Colunas
28março2013
SENSO INCOMUM
Tout va très bien dans le monde juridique
com
que se preocupar, porque “tout va très bien, Madame La Marquise”. Na
paródia que fiz do título da música de Ray Ventura, “tudo vai muito bem no
mundo jurídico”. Como o famoso corsário, “afundando e atirando, afundando e
atirando”! Também há o filme italiano Stanno tutti bene (1990),
com Marcelo Mastroianni (os filhos estavam todos “bem”: por exemplo, o que era
maestro, na verdade apenas tocava um tambor!).
O
que quero fazer? Simples. Penso que é possível fazer uma alegoria da canção e
da situação nela apresentada com a questão dos concursos públicos, a crise do
ensino jurídico e a crise da operacionalidade do sistema jurídico — mormente
quando os jornais e sites jurídicos noticiam que 89,7% dos bacharéis chumbaram
no exame da OAB (leia aqui).
Embora tudo isso, a comunidade jurídica continua cantando “que tudo vai bem,
Madame Dogmática Jurídica e Mounsier Ensino Jurídico”. E o filho “maestro”
toca apenas um tamborzinho...
Automa(ta)ção
do ensino
Tudo vai bem? É? Pois é. Pelo jeito, sim, porque a indústria que
mais cresce é a dos compêndios e manuais simplificados-simplificadores. Embora
o alto índice de “chumbamento” nos exames de Ordem e nos concursos, estes vão
de vento em popa. Como um “fordismo jurídico”, tudo é feito em série,
repetitivo, automatando (e auto-matando) o ensino e a sua operacionalização.
Já
denunciei tudo isso à saciedade e à sociedade. Mas, por amor à ciência
jurídica, não me canso. Parece não haver limites nesse processo de
estandardização. Portanto, um índice de chumbamento de 89,3% não aparece “do
nada”. Nem o alto índice de reclamações sobre o caráter de quiz show das
questões dos concursos públicos em geral.
O
elemento simbólico disso pode ser visto a partir de simples acesso à internet.
Na rede pode ser visto um sujeito ensinando Direito Constitucional na melodia
de “atirei um pau no gato”. Sim, é verdade. Fora outro(a) que “ensina” direito
com músicas da Xuxa. Além disso, e nem sei se é o mesmo do “atirei o pau no
gato”, há também como “aprender” sobre agências reguladoras por melodia dos
Mamonas Assassinas. Pior, e aqui está o busílis da crise do Direito, se você
prestar atenção, o que o “professor” está ensinando é, “esculpido em carrara”,
nada mais, nada menos que o texto da lei, dos Códigos, da Constituição. É para
de-co-rar. É escandaloso. Se isso acontecesse na área da Medicina ou da Física
Nuclear, todos diriam: acabou a medicina; seremos todos vitimados pela primeira
gripe ou infecção; os médicos estão estroinando com Hipócrates, a Física
Nuclear virou Educação Física e estão fazendo prova de natação oral. Mas, como é
no Direito, tout va très bien... a malta acha bonito.
Impunidade
significativa
Vivemos em uma impunidade semântico-significativa. É talvez a
pior das impunidades, porque ela é decorrente de um longo processo de
expropriações de sentidos. Nesse universo expropriativo, já não há DNA de
palavras e de coisas. Diz-se qualquer coisa sobre qualquer coisa. Como em um
“estado de natureza de sentidos”, cada indivíduo dá os sentidos que quer. Ao
invés de um monastério de sábios — que por si, na alegoria criada por Warat, já
se constitui na institucionalização de um tirania de sentidos —, constroem um
“monastério de néscios”, pior forma de ascensão da insignificância (homenageio
Castoriadis). Assim, tornar público, em livros e outras formas de comunicação,
as mais diversas bizarrices, tornou-se uma coisa aceita nestes tempos de
fragmentação de sentidos.
Celebridades
instantâneas, aprendizagem por drops: eis a receita. As salas de
aula se torna(ra)m palcos de espetacularizações, onde o professor se desdobra
para “ensinar” obviedades aos alunos, treinando-os com várias formas de jogral.
