que nasça a ação
penal pública, pois o fato passa a ser, nos termos da lei, impunível
(...)" (20).
Nesse diapasão, em alguns
casos, o legislador faz a efetividade de a sanção penal desaparecer
diante da existência de circunstâncias externas ao delito. O autor
esclarece, ainda, a distinção entre as circunstâncias extintivas da pena
e as condições de procedibilidade, que pertencem ao direito processual.
As primeiras se ligam à repulsa da punibilidade, e a segunda à repulsa
da acusação do sujeito ativo do delito (21).
3.2 Aspectos Normativos e Jurisprudenciais
O
primeiro diploma legal que previu a extinção da punibilidade, pelo
pagamento do tributo, nos crimes fiscais foi a Lei nº 4.357/64, que
regulava a apropriação indébita. Essa norma dispunha, em seu art. 11, a
extinção da pretensão punitiva quando o tributo fosse quitado antes do
início do procedimento fiscal. Logo após, o art. 5º do Decreto-Lei nº
1.060/69 estendeu a medida para toda forma de sonegação fiscal, além de
modificar o diploma de 64, determinando que, para fins de extinção da
punibilidade, o pagamento do tributo poderia ser feito até a decisão da
primeira instância administrativa.
Posteriormente,
surgiu, então, a Lei nº 8.137/90, que regula e tipifica, atualmente, os
delitos fiscais. Esse diploma legal tratou da extinção da punibilidade
em seu art. 14, prevendo que o pagamento do tributo, incluindo os
acessórios, realizado antes do recebimento da denúncia, tinha o condão
de extinguir a pretensão punitiva estatal. No entanto, um ano após, a
Lei nº 8.383/91, em seu art. 98, revogou todas as disposições normativas
pretéritas, que previam a extinção da punibilidade pelo pagamento do
tributo, acabando com essa possibilidade.
Porém, na
sequência, a Lei nº 9.249/95, em seu art. 34, trouxe de volta o
instituto da extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo,
novamente, se realizado até o recebimento da denúncia. Frente a esse
panorama legislativo, importante apontar que o STJ, no julgado do HC
9.909/PE, estendeu o benefício da extinção punitiva àqueles que aderiam
ao parcelamento do débito tributário antes da denúncia, considerando a
ausência de justa causa para a ação penal.
A
referida decisão do STJ causou grande impacto, e a Lei nº 9.964/00, em
seu art. 15, veio regular a situação daqueles que se submetiam ao
programa de parcelamento do débito tributário. Essa lei, porém, previu
não a extinção, mas a suspensão da pretensão punitiva frente à submissão
do sujeito ativo do delito fiscal ao Programa Refis de moratória, antes
do recebimento da denúncia, já em relação ao pagamento integral nada
foi alterado.
Em 2003, a Lei nº 10.684, Refis II, em seu art. 9º, caput,
tratou, novamente, do tema da suspensão da punibilidade dos crimes
tributários diante da inclusão do sujeito ativo do delito no programa de
parcelamento, no entanto, dessa vez, a norma não mencionou o aspecto
temporal, e a medida passou a ser legal, independentemente se antes ou
depois do recebimento da denúncia. No mesmo art. 9º, § 2º, essa lei
regulou a extinção da punibilidade pelo pagamento integral do débito e,
do mesmo modo, não fez qualquer previsão quanto ao recebimento da
denúncia, podendo a extinção pelo pagamento ocorrer a qualquer tempo.
Esse entendimento de extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo a
qualquer tempo foi sedimentado em paradigmáticas decisões do STF, como,
por exemplo, o HC 81.929/RJ e o HC 85.452/SP.
Seguindo-se
essa digressão histórica, em 2006 foi criado o Programa de Parcelamento
de Débitos Tributários Refis III, que nada alterou em nosso objeto de
pesquisa, e, em 2009, surgiu o Refis IV, ou Refis da Crise, que,
traduzido na Lei nº 11.941/09, tratou da extinção da punibilidade nos
arts. 68 e 69. O Diploma de 2009, no art. 68, limita a suspensão
punitiva apenas aos débitos, objeto da concessão de parcelamento. Desse
modo, mesmo que o contribuinte estivesse incluído no programa de
moratória, a pretensão punitiva não seria suspensa em relação aos
débitos que estivessem de fora do parcelamento. O entendimento pacífico é
de que o art. 68 da Lei nº 11.941/09 revogou o caput do art. 9º da Lei nº 10.684/03.
Ainda,
no que concerne ao Diploma de 2009, percebe-se que o art. 69 concedeu a
possibilidade extintiva da punibilidade pelo pagamento apenas às
hipóteses submetidas ao anterior parcelamento, havendo, portanto, uma
retração do instituto. Para fins penais, a controvérsia, instalada nesse
ponto, foi o seguinte questionamento: e se o art. 69 da Lei nº
11.941/09 revogou o § 2º do art. 9º da Lei nº 10.684/03? A interpretação
predominante tem sido no sentido de não ter havido revogação.
Entende-se que a legislação de 2009 trata de situação diversa, já que
dispõe apenas sobre os débitos que foram objeto de parcelamento,
enquanto o § 2º do art. 9 da Lei nº 10.684/03 é mais amplo e se aplica a
todos os débitos, ainda que não submetidos ao regime de parcelamento.
Ademais, o § 2º do art. 9º da Lei nº 10.684/03 é de natureza permanente,
ao passo que o art. 69 da Lei nº 11.941/09 é de natureza temporária,
não havendo, assim, que falar em revogação.
Nesse
ponto, é importante apontar a ADIn proposta pelo Procurador-Geral da
República referente a essa matéria. A ADIn 3.002-7 indagava a
constitucionalidade do caput do art. 9º da Lei nº 10.684/03, que,
como vimos, foi revogado pelo art. 68 da Lei nº 11.941/09. Ressaltamos,
ainda, que a referida ADIn não tratava do § 2º do mesmo art. 9º que,
como analisado, permanece em vigor. A ação proposta pelo
Procurador-Geral da República questionava matéria referente à suspensão
pelo parcelamento e não à extinção pelo pagamento. Como se não bastassem
as controvérsias já existentes nessa seara, em 2011 foi publicada a Lei
nº 12.382, que reascendeu a polêmica sobre a extinção da punibilidade
nos crimes tributários. Dessa vez, a questão vem regulada em um artigo
isolado da lei que trata do salário-mínimo. O art. 6º da referida lei,
em seu § 4º, regula a suspensão da pretensão punitiva pela aderência do
agente ativo do delito fiscal ao Programa de Parcelamento e, dessa vez,
menciona que o pedido de inclusão no parcelamento deve ser feito antes
do recebimento da denúncia. Essa disposição faz retomar todo o debate
que envolve o marco processual do recebimento da denúncia.
Diante
dessa recente disposição normativa, cabe esclarecer que a sua melhor
interpretação tem sido no sentido de que ela afeta apenas a suspensão
punitiva pelo parcelamento, e não a extinção pelo pagamento.
Consequentemente, no que tange aos crimes tributários, hoje, têm-se duas
situações distintas. A primeira é quanto à suspensão da pretensão
punitiva do Estado, que ocorre com o pedido de inclusão do agente ativo
do delito no programa de parcelamento, efetuado antes do recebimento da
denúncia. Vige, então, no que concerne à suspensão punitiva, o § 4º do
art. 6º da Lei nº 12.382/2011. A segunda situação é no que se refere à
extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo devido, efetuado pelo
agente ativo do crime fiscal. Nessa situação, permanece vigendo, ainda,
a disposição do § 2º do art. 9º da Lei nº 10.684/03, no qual não há
qualquer menção ao recebimento da denúncia. Desse modo, hoje, o
pagamento do tributo, a qualquer tempo, extingue a punibilidade estatal,
sendo que o sujeito ativo do delito fiscal tem a possibilidade de
afastar, assim, a persecução penal e uma eventual execução criminal.
4 A Construção de uma Perspectiva Criminológica
Percebe-se
que, no rico e atual debate que envolve o direito penal econômico e,
especialmente, o direito penal tributário, tem prevalecido uma
perspectiva de estudo preponderantemente legal e dogmática. Os
movimentos das estruturas sociais e as suas relações que se manifestam
ao redor do sistema jurídico e que, sem dúvida, influenciam sobremaneira
as suas decisões não têm sido explorados com frequência. Quando as
relações econômicas ou sociais são mencionadas, os autores o fazem para
justificar, ou não, a legitimidade da intervenção penal. Nesse
desiderato, as modificações das relações que habitam as instituições
sociais são lembradas como consequência do agir penal na seara
econômica, e não como a sua causa. Este trabalho objetiva tentar
compreender os interesses sociais que envolvem o sistema penal e que,
estando por detrás dos argumentos jurídicos, motivam a intervenção penal
na esfera econômica e a existência de institutos, como a extinção da
punibilidade, pelo pagamento do débito, nos crimes tributários.