É a infantilização da cultura. Sem accountabillity(necessidade de
prestação de contas), os novos personagens — principalmente os do mundo
jurídico — “vendem” o seu peixe a um público que cada vez mais “proletarizado
culturalmente”.
Essa
falta de compromisso e ausência de cobrança faz com que, por exemplo, um
advogado (lembram?)
publique um artigo retumbante (mais lido na ConJur) menos de 48 horas depois da
tragédia da boate Kiss, de Santa Maria, dando o “veredicto” de que a prisão dos
responsáveis era uma espécie de golpe na democracia (ou algo assim) e que o
Estado Democrático é que “estava de luto”. Pois é. Tivesse ele esperado um
pouco mais para se pronunciar... A falta de compromisso e ausência de cobrança
(cuja soma corresponde à impunidade significativa) faz com que um livro sobre a
Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB) circule explicando
que a norma legal (ou lei) possui natureza de ato jurídico e que este constitui
espécie de fato jurídico, que, por sua vez, subordina-se à classe dos fatos — e
fato é qualquer evento ou acontecimento que se dá no mundo, na vida real. É.
Pois é. Tout va très bien... A propósito: do que li, chego à
conclusão que norma legal deve ser “uma senhora chamada Norma que é bem legal”
ou algo desse jaez.
Eis
aí o problema dos tempos pós-modernos. Sem cobranças, sem prestação de contas
significantes-significativas. Trata-se de uma “humptydumptyzação” da linguagem,
em que o universo jurídico é a maior vítima. Caso contrário, como se explica o
sucesso de todos esses personagens que “vendem” facilidades e instantaneidades?
Depois nos queixamos!
Já
não há mais perguntas a serem feitas. Parece que esgotaram o estoque e agora há
uma disputa para saber quem faz mais pegadinhas. Bem, tudo isso eu já
denunciei. O que há de novo, então? O que há de novo é o silêncio eloquente da
comunidade jurídica. Mas “tout va très bien”...
Leio,
agora, que o Ministério da Educação promete rigor na fiscalização das
faculdades de Direito. Diz que fechará faculdades. Haverá um trabalho
fiscalizatório conjunto MEC-OAB. Parece importante que providências sejam
tomadas. Portanto, no mínimo é alvissareiro. Parabéns às autoridades
responsáveis.
O
que me preocupa, entretanto, é que as medidas sejam paliativas, apenas
paracetamol em um caso de dengue, como que ministrado por um médico que passou
em concurso público estudando em cursinho de preparação que pegou o know-how da
área jurídica... Digo isso porque o “sistema” tem a capacidade de adaptação
darwiniana. Um bom exemplo disso é a Resolução 75 do CNJ, que, tão logo “entrou
em vigor” determinando a inclusão de disciplinas humanistas nos concursos para
a magistratura, já fez com que aparecessem livros de baixíssima densidade
teórica, em nada acrescentando no “projeto de humanização”. Na verdade, e isso
já foi dito aqui em duas colunas (leiaaqui e aqui), a produção “humanizadora” serviu para piorar a
situação.
O
que quero dizer é que, sem o enfrentamento da crise do Direito (denunciada já
há mais de 30 anos, bastando ver os livros de Warat, Tercio, Faria e outros),
tudo isso cairá na mesmice. Por mais chato que isso seja, tenho que insistir.
Brado: essa crise é de paradigma(s). Passados cinco lustros desde a promulgação
da Constituição, ainda não conseguimos resolver a problemática relacionada aos
conceitos básicos da teoria do direito (entendida lato sensu,
envolvendo os diversos âmbitos da dogmática jurídica). Vendo o que se escreve
por aí e o que se pergunta nos concursos públicos — e voltamos sempre a ponto
de entrada —, tem-se “claramente” que Kelsen ainda é visto como aquele que
queria aplicar a letra da lei, que Siches era um pós-positivista, que Dworkin
fala em ponderação de princípios e por aí vai...
Fiquemos
apenas com o problema do coração do Direito: o positivismo. Há que se
perguntar: conseguimos, hoje, dar uma resposta satisfatória à pergunta “o que é
isto, o positivismo jurídico?”. Parece-me que a resposta é negativa.