Observa-se que a grande maioria dos argumentos utilizados no estudo da
criminalidade econômica gira em torno da constitucionalidade e da
legitimidade dos institutos. De forma propositada, este estudo não se
posiciona quanto à legitimidade da intervenção penal na esfera
econômica, tampouco quanto à constitucionalidade do direito penal
tributário e da extinção punitiva pelo pagamento. Estudiosos renomados
já o fizeram com propriedade, e a proposta aqui é outra. A presente
pesquisa propõe uma análise criminológica da extinção da punibilidade
nos crimes tributários e do papel que essa figura representa no contexto
da criminalidade econômica como um todo. Compreende-se que o estudo
desse instituto, sob a perspectiva dos mais recentes avanços da
Criminologia, pode contribuir de forma considerável no entendimento da
lógica do direito penal nas sociedades contemporâneas.
Dessa
maneira, sustenta-se que a Criminologia nos dá um aporte teórico que
possibilita uma perspectiva metodológica externa ao objeto estudado. Tal
visão viabiliza uma observação crítica tanto da produção legislativa
como do agir das agências penais e dos seus agentes individuais,
contextualizando-os na dinâmica dos conflitos sociais que os cercam (22).
A esse respeito, Baratta nos esclarece que uma perspectiva
infrassistêmica da criminalização, pautada em uma análise imanente ao
sistema jurídico, não oferece uma visão crítica, na medida em que atua
no âmbito da antijuridicidade formal, impossibilitando a inteligência
efetiva de um substrato material externo ao sistema jurídico que
legitime a ação do direito penal. Para esse autor, o discurso,
contaminado pela lógica punitiva positivada, omite os conflitos
estruturais que envolvem o sistema jurídico-penal e oferece um olhar
deformado da legitimidade penal (23).
Também
sobre o relevo dos conflitos sociais, no entendimento do sistema
punitivo, Muñoz Conde aponta para o fato de que "uma norma jurídica
penal só pode ser entendida se colocada em relação a um determinado
sistema social". Desse modo, "se deve analisar o funcionamento da norma
penal no conjunto global de controle social em que ela se integra" (24).
O
pesquisador Raúl Cervini defende a ideia de que "o delito econômico é
produto da estrutura social em que se insere". Posto isso, ele estaria
condicionado pela estrutura socioeconômica vigente em um determinado
tempo e uma determinada sociedade. No texto desse autor, fica clara a
inter-relação necessária entre sistema jurídico e sistema social (25).
Por
essas razões, acredita-se que um fenômeno social tão rico e complexo,
que envolve interesses centrais no entendimento do sistema penal, merece
uma análise que leve em conta toda complexidade das dinâmicas sociais
que circundam o ordenamento jurídico-penal. Decisões de política
criminal que optam pelo afastamento da persecução penal, em face da
quitação de uma dívida em delitos que, por sua natureza, já são próprios
dos altos extratos sociais, têm muito a dizer sobre a lógica do sistema
penal. Assim, por essas razões, percebe-se que somente um estudo que
adote uma perspectiva criminológica pode desvelar e compreender os
interesses, ligados às estruturas sociais, que interagem com o sistema
penal e motivam as decisões de política criminal.
5 A Criminologia de David Garland
Na
construção de sua teoria social sobre o castigo, Garland pretende
explorar a punição por diversos ângulos, procurando construir uma imagem
complexa do fenômeno. Desse modo, sobrepõe diversas perspectivas, para
construir uma visão mais ampla e plena. No decorrer de sua obra
Punishment and Modern Society nos são apresentados argumentos de
diferentes tradições teóricas, sendo que cada uma faz uma interpretação
distinta e particular do fenômeno punitivo. As interpretações se apoiam
sempre em uma teoria social mais ampla, da qual derivam e são
independentes (26).
Nesse sentido, os
principais argumentos sobre a questão punitiva, trazidos por Garland,
derivam da tradição marxista, da perspectiva de Foucault e do pensamento
de Durkheim. O autor propõe desenvolver uma base teórica social do
desvio, relacionando essas diversas interpretações, de modo que uma
teoria complete e auxilie no entendimento e refinamento da outra. Cada
sustentação teórica revela um determinante diverso e esquematiza uma
relação diferente.
O mérito de Garland está em
fazer um profundo estudo de cada perspectiva de análise da punição nas
sociedades modernas, criticando as suas falhas e enaltecendo os seus
avanços, buscando sempre sua inter-relação e complementação. Para nosso
estudo, importante construção do autor é quanto aos objetivos e
interesses sociais que motivam a punição. Pela análise, fincada na
teoria marxista, traduzida na teoria materialista do desvio, somente as
classes governantes encontrariam, no sistema penal, a tradução de seus
interesses, sendo que, para as demais camadas sociais, o sistema penal
do Estado burguês nada mais seria do que uma expressão do terror e da
sobreposição de classes. O sistema penal, para essa teoria, seria não
mais do que um agir institucional que atende aos interesses da classe
dominante. Diferente é a leitura desse fenômeno pela teoria de Durkheim,
para quem a instituição da punição representaria os interesses da
sociedade como um todo. Diante dessas posições, Garland desenvolve um
novo ponto de observação, valendo-se de ambas as contribuições.
Para
Garland, o direito penal atende tanto a interesses universais, da
sociedade em conjunto, como a interesses particulares, de determinada
classe.
Nesse desiderato, esclarece o autor que:
"direito penal é uma fonte de proteção e, ao mesmo tempo, de terror para
as classes trabalhadoras. É indiscutível que alguns de seus aspectos
envolvem uma função social, como proibir a violência e castigar os
criminosos. No entanto, se a penalidade serve aos interesses de certa
classe, o faz de uma maneira que assegura o apoio das classes
subordinadas, protegendo os interesses que se consideram universais
sobre os particulares. A esse passo, a chave para compreender o direito
penal, em conflitos de classes, é reconhecer os modos em que se
entrelaçam os interesses particulares com os interesses gerais (...)" (27).
A
esse passo, o direito penal atende, de forma encoberta, aos interesses
particulares das classes privilegiadas, no entanto, sem sua aparência de
proteção universal, que reflete os interesses gerais, ele não se
sustentaria e, consequentemente, perderia o seu apoio e a sua
legitimidade.
Em uma observação complexa do direito
penal, o autor nos aponta que "a mesma lei que protege a todos, em
certo nível, também legitima o princípio mediante o qual uma classe
explora a outra" (28). Em face da existência de interesses tanto
gerais quanto particulares, envolvendo o sistema penal e motivando as
decisões de política criminal, o raciocínio que o autor nos apresenta é o
de que o direito penal serve à classe dominante de forma velada, ao
mesmo tempo em que atende aos anseios sociais gerais, sem os quais a
classe dominante não legitimaria o seu poder.
Nessa
abordagem complexa, traçada por Garland, fica evidente que, além do
elemento econômico, monetário e material, mostrado pela criminologia de
base marxista, o fenômeno do castigo institucional está relacionado a
outros elementos, não materiais, que habitam as relações sociais e
determinam os rumos do sistema penal. Além de atender aos interesses
ligados à concentração e distribuição de capital, o sistema penal está
carregado de elementos políticos, ideológicos, simbólicos e até mesmo
religiosos que transcendem as relações econômicas.
Garland
tece fundamentadas críticas às criminologias de base marxista como um
todo; define que o seu arcabouço teórico, que observa a punição sob o
prisma dos conflitos sociais, ligados à concentração e distribuição de
renda, não dá conta de compreender a complexidade do direito penal nas
sociedades modernas. Segundo o autor, a Teoria Materialista do Desvio,
que teve suas raízes em Rusche e Kirchheimer e que sustenta correntes
atuais, como a Criminologia Crítica, redundaria em um reducionismo
materialista, incapaz de perceber as peculiaridades do sistema penal. A
observação da força ideológica e simbólica do direito penal é tão
relevante na compreensão do sistema punitivo quanto a análise dos
conflitos materiais (29).