Continuamos a empurrar os alunos da graduação diante do beco sem saída das
falidas dicotomias “jusnaturalismo vs. juspositivismo” ou “Direito Público vs.
Direito Privado”. No primeiro caso, a alternativa ao juspositivismo (geralmente
identificado como uma postura jurídica que separa direito de moral e que,
portanto, pretende um direito “a-valorativo” sic) é sempre o jusnaturalismo.
Assim, mesmo na contemporaneidade, em uma sociedade altamente secularizada,
todos autores que são críticos do positivismo e que defendem um tipo positivo
de relação do direito com a moral são logo de pronto rotulados de
jusnaturalistas. Ouvi em um grande congresso de Filosofia do Direito uma
conferência inteira que dizia que Dworkin era um jusnaturalista. E a velha
questão Direito Público vs. Direito Privado também deixa marcas nessa
discussão. Na verdade, temos que aprofundar o estudo do Direito. Temos que
entender que as raízes do positivismo jurídico estão no direito privado. Os
grandes tratadistas do direito público novecentista — de Gerber a Jellinek —
tinham muito débito com o conceitualismo da pandectistica. E hoje, em pleno
constitucionalismo contemporâneo ainda estamos repristinando este tipo de discussão.
Não se avança. Os livros didáticos tratam as coisas assim, os currículos da
faculdade de direito incorporam a discussão da mesma forma e tudo desagua em um
grande círculo vicioso. Enfim, não quero cansar mais os leitores.
A
crise paradigmática
Como dizia já de há muito José Eduardo Faria, preparado para
resolver conflitos inter-individuais, o direito não está preparado para as
pendengas de cariz supraindividual. Passados 25 anos, ainda não aprovamos um
novo Código Penal. Nossa dogmática jurídica ainda aceita que delitos como furto
(propriedade individual) sejam mais graves ou tenham tratamento mais duro do
que delitos de índole metaindividual, mormente os praticados contra o Estado.
Com isso, não causa surpresa — e refiro aqui o leitor Luis Alberto da Costa —,
em comentário à coluna da semana passada, mostrando que o próprio Supremo
Tribunal aplica o princípio da insignificância para descaminho em valores até
R$ 10 mil e nega para um furto de seis barras de chocolate avaliadas em R$
31,80.
Querem
ver algo que, simbolicamente, denuncia a crise e a demonstração de que não há
qualqueraccountabillity no mundo jurídico? Explico. Há muito
denuncio o pan-principiologismo, essa bolha especulativa que ainda vai causar
uma espécie de subprime hermenêutico. Pois depois daquela longa lista que
publico em Verdade e Consenso, apareceu, agora, um novo. Trata-se
do “princípio da operabilidade” — sim, tem um livro que fala desse “princípio”
—, que serve, segundo seu inventor, para dar a concretude e a efetividade idealizadas
mediante operações feitas pelo aplicador do direito, o juiz da causa, visando
ao direito prático, factício, concreto, visando a facilitar a interpretação e a
aplicação dos institutos. Ah, bom.
Diz-se,
ainda, que o tal princípio da operabilidade tem o condão de fazer o Código
Civil funcionar de modo simples. Com o uso do tal “princípio”, seria mais fácil
operar o Código, longe dos tecnicismos fundados em teorias que “mais complicam
do que facilitam a vida do operador". Operador, no caso, deve ser do “tipo
telemarketing”, é claro. Algo como “vou estar interpretando”. Ou seja, segundo
o autor que trata do aludido “princípio da operabilidade”, teorizar o Direito
complica a vida do operador! Pois é. Talvez o melhor mesmo é simplificar.
A
propósito, vai uma pergunta: por que, se o tal princípio da operabilidade é um
princípio, ele só se aplica(ria) ao Código Civil? Indubitavelmente, essa
criação quase artística de princípios põe à lume, de forma escancarada, a crise
da Teoria do Direito. Lendo essas coisas todas, tenho a nítida impressão de que
não conseguimos sequer dar um passo adiante da problemática envolvendo o
direito privado do século passado. Diante disso, pergunto: como fazer concursos
sofisticados, envolvendo questões reflexivas? Como fazer exames de Ordem
complexos, se, assim como está, já dá chumbamento de quase 90%?