6 A Análise Criminológica da Extinção Punitiva, pelo Pagamento do Tributo, nos Crimes Fiscais
Acredita-se
que os avanços da Criminologia Contemporânea, traduzidos aqui no
pensamento de Garland, oferecem um arcabouço teórico mais completo e
adequado para leitura da criminalidade econômica do que as correntes
teóricas fincadas, exclusivamente, na tradição marxista. Sobretudo em
relação ao fenômeno de inflação legislativa que toca, atualmente, o
direito penal econômico, atingindo, diretamente, comportamentos próprios
de sujeitos bem colocados socialmente, a noção de seleção penal da
teoria materialista do desvio, desde a eleição dos tipos penais e
ligada, somente, a interesses particulares, parece não dar conta da
complexidade do fenômeno punitivo na sociedade contemporânea. Entende-se
que a leitura da extinção da punibilidade, pelo pagamento, nos crimes
fiscais, pela perspectiva dos avanços oferecidos por Garland, pode
contribuir, decisivamente, no entendimento da lógica seletiva do direito
penal contemporâneo em toda sua complexidade.
Entende-se
que dois são os avanços centrais de Garland em face da tradição,
somente, materialista da criminologia. O primeiro é perceber que a
lógica do sistema punitivo não reflete interesses apenas das classes
privilegiadas, e, sim, além destes, reflete interesses universais da
sociedade como um todo. Como se viu a esse respeito, as decisões de
natureza punitiva seriam resultado de uma combinação de interesses
particulares e universais. Nesse ponto, Garland sustenta que, sem o
apoio das classes proletárias, traduzido em interesses universais, as
classes dominantes perderiam a sua legitimidade e não se sustentariam no
poder. Nesse diapasão, o autor afirma que a mesma lei penal que protege
e reflete os interesses das classes subordinadas é a lei que vai
instrumentalizar a sua dominação (30).
O
segundo ponto de avanço desse autor é apontar que, além dos materiais,
elementos simbólicos, políticos, ideológicos e até mesmo religiosos são
igualmente decisivos na compreensão da lógica punitiva. É inegável que a
Criminologia Crítica também explorou elementos ideológicos e
simbólicos, porém, sempre subordinados aos conflitos materiais. Garland
não somente aprofundou a análise dessas forças, mas, também, propos a
sua autonomia em face dos elementos materiais. Na obra Punishment and
Modern Society, o autor aponta o reducionismo das teorias materialistas e
afirma a existência de outras variáveis, não materiais, igualmente
relevantes, na percepção da instituição do castigo em toda a sua
complexidade.
Apresentam-se aqui alguns trechos que
esclarecem essa posição do autor: "(...) Em particular, sua
configuração espacial implica uma separação muito clara entre as
dimensões econômicas e não econômicas (...). Ainda mais importante, os
intensos debates e a preocupação do público em torno das questões
referentes aos desenhos da prisão e detalhes sobre seus regimes não
podem ser compreendidas se nos restringirmos a um vocabulário de motivos
econômicos (...). O movimento de reforma prisional coincidiu com
preocupações de ordem social, política e religiosa, que ajudaram muito a
configurar os sistemas penais já estabelecidos (...). Quando outras
forças, tais como o entusiasmo religioso, a teoria penal, a política
social e o humanitarismo podem perceber-se como mais imediatamente
relacionadas com o fenômeno, pronto, passam para segundo plano (...).
Superestima o papel das forças econômicas na formação do sistema penal.
Subestima de maneira drástica as forças ideológicas e políticas" (31).
Em
relação à extinção punitiva, pelo pagamento do débito fiscal, nos
crimes tributário, percebe-se que desde a primeira legislação especial
que criminalizou a fraude fiscal, na década de 1960, ela esteve sempre
presente. O instituto surge de forma tímida, no qual o pagamento deveria
ser feito até o final dos trâmites administrativos para fins de
extinção da punibilidade, e vai aumentando seu espectro de incidência ao
longo do tempo, até chegar aos dias atuais, nos quais o pagamento pode
ser feito até mesmo depois do oferecimento da denúncia. Na relação desse
binômio, crimes fiscais e extinção punitiva, pode-se dizer que na
medida em que se expande o direito penal tributário e cresce a
persecução penal à fraude fiscal, igualmente se amplia o âmbito de
alcance da extinção punitiva pelo pagamento.
Ao
analisar esse fenômeno, constata-se que, ao mesmo tempo em que existe a
criminalização primária e, em certa medida, a persecução das agências
punitivas, atingindo os autores da sonegação fiscal, há um mecanismo
seletivo que reduz drasticamente as possibilidades desses sujeitos
chegarem à execução criminal. Nesse diapasão, percebe-se que a extinção
da punibilidade pelo pagamento nos crimes tributários é um mecanismo de
seleção que ocorre muito próximo ao cume do processo de criminalização,
que é a execução penal. Desse modo, esse mecanismo permite que haja a
criminalização primária, toda movimentação do aparato burocrático
criminal e, ainda assim, evita a possibilidade de que os agentes ativos
dos delitos tributários cheguem aos estabelecimentos prisionais.
Aproximando
esse fenômeno com os recentes avanços da Criminologia Contemporânea,
vislumbra-se que os interesses universais da sociedade estão traduzidos
na produção das normas penais e na persecução que atinge os agentes
ativos da fraude fiscal, já os interesses particulares se refletem na
previsão da extinção punitiva pelo pagamento. A criminalização da evasão
fiscal, na medida em que corresponde aos interesses gerais da
sociedade, possui uma considerável função ideológica e simbólica (32).
Enquanto a criminalização e a persecução dos crimes tributários
contribuem para a construção de uma aparência de igualdade, reforçando a
legitimidade do direito penal, a previsão da extinção punitiva pelo
pagamento faz o papel de seleção, mantendo longe das instituições de
execução penal aqueles que possuem recursos materiais.
Seguindo
essa linha de pensamento, a inflação legislativa penal que atinge
sujeitos abonados materialmente e bem colocados socialmente decorre,
além dos anseios arrecadatórios estatais, da necessidade política de
manter o apoio das classes subordinadas, por meio da difusão de uma
sensação de isonomia sem a qual o sistema perderia sua legitimidade.
Estamos diante da influência de forças políticas e simbólicas que
transcendem a lógica material. A autonomia dessas forças, dentro do
sistema de punição, explica o desenvolvimento de movimentos que
contradizem a lógica dos interesses particulares.
Diante
disso, é possível analisar a extinção da punibilidade pelo pagamento
nos crimes tributários, como um mecanismo extremamente sofisticado e
velado de seleção penal. O sujeito, detentor de boa condição social,
sempre que estiver próximo da execução penal, pagará a dívida e
extinguirá o jus puniendi estatal. O fato é que, ao incidir apenas muito
próximo ao final do processo criminalizatório, esse dispositivo permite
uma aparência ainda maior de igualdade formal, ao mesmo tempo em que
estimula a desigualdade material. Os sujeitos bem colocados socialmente
que cometem a fraude fiscal dificilmente chegam à execução penal, porém,
sofrem a criminalização primária e a persecução das agências penais.
Existe, desse modo, uma considerável margem para serem exploradas as
funções políticas e simbólicas do direito penal, essenciais para a
sustentação de sua legitimidade.
7 Conclusões
A
análise da extinção da punibilidade, pelo pagamento da dívida fiscal,
nos crimes tributários parece nos auxiliar na compreensão da lógica
seletiva do sistema penal contemporâneo, contextualizada na complexidade
que marca nosso momento histórico-social. A inflação legislativa e o
crescimento da persecução estatal que marca o direito penal econômico,
e, especialmente, a fraude fiscal, atinge diretamente sujeitos bem
alocados socialmente e possuidores de considerável acúmulo material. No
entanto, em que pese esses sujeitos sofrerem a incidência da norma penal
e se submeterem ao movimento persecutório das agências criminais, eles
dificilmente chegam à execução criminal, ao cárcere.
A
existência do instituto objeto desta investigação é um exemplo de
estratégia de política criminal que mantém os indivíduos possuidores de
acúmulo material longe do cárcere, ao mesmo tempo em que permitem serem
exploradas as funções simbólicas e necessidades políticas do sistema
criminal. Ao expandir as possibilidades teóricas da criminologia,
incluindo outras variáveis e interesses na equação da lógica punitiva, a
teoria de Garland parece oferecer possibilidades mais completas para o
entendimento das forças sociais que motivam as decisões de política
criminal na seara econômica.
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PUCRS, 2006. Dissertação [Mestrado em Ciências Criminais], Programa de
Pós-Graduação em Ciências Criminais, Pontifícia Universidade Católica do
Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2010.
Notas
(1)O
conceito de crimes tributários ou fiscais pode ser mais amplo, porém,
neste trabalho, será considerado como sendo aqueles previstos nos arts.
1º e 2º da Lei nº 8.137/90
(2)SMITH, Adam. A riqueza das nações. São Paulo: Abril Cultural, 1983. p. 374-383.