Ainda
sobre a bolha especulativa de princípios: esse “princípio” (da operabilidade)
era o que estava faltando. Como o direito sobreviveu até hoje sem ele? Baixemos
as prateleiras. Investiguemos. É umgap na história. Isso dá tese de
doutorado, algo do tipo “Como o direito era antes do princípio da
operabilidade”. Ou seja, agora estamos salvos, pois dispomos de mais um macete
para que o magistrado possa dar cabo dos hard cases que enfrentará,
especialmente após passar pela deformação proporcionada pelos concursos que
tiver feito e, consequentemente pelo "ensino" estandardizado e
simplificado a que deverá submeter-se para descobrir o "caminho das
pedras" para a prova que teve de fazer, qual engloba inclusive novas
searas jurídicas, como direito sumular (que deve ser algo como o direito
brotado dos tribunais, legitimamente produzido pelo Judiciário e traduzido por
meio de enunciados normativos, imagino eu, pois não?!) que também já está esquematizado
e apartado dos fundamentos que poderiam sustentá-lo, é claro! No apagar das
luzes, fechando esta coluna, um aluno me trouxe a seguinte sacada, tirada de um
livro (ou artigo) que trata de direito ambiental. Consta, ali, que a
ponderação, sempre ela (entre outros artifícios), é um ás na manga do
intérprete ecológico. E que um dos critérios para resolver problemas
hermenêuticos no direito ambiental é utilizar o princípio in dúbio pro
ambiente. “Ás na manga” quereria dizer uma espécie de “Katchanga Real”? Uma
espécie de “pedra filosofal”? De todo modo, pensei: como ninguém tinha pensando
nisso antes? Mais: e seria, em um país em que o ativismo corre frouxo, apenas
um ás na magna no direito ecológico?
Tudo
vai bem...
Ao final, voltando ao livro “Paris, a Festa Continuou”,
lembro a passagem em que o autor diz que, quando a Alemanha engoliu o restante
da Tchecoslováquia, em marco de 1939, o consenso em Paris era de que não fazia
sentido pedir aos cidadãos franceses que morressem em defesa dos tchecos. Mas
esse acontecimento abalou os governos da Grã-Bretanha e da França, que
finalmente se comprometeram a garantir a independência da Polônia, o próximo
alvo da mira de Hitler. Mas também, esse gesto teve pouco apoio popular. No
artigo To die for Danzig (Morrer por Danzig), publicado emL’Oeuvre em
maio de 1939, Marcel Déat afirmava que ninguém poderia impedir Hitler de se
apoderar do enclave báltico. “Começar uma guerra na Europa por causa de Danzig
seria um certo exagero”, disse ele, acrescentando: “Não morreremos por Danzig”.
Mesmo a essa altura, poucos franceses acreditavam que a sobrevivência de seu
país se encontrava em risco. Obviamente, não havia nada na vida social e
cultural da França na primavera e no verão de 1939 que pudesse ter convencido
aos franceses que o país poderia ser invadido e tomado.
Pois
é. Naquela Paris, véspera de ser tomada e humilhada pelos alemães, “as festas à
fantasia e os bailes de máscaras continuavam a ocorrer, luxuosos como sempre”.
Afinal,
não nos preocupemos: Tout va trés bien, Madame La Marquise. É:
tudo vai bem nos concursos, na dogmática jurídica e no ensino do direito. Tudo
vai bem... afinal, quem quer morrer por Danzig? Quem quer se sacrificar
enfrentando esse “monde juridique” que, afinal, vai “tão” trés
bien?
Lenio Luiz Streck é
procurador de Justiça no Rio Grande do Sul, doutor e pós-Doutor em Direito.
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Revista Consultor Jurídico, 28 de março de 2013
(http://www.conjur.com.br/2013-mar-28/senso-incomum-apesar-reprovacoes-oab-acham-tudo-bem-direito).
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