(3)COSTA,
Elder Lisboa Ferreira da. Os delitos econômicos na atualidade. In:
D'ÁVILA, Fábio Roberto; SOUZA, Paulo Vinícius Sporleder de. Direito
penal secundário. São Paulo: RT, 2006. p. 339-341.
(4)COSTA,
Elder Lisboa Ferreira da. Os delitos econômicos na atualidade. In:
D'ÁVILA, Fábio Roberto; SOUZA, Paulo Vinícius Sporleder de. Direito
penal secundário. São Paulo: RT, 2006. p. 342-343.
(5)WEYH,
Débora Poeta. A tutela jurídica da livre concorrência. Porto Alegre:
PUCRS, 2006. Dissertação [Mestrado em Ciências Criminais], Programa de
Pós-Graduação em Ciências Criminais, Pontifícia Universidade Católica do
Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2010. p. 23-26.
(6)NUÑEZ,
Martos apud WEYH, Débora Poeta. A tutela jurídica da livre
concorrência. Porto Alegre: PUCRS, 2006. Dissertação [Mestrado em
Ciências Criminais], Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais,
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre,
2010. p. 23.
(7)Esse estudo adota uma noção ampla de ordem econômica, ao passo em que a ordem tributária está inserida dentro dessa noção.
(8)Tradução livre. O autor traz o seguinte conceito, in verbis:
"(...) Con las salvedades apuntadas el derecho penal económico puede
definirse como: la disciplina que dentro del derecho penal se aboca al
análisis de aquellos comportamientos descritos en las leyes penales -
principalmente en leyes penales en Blanco - que lesionan o distorsionan
el ordenamiento económico en vigor, sea con carácter general o en
algunas de sus instituciones en particular, generando la pérdida de la
confianza en la población, colocando en situación de riesgo su propia
existencia" (BARROETAVEÑA, Diego Gustavo. Derecho penal económico:
delitos tributarios. Revista Brasileira de Ciências Criminais, IBCCRIM,
São Paulo, ano 18, n. 86, p. 70, 2010).
(9)BETTI, Francisco de Assis. Aspectos dos crimes contra o sistema financeiro. Belo Horizonte: Del Rey, 2000. p. 35.
(10)LOVATTO,
Alecio Adão. Crimes tributários: aspectos criminais e processuais.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000. p. 26-29; SOUSA, Susana Aires
de. Os crimes fiscais: análise dogmática e reflexão sobre a legitimidade
do discurso criminalizador. Coimbra: Coimbra Editora, 2006. p. 241-255.
(11)LOVATTO,
Alecio Adão. Crimes tributários: aspectos criminais e processuais.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000. p. 26-29; SOUSA, Susana Aires
de. Os crimes fiscais: análise dogmática e reflexão sobre a legitimidade
do discurso criminalizador. Coimbra: Coimbra Editora, 2006. p. 241-259.
(12)PINTO,
Emerson de Lima. A criminalidade econômico-tributária: a (des)ordem da
lei e a lei da (des)ordem. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. p.
26-34.
(13)DECOMAIN, Pedro Roberto. Crimes contra a ordem tributária. Florianópolis: Obra Jurídica, 1995. p. 18.
(14)PINTO, op. cit., p. 70-71.
(15)CORREA, Antônio. Dos crimes contra a ordem tributária. São Paulo: Afiliada, 1994. p. 71-74.
(16)PRADO, Luiz Regis. Direito penal econômico. São Paulo: RT, 2004. p. 426.
(17)SCHMIDT, Andrei Zenkner. Exclusão da punibilidade em crimes de sonegação fiscal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. p. 43-45.
(18)Ibidem, p. 59-65.
(19)HASSEMER,
Winfried. Fundamentos del derecho penal. Tradução de Francisco Muñoz
Conde e Luis Arroyo Zapatero. Barcelona: Bosch, 1984. p. 300-302.
(20)Tradução livre. As palavras de Von Liszt, in verbis:
"(...) pero en una serie de casos el legislador ha hecho depender la
efectividad de la sanción penal de la existencia de circunstancias
externas, independientes del acto punible mismo (...) cuando ocurren
estas circunstancias, no es posible que nazca la acción penal pública,
el acto, pues, no es más punible en el sentido de la ley (...)" (LISTZ,
Franz von. Tratado de derecho penal. Tradução de Luis Jiménez de Asúa e
Quintiliano Saldaña. Madrid: Reus, 1999. p. 458).
(21)Ibidem, p. 457-470.
(22)Sobre
o objeto e a perspectiva de estudo da criminologia, ver: HASSEMER,
Winfried; MUÑOZ CONDE, Francisco. Introducción a la criminología y a la
política criminal. Valência: Tirant lo Blanch, 2001. p. 24-30.
(23)BARATTA,
Alessandro. Funções instrumentais e simbólicas do direito penal.
Revista Brasileira de Ciências Criminais, IBCCRIM, São Paulo, ano 2, n.
5, jan./mar. 1994, p. 6-24.
(24)MUÑOZ CONDE,
Francisco. Direito penal e controle social. Tradução de Cíntia Toledo
Miranda Chaves. Rio de Janeiro: Forense, 2005. p. 7-15.
(25)CERVINI,
Raúl. Derecho penal económico - concepto y bien jurídico. Revista
Brasileira de Ciências Criminais, IBCCRIM, São Paulo, ano 11, n. 43, p.
96-104, 2003.
(26)GARLAND, David. Punishment
and modern society: A study in social theory. Chicago: The University
of Chicago Press, 1990. Cap. 12. p. 277-279.
(27)Tradução livre. Garland afirma, in verbis:
"(...) The criminal Law provides protection as well as 'terror' for the
working classes, and there is undoubtedly a general social function
involved in certain of its aspects such as the prohibition of violence
and the punishment of predatory criminals. If penalty serves a class
purpose it does so in a way which enlists support among the subordinate
classes and which protects interests which are experienced as being
universal rather than specific. The key to understanding criminal law in
class terms is to appreciate the ways in which particular interests are
interwoven with general ones" (GARLAND, David. Punishment and modern
society: a study in social theory. Chicago: The University of Chicago
Press, 1990. Cap. 5. p. 117).
(28)Tradução livre. O trecho da obra, in verbis:
"(...) so that the same law which protects everyone at one level, also
legalizes the basis whereby on classes exploits the other (...)"
(GARLAND, David. Punishment and modern society. Chicago: The University
of Chicago Press, 1990. Cap. 5. p. 117).
(29)GARLAND,
David. Punishment and modern society: a study in social theory.
Chicago: The University of Chicago Press, 1990. p. 47-131. Cap. 3, 4, 5 e
6.
(30)GARLAND, David. Punishment and modern society: a study in social theory. Chicago: The University of Chicago Press, 1990.
(31)Tradução livre. Transcreve-se as palavras de Garland, in verbis:
"(...) In particular, its spatial configuration implies too clear a
separation between the economic and the non economic dimensions of
society (...)
(...) More importantly, the intense
debates and public concern which occurred around questions of prison
design and the details of regimes cannot be understood if we confine
ourselves to an economic vocabulary of motives. (...) the prison reform
movement was also taken up with social, political and religious concerns
which did much to shape the configuration of penal practices which was
eventually established (...).
(...) Whenever other
forces such as religious enthusiasm, penal theory, social politics, or
humanitarism might be perceived as more immediately bound up with the
development of the phenomenon, they are promptly reduced to secondary
importance (...) seriously overestimates the effective role of economic
forces in shaping penal practice. It grossly understates the importance
of ideological and political forces" (GARLAND, David. Punishment and
modern society: a study in social theory. Chicago: The University of
Chicago Press, 1990. p. 85, 106-108).
(32)Sobre as funções políticas e simbólicas do direito penal, Garland explana, in verbis:
"(...) A formulação de políticas se torna uma forma de atuação
simbólica que rebaixa as complexidades e o caráter duradouro do controle
do crime efetivo, em favor das gratificações imediatas de uma
alternativa mais expressiva. A elaboração de leis se torna uma questão
de gestos retaliadores, cujo objetivo é o de reconfortar um público
preocupado com o tema e de se alinhar ao senso comum, por mais
inadequados que sejam tais gestos para tratar o problema subjacente.
(...) Reagir com efeitos imediatos para confortar um público desconfiado
(...)" (GARLAND, David. A cultura do controle: crime e ordem social na
sociedade contemporânea. Rio de Janeiro: Revan, 2008. p. 282-283).
Disponível em: (http://www.lex.com.br/doutrina_25612824_DELITOS_TRIBUTARIOS_E_CRIMINOLOGIA_UM_ESTUDO_DA_EXTINCAO_PUNITIVA_PELO_PAGAMENTO_DA_DIVIDA_FISCAL.aspx). Acesso em: 08/jun/2014.
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